Artigo: Violação do direito à consulta prévia no processo de elaboração da lei: vício congênito

Na Terra de Direitos

O Instituto O Direito por um Planeta Verde disponibilizou a versão online do livro A “Nova” Lei N.º 13.123/2015 no velho marco legal da Biodiversidade: Entre Retrocessos e Violações de Direitos Socioambientais, resultado de uma articulação de representantes de diversas organizações no esforço de criar uma abordagem crítica da Lei 13.123, conhecida como marco legal da biodiversidade e cunhada por movimentos sociais como lei da biopirataria.

Dedicada aos povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, agricultores e agricultoras familiares do Brasil e homenageando Juliana Santilli (in memoriam), a obra contou com a participação de mais de 40 colaboradores, entre autores/as e entrevistados/as de movimentos sociais e 15 grupos de pesquisa de diversas regiões do país. O assessor jurídico da Terras de Direitos, André Dallagnol, assina o artigo “Violação do direito à consulta prévia no processo de elaboração da lei: vício congênito” em parceria com Liana Amin Lima da Silva. Confira:

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Violação do direito à consulta prévia no processo de elaboração da lei: vício congênito 

Por Liana Amin Lima da Silva e André Halloys Dallagnol*

No ano de 2014, iniciou-se a tramitação apressada, em regime de urgência, do Projeto de Lei (PL) 7735/2014, apresentado pela Presidência da República, visando à revogação da Medida Provisória n.º 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, ao regulamentar

o inciso II do §1o e o §4o do art. 225 da Constituição Federal, o Artigo 1, a alínea j do Artigo 8, a alínea c do Artigo 10, o Artigo 15 e os §§3o e 4o do Artigo 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica, promulgada pelo Decreto n.º 2.519, de 16 de março de 1998; dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade; e dá outras providências.

O referido projeto desconsiderou aspectos importantes dos debates realizados por povos e comunidades tradicionais e por organizações científicas e não governamentais. Ao longo de mais de quinze anos, esses debates deram origem a três projetos de leis (PL 306/95, PL 4579/98; e PL 4751/98), aprofundada a discussão no âmbito de aplicação da Medida Provisória 2.186-16/2001.

A proposta que deu origem ao PL 7735 foi basicamente elaborada pelos Ministérios das pastas de Meio Ambiente e de Ciência e Tecnologia, em trezentas reuniões com o setor empresarial, autodenominado Coalizão Empresarial pela Biodiversidade, conforme denunciado pelos Movimentos Sociais e Organizações em Cartas Abertas [1], havendo uma discussão paralela no âmbito do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Juliana Santilli (2015) já afirmava: “a nova lei traz retrocessos e incongruências inaceitáveis, o que reflete a pouca participação de representantes de povos e comunidades tradicionais e de organizações da sociedade civil na sua elaboração e discussão”.

Em termos de participação democrática, a tramitação do projeto de lei foi uma afronta para a participação da sociedade civil, ignorando os posicionamentos defendidos pelos povos e comunidades tradicionais afetadas diretamente pela legislação (ASA Brasil et al., 2014). Prova disso é que a Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, que funciona no âmbito do Governo Federal, com participação do Ministério do Meio Ambiente, apenas tomou conhecimento do Projeto de Lei quando ele já havia sido encaminhado para a Câmara dos Deputados, em regime de urgência constitucional (TERRA de Direitos et al., 2014).

O cenário de ausência de participação popular, anterior ao envio da mensagem presidencial à Câmara dos Deputados, se manteve durante todo o processo legislativo. Na Câmara dos Deputados, nenhum debate foi possibilitado. No Senado, houve a realização de uma audiência pública e de um Seminário, porém não houve qualquer possibilidade de retirada do regime de urgência, para que o debate fosse ampliado e capilarizado pelos movimentos sociais.

Na justificativa do parecer da Câmara dos Deputados, a participação de representantes de povos e comunidades tradicionais foi considerada uma dificuldade que “poderá tornar o processo moroso e inexequível na prática”. Desse modo, o Congresso Nacional vem sistematicamente violando os direi-tos e garantias aos povos e comunidades tradicionais previstos na Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Com a internalização da Convenção, equiparam-se aos direitos dos povos indígenas [2], os direitos dos povos tri-bais, sujeitos da Convenção 169 (art. 1o-1, a), que, no Brasil, são identificados como povos e comunidades tradicionais, ressalvada a diferenciação quanto ao tratamento constitucional das terras indígenas e quilombolas [3].

Conforme o Decreto n.º 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, compreende-se por:

Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua re-produção cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

O mecanismo de consulta prévia está previsto no artigo 6º da Convenção 169 da OIT, quando consagra que os governos deverão consultar os povos indígenas e tradicionais, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente.

Até o presente momento, não há qualquer iniciativa no âmbito do Legislativo Federal de se implementar a consulta prévia aos povos indígenas e comunidades tradicionais na tramitação de projetos de leis e propostas de emenda constitucional suscetíveis de afetá-los [4]. O Congresso Nacional ignora o cumprimento desse preceito fundamental de uma Convenção da qual o Brasil é signatário.

Após a promulgação da Lei n.º 13.123, em 20 de maio de 2015, o Poder Executivo, ao sinalizar prol de sua regulamentação, convocou a participação popular por meio de uma “consulta pública”. Tal espaço de participação se deu por uma convocatória de envio de propostas por internet.

Vale lembrar que a “consulta pública” não é o mesmo que a “consulta prévia” prevista na Convenção 169 da OIT. Quando o governo brasileiro propõe uma consulta pública no processo de regulamentação da lei já aprovada, não leva em consideração as especificidades dos sujeitos de direitos que assumem identidades étnicas e que são culturalmente distintos de outros setores da sociedade.

O governo federal formou um Grupo de Trabalho, após a aprovação da Lei, com o objetivo de promover debates que poderiam contribuir com mobilização, conscientização, e, até mesmo, encaminhamentos para reduzir danos na elaboração do decreto de regulamentação, mas que não poderiam, de nenhuma forma, incidir ou propor alterações sobre a Lei já aprovada.

Foram realizados seis seminários regionais e um seminário nacional com povos e comunidades tradicionais, o que não foi suficiente e não substitui o obrigatório processo de consulta prévia, assim como não sana o vício de origem já configurado. Além do mais, os seminários regionais foram considerados insuficientes pela ausência de uma proposta de texto-base para a discussão e construção coletiva.

Reitera-se que tal processo deveria ocorrer previamente ao trâmite do processo legislativo e não na fase posterior à promulgação e momento da regulamentação da lei, eivada de vício congênito material e procedimental.

Logo, a tramitação do PL n.º 7735, que resultou na Lei n.º 13.123/2015 violou os princípios basilares desse mecanismo de participação específico para povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, pois deveria ter havido o devido processo de consulta prévia, livre, informada, adequada e de boa fé.

E, especificamente no caso da Lei n.º 13.123/2015, salienta-se que, em seu conteúdo, há afronta ao direito ao consentimento livre, prévio e informado. Estamos diante, portanto, de um caso de dupla violação, pois se caracteriza tanto em termos procedimentais (direito à consulta prévia no processo legislativo), quanto em termos materiais, ao reduzir o alcance e âmbito de aplicação do direito ao consentimento livre, prévio e informado e à repartição justa e equitativa de benefícios nos casos de acesso ao conhecimento associado ao patrimônio genético.

Nesse contexto, é válido vislumbrarmos as lições da Corte Constitucional da Colômbia, ao considerar que a omissão legislativa em relação à consulta prévia configura inconstitucionalidade da lei, conforme apregoa Amparo Rodriguez (2014):

A consequência de omitir o dever de consulta prévia se traduz no descumprimento do compromisso internacional as-sumido pelo Estado com a Convenção n. 169 da OIT; igualmente supõe o desconhecimento da Constituição e por isso, pode-se solicitar o amparo desse direito mediante ação de tutela. Tratando-se de leis, a omissão da consulta prévia pro-duz a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, ou a declaração de constitucionalidade condicionada excluindo de seu âmbito de aplicação os grupos étnicos afetados, ou a declaração de uma omissão legislativa por não haver previsto medidas orientadas a estas comunidades (p. 83 [tradução nossa]).

Na Colômbia, assim como em outros países latino-americanos, a Convenção n.º 169 da OIT integra o bloco de constitucionalidade e o direito à consulta prévia está consagra-do como um direito fundamental.

Na Sentença C-030, de 2008, a Corte Constitucional da Colômbia exige do legislador a obrigação de realizar um procedimento não previsto na Constituição, nem na Lei Orgânica do Congresso, como requisito para tramitar medidas legislativas. A Corte passa a adotar uma linha jurisprudencial em matéria de exigibilidade da consulta prévia e controle de constitucionalidade, no que diz respeito a medidas legislativas que afetam os povos indígenas e tribais (Idem, p. 84).

No que concerne ao requisito da consulta em matéria legislativa, há características especiais, não podendo a consulta prévia ser substituída por um processo participativo geral. Nesse sentido, a Corte Constitucional da Colômbia considerou como requisito da consulta prévia em matéria legislativa: a) dar conhecimento às comunidades, por intermédio de suas instâncias representativas, sobre o projeto de lei; b) ilustrar-lhes sobre seu alcance e sobre a maneira como poderia afetá-las; c) dar-lhes oportunidades efetivas para se pronunciarem sobre o mesmo (AMPARO RODRIGUEZ, 2009, p. 157).

Acrescenta-se que, com a finalidade de garantir o estabelecimento do procedimento para a realização da consulta, é importante mencionar que a Convenção 169 da OIT fixa as pautas gerais sobre as condições que deve cumprir a consulta prévia, relativas à que seja realizada de boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias particulares, com a finalidade de chegar a um acordo acerca das medidas propostas (CORTE CONSTITUCIONAL, 2009).

Deve-se considerar tais lições como norteadoras para aplicação do direito à consulta prévia, já que o Estado brasileiro é signatário da Convenção n. 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, instrumento jurídico internacional que é autoaplicável a partir de sua entrada em vigor no Estado que o ratifica, ou seja, independente de regulamentação, o mecanismo de consulta prévia deverá ser observado.

Diante do exposto, reafirmamos a inconstitucionalidade da Lei n.º 13.123/2015, a partir de uma análise sistêmica e sistemática e devido a seu vício congênito, qual seja, a ausência da consulta prévia aos povos indígenas e tradicionais no processo legislativo em questão.

[1]  Pedido de Veto ao Projeto de Lei n.º 7735/2014.

[2] Conforme CENSO IBGE 2010, entre os povos indígenas no Brasil, foram identificadas 305 etnias, falantes de 274 línguas, sendo a população indígena total de 896,9 mil.

[3]  Entre os grupos com identidade étnica considerados comunidades tradicionais no Brasil, encontram-se as Comunidades Quilombolas, Comunidades Caiçaras, Povos de Faxinais/Faxinalenses, Pescadores Artesanais, Ribeirinhos, Quebradeiras de Coco-babaçu, Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto, Catadoras de Mangaba, Geraizeiros, Povos do Cerrado, Comunidades Extrativistas, Seringueiros, Pantaneiros, Povos Ciganos, entre outros grupos “cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial” (art. 1o -1, a da Convenção 169). De acordo com o Decreto 6.040, de 2007, territórios tradicionais são “os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações”.

[4] A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, de autoria do Deputado Amir Morais Sá (PL/ RR), tem como objetivo a transferência das responsabilidades do Poder Executivo na demarcação e titulação de terras indígenas e quilombolas para o Poder Legislativo. É outro grave exemplo de violação ao direito fundamental à consulta prévia no Brasil. Outros exemplos são: PEC 237/2013 – que visa tornar possível a posse indireta de terras indígenas a produtores rurais na forma de concessão; PL 1610/1996 – que dispõe sobre mineração em terras indígenas; PL 349/2013 – que tem como objetivo impedir que terras ocupadas por indígenas em processo de retomada sejam demarcadas ou continuem os estudos para constituição como Terras Indígenas; entre outros projetos que afrontam e afetam diretamente os direitos e interesses dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Além de não serem consultados, tem sido vedada a legítima participação de representantes desses povos durante o processo legislativo, especialmente, nos espaços das comissões que tratam e aprovam a matéria no âmbito do Congresso Nacional, o que gerou protestos e retomada da Mobilização Nacional Indígena e Quilombola, que teve forte repressão policial na manifestação de dezembro de 2014.

Referências

AMPARO RODRÍGUEZ, Gloria. De la consulta previa al consentimiento libre, previo e informado a pueblos indígenas en Colombia. Bogotá: Universidad del Rosario, GIZ Cooperación Alemania, 2014. p. 83. (Colección Diversidad Étnica y Cultural)

______. La consulta previa en medidas legislativas: perspec-tivas desde la jurisprudencia constitucional. Bogotá: Verba Iuris. Enero, junio 2009. p. 157.

ARTICULAÇÃO dos povos e organizações indígenas do NE, MG e ES – APOINME; ARTICULAÇÃO dos povos indígenas do Brasil – APIB; ARTICULAÇÃO dos povos indígenas do sul – ARPINSUL. Pedido de Veto ao Projeto de Lei nº. 7735/2014. Disponível em: <http://terradedireitos.org.br/wp-content/uplo-ads/2015/05/VETA-DILMA-PL-7735-v.3.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2016.

ASA Brasil; ASA Paraíba; AS-PTA Agricultura Familiar e Agro-ecologia; Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica; Associação de Agricultura Biodinâmica do Sul et al. De onde brotam os espinhos [Carta], nov. 2014. Disponível em: <http:// terradedireitos.org.br/wp-content/uploads/2014/11/CARTA-DE-NUNCIA-De-onde-brotam-os-espinhos-final.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2016.

CORTE CONSTITUCIONAL, Colombia. Luis Ernesto Vargas (Magistrado Ponente.). Sentencia C-175/09. DEMANDA DE INCONSTITUCIONALIDAD DEL ESTATUTO DE DESAR-ROLLO RURAL – Omisión del deber estatal de consulta previa a comunidades indígenas y grupos étnicos que pueden resultar afectados, 2009. Disponível em: <http://www.corteconstitucio-nal.gov.co/relatoria/2009/C-175-09.htm>.

IBGE. “Censo demográfico 2010”. Características gerais dos indígenas. Resultados do universo. Disponível em: <http://A “nova” Lei n.º 13.123/2015 no velho Marco Legal da Biodiversidade biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/95/cd_2010_indi-genas_universo.pdf>.

SANTILLI, Juliana. “Biodiversidade e conhecimentos tradicionais associados: o novo regime juridico de proteço”. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, ano 20, v. 80. p. 282, out-dez. 2015.

TERRA de Direitos; Articulação Pacari; Movimento dos Peque-nos Agricultores – MPA et al. De onde Brotam as Sementes – Recomendações da Sociedade Civil ao Itamaraty [Carta], set. 2014. Disponível em: <http://terradedireitos.org.br/wp-content/uploads/2014/09/Recomenda%C3%A7%C3%B5es-da-Socieda-de-Civil-%C3%A0-COP-12-e-MOP-7-.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2016.

*Liana Amin Lima da Silva é advogada e doutoranda em Direito Socioambiental (PUCPR). Mestra em Direito Ambiental (UEA) e professora colaboradora da Licenciatura Indígena em Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável, turmas Baniwa, Tukano e Yanomami (Centro Universitário Indígena do Alto Rio Negro, UFAM). Pesquisadora associada do Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (CEPEDIS). 

André Halloys Dallagnol é advogado popular e membro do GT-Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia, do Grupo de Estudos em Agrobiodiversidade do NEAD/MDA, da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO), e suplente, pela sociedade civil, no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).

Feira de troca de sementes organizada pela CAA-NM em Montes Claros, Minas Gerais. Foto: Tania Pacheco.

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