Sobre velhinhos…, por Elaine Tavares

No Palavras Insurgentes

Eu comecei a cuidar de pessoas velhas quando tinha ainda uns 14 anos. Meus avós por parte de mãe foram morar conosco. O vô era agricultor e fora expulso das terras que arrendava. Era um sem-terra e eu nem sabia. Como toda sua vida tinha sido no campo ele não se acostumava com a vida na cidade. Seguido eu o surpreendia no jardim da mãe, mexendo com as flores, a terra escorrendo entre os dedos. Sentia pena e tratava de ir ajudar na tarefa. Não falávamos nada, apenas cuidávamos das plantas, cúmplices. Vez em quando trocávamos sorrisos. Então ele contava alguma de suas piadas. Comecei a ter por hábito vigiá-lo. Caso o percebesse triste, lá ia eu me encostar, feito um gato. Outra coisa que fazíamos juntos era jogar pife. Pelas noites afora. Minha vó também gostava e era o melhor jeito de levar alegria para os dois.

Quando meu vô ficou doente e foi para o hospital, eu entrei em desespero. Não sabia o que fazer para aliviar sua dor. Sentava na cama e ficava a lhe fazer carinho. Em silêncio. Quando ele acordava eu contava das notícias e ele sorria. E de novo voltávamos ao silêncio, só sentindo o toque suave da carícia. Ele se foi poucas horas depois da minha última vista. Até hoje sinto seu cheiro, misto de cigarro e terra.

Depois fomos para Minas e a vó foi com a gente. Também tomei como tarefa cuidar de seu bem estar. Ela gostava de massagens. E eu aplicava todos os dias. Longas sessões com arnica e álcool. Também cuidava de fazer limpeza de pele e preparar as unhas, sempre de vermelho vivo. Nas noites de sábado, nada de balada. Era o pife com a vó. E como ela tinha outro filho morando no Rio Grande, cabia a mim levar e trazer a vó, nas longas viagens de ônibus. Todo o ano fazíamos a jornada.

Quando já fora de casa, trabalhando em Caxias do Sul, consegui alugar minha primeira casa, foi com ela que dividi a morada. Ela dizia cuidar de mim, mas era eu quem cuidava de seu bem estar. Ela gostava de ter sua casa novamente, sem se sentir dependendo dos filhos. Sua maior diversão era reunir as amigas para o pife, e lá elas iam noite adentro enquanto eu servia bolinhos de chuva. Como os tempos eram duros a vida era regrada, mas nunca faltava a música e o vinho. Foram anos muito alegres com a minha vó, sempre ao som do Tijuana Brass.

No final dos anos 80 eu vim para Florianópolis em situação bem ruim. Sem emprego e sem dinheiro, e ainda fazendo a faculdade. A vó já morava com minha tia em Porto Alegre. O tempo passou, a vó encantou, eu segui meu caminho, sozinha. Agora, depois de tanto tempo, revivo as aventuras que tive com meus avós cuidando do meu pai. Ele não está tão velhinho, mas com sérios problemas de memória. Todos os dias são como um eterno retorno. As histórias têm de ser contadas e recontadas. A memória vai e vem. Por vezes ele fica triste e eu fico como ficava diante do meu avô. Sem saber bem o que fazer. Acabo inventando coisas para fazer junto. Regar o jardim, secar a louça, dar um passeio, conversar, comer coisas gostosas, tomar vinho. Também há tempo para risadas e brincadeiras. Fazer massagem nas mãos, cortar as unhas dos pés, tirar os cravos do nariz.

Depois de tanto tempo sem essa missão de cuidar de alguém fiquei enferrujada. Mas já estou melhorando. Cada dia é uma descoberta. Há horas que são tristes, outras não. O melhor caminho ainda é aquele que, intuitivamente, fui trilhando com meu vô Dionísio. Carinho, cuidado, amor. Assim, vou me fortalecendo e garantindo a esse querido companheiro dias de mansidão.

Agora, por esses dias, andamos, ele e eu, a cuidar de nossa cachorrinha paralítica. Enquanto eu arrumo a água e a comida, ele fica do lado da Chiquinha, acarinhando cada vez que ela chora. E faz questão de lembrar a cada hora: Já deu água? Já deu ração? Já deu o remédio?

Fico pensando que o amor é mesmo uma experiência estonteante. Quanto mais a gente dá, mais a gente tem.

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