“Escravidão é afronta global à humanidade e demanda ação global”, diz ONU, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

Genebra – ”Escravidão atual é uma afronta global à humanidade e demanda uma ação global mais forte ainda”. A declaração foi dada pelo Alto Comissário para os Direitos Humanos das Nações Unidas, o jordaniano Zeid Ra’ad Al Hussein, em evento que discutiu a escravidão infantil no mundo, no escritório da ONU, em Genebra, na Suíça. O painel, em comemoração ao Dia Internacional para a Abolição da Escravidão, celebrado nesta sexta (2), reuniu representações de 54 países, além de entidades internacionais e representantes de organizações que atuam diretamente no atendimento a vítimas.

”Estados se comprometeram a garantir que as vítimas de trabalho escravo sobre sua jurisdição tenham direito à reparação, incluindo reabilitação. A garantia dessa assistência não é um ato opcional de caridade ou mesmo um imperativo ético, é lei”, afirma Al Hussein. Ainda mais em uma economia que criou cadeias produtivas globais e levou lucro a muita gente. Mas também deixou bilhões de órfãos dos benefícios dessa conexão, que entregam sua força de trabalho para a felicidade de outros.

A Organização Internacional do Trabalho estima a existência de, pelo menos, 21 milhões de pessoas submetidas a trabalho escravo em todo o mundo, produzindo lucros anuais da ordem de 150 bilhões de dólares. Estimativas otimistas, ainda mais considerando que os processos migratórios forçados por conflitos armados e mudanças climáticas alimentaram fortemente o tráfico de seres humanos para a exploração econômica e sexual nos últimos tempos.

No Brasil, não temos uma estimativa confiável de quantas pessoas estão sob essas condições. Mas dados do Ministério do Trabalho apontam que, desde 1995, mais de 50 mil pessoas foram resgatadas dessas condições no país. O representante do Itamaraty falou do exemplo brasileiro – nosso sistema de combate ao trabalho escravo, criado por Fernando Henrique, aprimorado por Lula e mantido por Dilma, é considerado uma referência global. Pelo menos, até agora.

James Kofi Annan, fundador da ONG Challenging Heights, foi vendido como escravo aos seis anos de idade. Até os 13, trabalhou como um escravo para pescadores, experimentando diariamente tortura, fome, negligência, abuso verbal e físico. Viveu com doenças dolorosas que nunca foram tratadas e lhe foi negado acesso a cuidados médicos. Em seu depoimento no evento, contou que consegui escapar do cativeiro. Foi para a escola, concluiu o ensino básico e a universidade. Mas largou o emprego estável para criar a ONG e ajudar outras crianças e famílias nessas condições.

”Resultantes de condições de extrema pobreza, crenças ideológicas profundamente arraigadas, bem como de conflitos e crises humanitárias, o número de crianças vítimas da escravidão moderna é cada vez maior”, afirmou a sérvia Nevena Sahovic, representante do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.

”Ao serem afastadas de uma vida de liberdade e dignidade, as crianças são privadas dos fundamentos da infância, um direito que ambos têm moral e legalmente direito.” O Fundo, do qual sou conselheiro há três anos, completou uma quarto de século em 2016 e foi o organizador do evento.

Falo por experiência própria. É difícil explicar o que é ter que escolher, por conta dos recursos limitados que são disponibilizados pelos estados membros das Nações Unidas ao Fundo, quais situações receberão recursos para combater a escravidão e atender aos sobreviventes.

O que é mais importante? Um programa que retira crianças que são raptadas para se tornarem pequenos soldados em guerras civis na África, outro que impede que meninas sejam exploradas sexualmente no Sudeste da Ásia, ou ainda um que garante que crianças não se tornem escravas domésticas no interior da Europa Ocidental ou aquele que evita que sejam engolidas em alguma fazenda na Amazônia?

Isso não é uma brincadeira filosófica para saber quem você salvaria antes. Em uma discussão sobre a dignidade da vida humana, não há resposta aceitável que não seja incluir a todos. Mas tem sido impossível, devido às prioridades do mundo. O que torna esse tipo trabalho, não raro, uma conquista e um fracasso diários.

Sob o chicote, no deserto

Como vocês devem estar cansados de ler sobre casos brasileiros, vou trazer um de outro canto do mundo. Há alguns anos, estive em Mithi, no deserto de Thar (os nomes parecem de cenário de Game of Thrones, eu sei), no Paquistão. A cidade é uma das tantas que possuem crianças trabalhando como servos em casas de famílias, em lojas do comércio e na fabricação de tapetes de lã, atividade em que se encontram as piores condições.

Visitei um desses lugares. Em uma pequena casa, no estilo tradicional da região, feita de barro e coberta de palha, havia quatro jovens fazendo um tapete de lã em um tear. O mais novo tinha 12 anos, o mais velho 21. Nos contaram que trabalhavam seis dias por semana, 12 horas por dia. Juntos, conseguiam fazer um tapete em 30 dias e ganhavam 5 mil rúpias por isso, o que dava uns 1250 para cada – em um país em que o salário mínimo era de 4600. O dono da oficina vendia o mesmo tapete, em Karachi, maior cidade do país, por 40 mil.

Eles não podiam parar de trabalhar. E o pior é que isso tinha ficado acertado entre o dono da oficina e suas famílias.

Tomemos como exemplo o mais velho. Seus pais tinham um dívida com um senhor de terras – que pouco se diferencia de certos latifundiários brasileiros que transformam pessoas livres em servas através de dívidas impagáveis. Para quitá-la, pegaram um empréstimo de 10 mil rúpias com o dono da oficina. E, como garantia, empenharam o trabalho do próprio filho. Naquela época, ele tinha 21 anos, mas estava há quatro estava nessa vida, tecendo todos os dias. Havia ainda descontos do empregador no ganho do rapaz e, para piorar, juros sobre a dívida. Resultado: após todo esse tempo, a família devia a mesma coisa que antes e ele estava preso ao patrão. E, como eram analfabetos, os pais não conseguiam checar as contas.

Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência. Cada país possui suas peculiaridades, mas há um padrão de exploração global.

Vocês podem vê-los trabalhando no vídeo que fiz abaixo. Essa voz fininha é de uma das crianças pequenas que vai dando instrução para as outras:

Pelo o que moradores de Mithi me contaram, durante o trabalho essas crianças respiravam o pó resultante da fabricação do tapete e ficavam doentes (uma forma de silicose, que também ataca os pulmões de trabalhadores do amianto no Brasil, debilitando-os permanentemente). Mas, mesmo doentes, eram forçadas a trabalhar.

E isso é ilegal no país? Sim, o Ato da Abolição do Trabalho Servil do Paquistão, de 1992, diz isso e determina a libertação de todas as pessoas nessas condições. Mas também é no Brasil.

Situação do Brasil

Trabalho infantil não é novidade em nosso país. Muito menos trabalho forçado infantil. Temos meninas, por exemplo, que são literalmente vendidas por suas famílias e acabam em bordéis de beira de estrada ou da fronteira agrícola. Ou crianças que eram escravizadas, junto com suas famílias, na colheita de cacau – teve casos até de uma que ficou cega no trabalho. Toda essa vulnerabilidade social é consequência da miséria e da falta de opções de emprego ou de uma terra para plantar.

A Organização das Nações Unidas defendeu, neste ano, em um documento tornado público em abril deste ano, a manutenção do atual conceito de trabalho escravo vigente no Brasil e a reativação do cadastro de empregadores flagrados com mão de obra escrava, conhecido como a ”lista suja”, suspensa pelo Supremo Tribunal Federal desde o final de 2014.

O posicionamento é importante uma vez que há uma disputa no Congresso Nacional em torno da definição do que é trabalho escravo contemporâneo. Pelo menos quatro projetos tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal a fim de reduzir os elementos que caracterizam escravidão e, portanto, a sua punição. Contam com o apoio da bancada ruralista, entre outros setores econômicos, e de nomes fortes da base do governo federal.

O documento divulgado pelas agências das Nações Unidas no Brasil destacou avanços significativos do país, lembrando que ele é referência internacional no combate a esse crime. Mas fez alertas contundentes sobre ameaças ao sistema de combate à escravidão e traz recomendações. ”Nesse cenário de possíveis retrocessos, cabe à ONU lembrar à comunidade brasileira seu lugar de referência no combate ao trabalho escravo para a comunidade internacional”.

Desde 2003, são quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes (quando a violação de direitos fundamentais coloca em risco a saúde e a vida do trabalhador) e jornada exaustiva (em que ele é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga que acarreta danos à sua saúde ou risco de morte).

Há parlamentares, contudo, que afirmam que é difícil conceituar o que sejam esses dois últimos, o que geraria ”insegurança jurídica”. Querem que as condições em que se encontram os trabalhadores não importem para a definição de trabalho escravo, apenas se ele está em cárcere ou não. Isso, contudo, é criticado pelo documento

O texto alerta sobre os projetos que visam a mudar o conceito: ”Situações em que trabalhadores são submetidos a condições degradantes ou jornadas exaustivas, maculando frontalmente sua dignidade, ficariam impunes caso essa alteração legislativa seja aprovada”.

As Nações Unidas também citam outras ameaças ao sistema de combate ao trabalho escravo no Brasil. ”Nota-se uma crescente tendência de retrocesso em relação a outras iniciativas fundamentais ao enfrentamento do trabalho escravo, como por exemplo, o Cadastro de Empregadores flagrados explorando mão de obra escrava, comumente reconhecido por ‘lista suja’, que foi suspenso no final de 2014 devido a uma liminar da mais alta corte brasileira em sede de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade”.

Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, revogou a medida cautelar que impedia a divulgação da lista no dia 16 de maio deste ano, mas o Ministério do Trabalho ainda não publicou uma nova relação e afirmou que não possui data para isso. Empresas têm visitado o ministério pedindo para a lista não voltar a ser divulgada.

Por isso, a imprensa, sociedade civil e empresas têm solicitado, desde o início de 2015, o conteúdo aproximado da ”lista suja”, informação pública de interesse público, divulgado à sociedade. Por conta disso, por solicitar esse conteúdo e torná-lo público, estou sendo processado criminalmente por uma empresa.

Informação livre é fundamental para que as empresas e outras instituições desenvolvam suas políticas de gerenciamento de riscos e de responsabilidade social corporativa. Transparência é fundamental para que o mercado funcione a contento. Se uma empresa não informa seus passivos trabalhistas, sociais e ambientais, sonega informação relevante que pode ser ponderada por um investidor, um financiador ou um parceiro comercial na hora de fazer negócios.

Esperemos que o Brasil continue libertando escravos. E que não passe a escravizar informação que ajudaria a libertá-los ou ajudar a garantir dignidade aos trabalhadores.

Criança é obrigada a trabalhar na produção de tijolos no Paquistão. Foto: Roberto Romano/ONU

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