Por que as sociedades podem livrar dos mercados e do Estado as riquezas essenciais. Que mecanismos permitiriam este passo. Como ele transformaria também a política e o ambiente
Por George Monbiot*, no The Guardian | Tradução: Gabriel Simões – Outras Palavras
Num primeiro momento, o pessoal do poder nos disse que o capitalismo global era uma força inovadora e dinâmica, a fonte de constante inovação e mudança. Depois, afirmou que ele teria trazido o fim da história: estabilidade e paz permanentes. Não houve nenhuma tentativa de resolver esta contradição. E nem qualquer outra.
Prometeram crescimento sem fim em um planeta finito. Disseram que um sistema de vasta desigualdade eliminaria todas as diferenças. A paz social seria produzida através de um sistema baseado em competição e cobiça. A democracia seria assegurada pela força do dinheiro. As contradições eram óbvias. Todo o pacote baseava-se em magia.
Já que nada disso funciona, não há uma normalidade para a qual retornar. As medidas keynesianas propostas por Jeremy Corbin e Bernie Sanders – em um mundo que se defronta com seus limites ambientais e com a eliminação maciça de empregos – são tão irrelevantes no século XXI quanto as prescrições neoliberais que causaram a crise financeira.
Em seu novo e incendiário livro, Age of Anger, Pankaj Mishra explica as atuais crises como novas manifestações de uma longa ruptura que vem dilacerando a sociedade há duzentos anos ou mais. As histórias falseadas da Europa nos levaram a esquecer que a balbúrdia, a carnificina, as guerras civis e internacionais, o colonialismo e os massacres no exterior, o racismo e o genocídio foram as normas deste período e não exceções.
Agora, da mesma maneira como o capitalismo industrial está globalizado, o resto do mundo enfrenta as mesmas forças de ruptura. Elas destroem as velhas formas de autoridade enquanto prometem liberdade universal, autonomia e prosperidade. Tais promessas chocam-se com as imensas desigualdades em termos de poder, status e propriedade. O resultado é a disseminação global dos males da Europa do século XIX, como a humilhação, cobiça e sensação de impotência. Expectativas frustradas, ódio e aversão a si mesmo têm gerado apoio a movimentos tão diversos como o ISIS, o nacionalismo hindu ressurgente e a demagogia histérica na Inglaterra, EUA, França e Hungria.
Como nós respondemos a estas crises? Raymond Williams disse que “ser verdadeiramente radical é tornar a esperança possível em vez de tornar o desespero convincente”. Eu sei que tornei o desespero bastante convincente ao longo das últimas semanas1. Portanto, esta coluna é a primeira de uma série cujo propósito é promover novas abordagens à política, economia e mudança social. Não é possível recuar, não há conforto em antigas certezas. Nós devemos repensar o mundo a partir de princípios fundamentais.
Eu poderia começar a partir de muitos pontos, mas este me parece óbvio. O mercado, por si só, não pode atender às nossas necessidades – tampouco o Estado. Ambos, ao extirpar o pertencimento, ajudam a alimentar a alienação, o ódio e a anomia que geram o extremismo. Ao longo dos últimos duzentos anos, um elemento tem estado ausente de maneira conspícua das ideologias dominantes, algo que não é nem mercado e nem Estado: os bens comuns.
Um bem comum é um recurso sobre o qual uma comunidade tem direitos iguais e compartilhados. A princípio, esta noção poderia incluir a terra, água, minerais, conhecimento, pesquisa científica e software. Mas, no momento, a maior parte destes recursos tem sido cercada: confiscados tanto pelo Estado quanto pelos interesses privados e tratados como qualquer outra forma de capital. Através deste cercamento, nós temos sido privados da nossa riqueza comum.
Alguns bens comuns ainda existem. Eles vão desde florestas de propriedade coletiva no Nepal e na Romênia até as pescarias de lagostas no Maine (EUA), pastagens na África Oriental e na Suíça, a internet, a Wikipédia, o Linux, os periódicos publicados pela Public Library of Science, o banco de tempo de Helsinque, moedas locais e a microscopia de código aberto. Mas estas são exceções à regra geral de propriedade privada e exclusiva.
Em seu livro Land, o organizador comunitário Martin Adams nos estimula a enxergar a terra como algo que um dia pertenceu a todos e a ninguém e, no entanto, foi adquirida por uma minoria que exclui as demais pessoas de usufruí-la. Ele propõe que aqueles que utilizam a terra de maneira exclusiva devam pagar uma “contribuição comunitária pela terra” como forma de compensação. Isto, em parte, poderia substituir o imposto sobre renda e consumo, evitar a concentração fundiária e reduzir os preços da terra. A receita obtida poderia ajudar a financiar uma renda básica universal. Finalmente estaríamos nos movendo na direção de um sistema no qual a terra é de propriedade da comunidade local e arrendada para aqueles que a utilizam.
Princípios similares poderiam ser aplicados à energia. O direito de produzir carbono através da queima de combustíveis fósseis poderia ser vendido em leilões (um lote cada vez menor estaria disponível a cada ano). Este procedimento poderia financiar serviços públicos e uma transição para a energia limpa. Àqueles que desejarem utilizar o vento ou a luz solar para gerar energia deveria ser solicitado o pagamento de uma contribuição à comunidade. Ou os geradores poderiam pertencer às comunidades – já existem muitos exemplos.
Em vez de permitir às corporações o uso dos direitos de propriedade intelectual para criar uma escassez artificial de conhecimento ou de promover a apropriação de valor gerado por outras pessoas (como fazem o Google e o Facebook), poderíamos nos mover na direção de uma “economia de conhecimento social” do tipo promovido pelo governo do Equador. Uma parte dos lucros poderia (com a ajuda de tecnologia blockchain) ser usada para ajuda à construção de plataformas online e pelo fornecimento do conteúdo que elas hospedam.
A restauração dos bens comuns tem um grande potencial não apenas de distribuir a riqueza, mas também de mudar a sociedade. Como o autor David Bollier aponta, um bem comum não é apenas um recurso (terra, árvores ou software) mas também é a comunidade de pessoas que o gerencia e protege. Aqueles que participam da gestão e usufruto dos bens comuns desenvolvem conexões muito mais profundas entre si e com os seus recursos do que nós, enquanto consumidores passivos de produtos corporativos.
O gerenciamento de recursos comuns significa desenvolver regras, valores e tradições. Isto significa, em alguns casos, a nossa própria reinserção nos locais onde vivemos. Significa remodelar os governos para atender às necessidades das comunidades, não das corporações. Em outras palavras, a retomada da noção de bens comuns pode agir como um contrapeso às forças atomizantes e alienantes que hoje geram mil e uma formas tóxicas de reação.
Esta não é a resposta completa. A minha esperança é que, após explorar uma ampla gama de potenciais soluções, com a ajuda de seus comentários e sugestões, eu possa começar a desenvolver uma síntese: uma nova narrativa política, econômica e social que seja adequada às demandas do século XXI. É outro desafio, no qual também precisamos trabalhar. Mas primeiro precisamos decidir o que queremos. Depois decidimos como consegui-lo.
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1 George Monbiot, o autor deste texto, escreveu, em 2016, uma sequência de matérias sobre o neoliberalismo. Destas, Outras Palavras traduziu e publicou “Capitalismo, teu nome é solidão”, “Breve história de uma crise do Ocidente” e “Democracia: o paradoxo McDonald’s”
*Jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unido. Escreve uma coluna semanal no jornal The Guardian.
Imagem: Dança, segunda versão, Matisse, 1910