Crianças de distritos devastados pelo rompimento da barragem da Samarco são chamadas de ‘pé de lama’ na escola, enquanto seus pais são vistos como ‘aproveitadores’ por quem dependia da mineração para viver. Segundo os atingidos, a discriminação é ‘diária’
Por Bruno Ribeiro e Márcio Fernandes, no Estadão
MARIANA – Seus filhos são chamados de “pés de lama” na escola. Quando fazem compras, recebem olhares de discriminação ao apresentar seus cartões de débito, fornecidos pela Samarco. Tiveram de ler no principal jornal local que eram “aproveitadores” e exploravam a mineradora. Passado um ano do dia em que tiveram de correr pela vida, deixando para trás todos os bens, os moradores do subdistrito de Bento Rodrigues, em Mariana, Minas Gerais, são discriminados como se fossem eles a causa da tragédia que atingiu o município.
O Estado começa neste domingo, 30, uma série especial sobre o primeiro ano da tragédia causada pelo rompimento, em 5 de novembro de 2015, da Barragem de Fundão, da Samarco, empresa controlada pela Vale e pela BHP Billinton, que deixou desabrigadas 1.500 pessoas – 236 famílias de Bento, 108 de Paracatu de Baixo e 8 de Gesteira, em Barra Longa –, além de prejudicar a economia e o abastecimento de água de 27 cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo. Ainda hoje, a lama da barragem continua a tingir o Rio Gualaxo do Norte, que deságua no Rio do Carmo e segue para o Doce.
No centro de Mariana, nas praças durante o dia e nos bares à noite, pipocam histórias atribuídas a moradores de Bento. “O cara tinha uma vaca, agora fala para a Samarco que eram cem”, disse à reportagem o dono de um bar. “O rapaz disse que tinha um cofre cheio de dinheiro em casa que a lama levou. Acharam o cofre e não era nada disso”, emendou um cliente na conversa.
Essas histórias não só chegam aos ouvidos das vítimas como também são ditas diretamente a elas. Em janeiro, um jornal da cidade, que aceita colaboração de colunistas externos, publicou texto que dizia: “Todos estão aproveitando do ocorrido para extorquir dinheiro e levar alguma vantagem”. O autor do texto se retratou por escrito após o Ministério Público propor ação pública contra ele.
“A gente se sente refugiado aqui, como naquelas imagens de refugiados que vemos na TV. Estamos em um lugar que não queríamos, e tem gente que não nos queria aqui também”, afirmou a recepcionista de consultório Maria das Graças Quintão dos Santos, de 59 anos. “A gente evita sair de casa. Só sai para trabalhar e voltar. Ou para visitar as ruínas de Bento.”
Na rua, a discriminação é diária. “Você entra no mercado para comprar as coisas do dia e, quando mostra o cartão (da Samarco), eles dizem: ‘olha o povo do Bento’. Eu tinha renda de R$ 8 mil. Como vou ser um ‘aproveitador’ com um salário mínimo?”, questionou o construtor civil Alexandre Juliano Vieira, de 39 anos, um dos atingidos.
O problema aumenta na escola. “As crianças devem mudar de colégio no ano que vem. Vão para uma escola só delas. Estavam se acostumando, mas tem gente que está chamando elas de pé de lama”, afirma o trabalhador rural Francisco de Paula Felipe, de 47 anos.
O promotor público de Direitos Humanos de Mariana, Guilherme Meneghin, investiga a criação de um abaixo-assinado exigindo a saída dos alunos de Bento da escola para onde foram enviados, no centro, que dividem com as demais crianças da cidade. A portaria de abertura do inquérito cita o “preconceito por parte de alguns moradores de Mariana contra os atingidos que recebem auxílio financeiro da Samarco”.
Brigas
Os atingidos pela lama passaram os últimos 12 meses recorrendo à Justiça para combater a discriminação e cobrar ações da mineradora. São audiências mensais no Fórum de Mariana. Além de Bento Rodrigues, há ainda ex-moradores dos distritos de Paracatu de Baixo, em Mariana, e de Gesteira, da vizinha Barra Longa. Esses eventos começam às 14 horas e, não raramente, só acabam na madrugada do dia seguinte. “São audiências para discutir a ação emergencial. Precisamos, logo, começar a tratar das indenizações”, afirma o promotor Meneghin. Eles também discutem os problemas em reuniões semanais, em uma comissão de atingidos.
Um dos problemas discutidos na semana passada foi justamente os cartões da Samarco, que tanto atraem as críticas dos moradores de Mariana. “Os cartões estão vencendo. O acordo de ajuda era por um ano, e está vencendo agora. O pessoal está meio preocupado, porque ninguém sabe se vão renovar”, afirma o trabalhador rural Felipe. Além do cartão, os moradores já receberam um adiantamento da indenização final, que ainda não foi discutida. Foi uma ajuda de R$ 20 mil, dinheiro que não resolveu a vida de ninguém.
“Tem muita gente triste, com depressão. A pessoa tem isso e vai ficando ruim, com problemas de saúde. Antes, raramente morria alguém. Depois da tragédia, três moradores de Bento já morreram. Para mim, foi de tristeza. Não estavam se acostumando. É capaz de a gente voltar para o novo Bento doente”, conclui Felipe.
Desemprego atinge 25% da população
A Samarco informou, por meio de nota, que “relatos de casos de discriminação contra impactados chegaram ao conhecimento da empresa”. “Em todas as reuniões de diálogo com a comunidade tem sido discutida a importância de se evitar qualquer tipo de conduta deste tipo”, disse a empresa. A reportagem questionou se a empresa avaliava ter alguma responsabilidade sobre essa situação, mas a Samarco não respondeu.
O Estado tentou, por dois dias, contato com o prefeito de Mariana, Duarte Júnior (PPS), mas ele não atendeu. A assessoria de imprensa da prefeitura disse que não tinha informações sobre a transferência dos alunos vindos de Bento Rodrigues para outra escola.
Demissões
A cidade de Mariana tem taxa de desemprego de 25%, segundo a prefeitura – mais do que o dobro do índice nacional. São 13 mil pessoas. “Uns 70% têm relação direta com a paralisação da Samarco. A empresa tinha muitas empresas terceirizadas que tiveram seus contratos suspensos, estas foram obrigadas a demitir seus trabalhadores”, informou a administração municipal.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.