O passado contado em fotos doadas, Os 66 que quase ficaram de fora, A questão dos animais

Clientes guardaram registros do bar de Sandra, famoso pelas coxinhas, que foi levado pela lama

Por Bruno Ribeiro e Márcio Fernandes, no Estadão

MARIANA – Antes da tragédia, seu bar constava no guia turístico da cidade. Um grande feito, dada a vocação de Mariana, com suas igrejas históricas, para o turismo. Localizado bem ao lado da placa que indicava que a rua fazia parte da Estrada Real, rota turística entre cidades de Minas e Rio, e também da igreja de Bento Rodrigues, erguida no século 18, o “Bar da Sandra” era famoso pela coxinha e, segundo contam os clientes, pela hospitalidade. 

“Teve uma vez que estávamos falando sobre os atingidos, e ouvi uma mulher dizer ‘deviam ter morrido todos’. Ela não sabia quem eu era. Eles acham que estamos explorando a Samarco”, lamenta Sandra Domertides Quintão, de 44 anos, a dona do bar. Seus grandes olhos azuis denunciam cada vez que se emociona. Ficam vermelhos, mas as lágrimas não chegam a cair.

Morando em uma das casas alugadas pela Samarco em Mariana com o marido e a filha, Ana Amélia, de 3 anos, Sandra tenta tocar a vida. “Saí suja de casa, correndo. Perdi tudo”, afirma. Mas a receita das famosas coxinhas estava na cabeça. E elas têm sido feitas na cidade, vendidas na feira ou por encomenda.

“Graças a Deus, está indo bem. Tem bastante pedido. As funcionárias dessa moça (que desejou a morte dos atingidos) começaram a fazer encomendas. Até que um dia ela fez também”, diz a comerciante, demonstrando não ter guardado rancor.

As memórias do bar, e da rotina da vida em Bento Rodrigues, jorram durante a conversa com ela, sem obedecer uma ordem linear. “Já teve gente que nasceu e morreu no meu carro”, conta, detalhando os percalços do cotidiano em uma vila distante da cidade grande.

Do bar guarda a lembrança dos clientes. “Vinha motoqueiro, gente de jipe, cavaleiro, turma de todo canto. Meu bar era a parada obrigatória na cidade.” O local existe ainda nas fotos que ela carrega, todas doadas por clientes que guardaram registros do estabelecimento em meio às fotos de passeios turísticos. “Começaram a me dar. Dá para ver o piso, que era de pedra, feito por escravos. Eu quero que a minha casa nova tenha esse piso de novo. Quero que a Samarco me dê meu piso”, afirma. Um cliente também pintou um quadro com a fachada do lugar e doou a tela.

Mudança

Sandra lamenta que a filha nunca brincará na vila onde ela e as primas cresceram. “Aqui na cidade não tem espaço.” Para dar à menina um pouco da liberdade que experimentou quando criança, conseguiu convencer a Samarco a trocar a casa onde vivia por outra, mais ampla, que fica na frente de uma praça, no bairro Independência, em Mariana. “Soube que iam alugar essa casa e corri”, diz, enquanto empurra a filha no balanço da praça. “Agora dá para a família se reunir no fim de semana. Éramos todos vizinhos.”

***

Os 66 que quase ficaram de fora da indenização

Eram sítios, roças e casas de fim de semana sem moradores fixos e que ‘sairiam da conta’

Por Bruno Ribeiro e Márcio Fernandes, no Estadão

MARIANA –  Os distritos destruídos pela lama da Samarco tinham ao menos 66 imóveis – terras e casas – que pertencem a pessoas que não moravam naqueles lugares. Eram sítios, roças, casas de fim de semana. Também atingidas pela tragédia, em maior ou menor escala, essas pessoas passaram os dez meses seguintes ao desastre tendo de comprovar que haviam sido lesadas pela mineradora.

Fomos nós, as vítimas, que tivemos de comprovar o que estávamos falando, o que tínhamos”, diz o mecânico Mauro Marcos da Silva, de 47 anos, um dos 66 que ficaram sendo os atingidos “não reconhecidos” pela mineradora.

Silva tem uma oficina mecânica na principal rua de Mariana e mora na cidade. Tem também uma loja de roupas com sua mulher. O trabalho foi suficiente para comprar uma casa em Bento Rodrigues. O lugar era usado nos fins de semana, mas também servia de depósito para as lojas. “A gente ia lá à noite, durante a semana. E nos fins de semana para descansar. Era muito bom.”

Estava em Mariana, na oficina, no dia da tragédia. Soube pelo telefone, avisado por um amigo. “Ele ligou e perguntou onde estavam meus pais. Respondi que estavam em Mariana. Ainda bem”, lembra. Mesmo assim, correu para Bento, para ver, sem poder fazer nada, a lama levar tudo. Passados os primeiros dias da tragédia, quando era feito o cadastramento dos atingidos, preencheu as fichas indicadas pela Samarco. E, aí, a angústia que já sentia aumentou. “Eles disseram que minha casa era de fim de semana e eu não tinha direito à indenização”, acusa. “O acidente foi em uma quinta-feira. Se minha casa era de fim de semana, como foi levada junto?”, faz graça.

“Depois, eles disseram que a assistência era para as pessoas necessitadas e eu era um empresário. E, como empresário, não devia ficar mendigando o dinheiro da Samarco”, afirma Silva, vestindo macacão de mecânico e com graxa de motor até os cotovelos. “Respondi que não estava ‘mendigando’ nada, só buscando meus direitos.”

O reconhecimento dos prejuízos veio por meio de uma ação coletiva ingressada pelo Ministério Público contra a mineradora. Foram duas audiências até agora, em setembro e em outubro, que obrigaram a empresa a reverter seus entendimentos. “Tive de levar foto do carro que eu perdi. Eles primeiro tinham avaliado em R$ 3.500, mas eu tinha pago R$ 12 mil. Depois, o perito disse que valia R$ 17.900.”

A Samarco informou que casos individuais não são tratados publicamente, mas que a audiência citada ajudou a acelerar processos.

***

Moradores com animais têm dificuldades

Mineradora tentou comprar alguns deles, mas valor foi contestado e acordo depende do MPE

Por Bruno Ribeiro e Márcio Fernandes, no Estadão

MARIANA – O barracão que um ano atrás, tinha virado ponto turístico por abrigar animais resgatados da lama, mantido pela Samarco aos pés da rodovia que ligava Mariana à mineradora, agora é alugado por outra empresa. Os animais sumiram dali.

Parte deles foi transferida para uma fazenda da região, mantida também pela Samarco. Oito dos cavalos que estão lá são da auxiliar de vendas Janaína Cecília das Flores, de 40 anos, e do marido dela, Alexandre.

Janaína tem uma pilha de pastas na casa que a Samarco alugou para ela, no distrito de Bandeirantes, em Mariana. Documentos, processos judiciais e fotos de seu antigo lar. Depois de a mineradora cuidar dos animais até agosto, Janaína conta ter sido procurada pela empresa. “Eles chamaram todos nós lá no centro de convenções (de Mariana)”, lembra. “Disseram que não teriam mais como manter os animais no barracão e estavam se dispondo a comprar os bichos. Mas era pegar ou largar. Eles montaram computadores e impressoras lá mesmo, para fazer os contratos de venda. Tinha um avaliador que ia dando o preço de cada animal.”

Nem Janaína nem o marido queriam vender os cavalos. “Não queria que nada disso tivesse acontecido. Queria estar na minha casa, que eu adorava”, conta. Mas se viu sem saída. “A gente tentou negociar, mas eles não quiseram.” Assim, a contragosto, vendeu os bichos. “A gente tinha um cavalo manga-larga paulista de R$ 4.500. Eles avaliaram em R$ 2 mil.”

Ao todo, 20 proprietários teriam fechado os contratos com a mineradora. Mas o relato da transação fez o Ministério Público mover uma ação contra a Samarco. Em caráter liminar, o MPE pediu a anulação de todos os contratos, para assegurar um preço justo. A Justiça acolheu o pedido. Agora, os atingidos esperam a audiência de conciliação do caso, marcada para a próxima sexta.

Além dos oito cavalos na fazenda, há três outros que estão na casa onde Janaína vive hoje. “Não temos como dar ração, remédios e outros cuidados e nos manter com o cartão da empresa. Pedi para um veterinário ver uma das éguas, que está com infecção, e demorou 20 dias”, reclama. “Desde o dia deste acidente, não conseguimos trabalhar direito e só gastamos dinheiro. Vivemos o dia correndo atrás das coisas referentes à Samarco.”

A Samarco informou que a venda dos animais era opcional e os valores tinham sido definidos por empresa terceirizada. Agora, um acordo será intermediado pelo Ministério Público.

Bento Rodrigues, 06/11/2015. Foto: Márcio Fernandes /Estadão.

Leia também:

Desabrigados pela lama enfrentam preconceito e desconfiança em Mariana

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

nove − nove =