Para os Tupinambá, a luta em defesa do território é por todos. Se a mata for derrubada, os efeitos negativos atingirão a todos os moradores, e não distinguirão indígenas de não-indígenas
“Êee Fábio… imagina tudo isso aqui virar soja”. Com um sorriso algo apreensivo, e um olhar receoso, o comentário de Seu Braz, cacique geral dos Tupinambá no Baixo Tapajós, logo no primeiro dia de intensa caminhada na floresta, era um desabafo sincero acerca dos perigos que rondam a região. Os motivos que levaram o cacique, morador da aldeia de São Francisco localizada na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns (Resex Tapajós-Arapiuns) em Santarém (Pará), a organizar a abertura de uma picada junto a outros guerreiros Tupinambá e demarcar, de maneira autônoma, o seu território milenar são diversos: de um lado, as ameaças crescentes com a expansão do agronegócio, as madeireiras e a mineração, de outro, a inação da Funai e do governo federal para proteger os direitos das populações indígenas.
A realidade nestes quase 20 anos de Resex apresentou outras ameaças aos indígenas e ribeirinhos da região. O ICMBio vem promovendo diversos projetos que ameaçam os modos de vida dessa população em que predomina uma relação íntima com a floresta que lhes pertence, tanto no que diz respeito à abundância da pesca, caça, como na captação de água e sistemas de cura a partir de conhecimentos imemoráveis da sua mata. Recentemente, diversas aldeias e comunidades ribeirinhas se reuniram para debater e barrar duas propostas interrelacionadas: a de financeirizar a floresta pela implementação de um projeto de crédito de carbono e a do plano de manejo a extração de madeireira.
Tais propostas foram rechaçadas pelos indígenas. Eles questionaram a instauração de um projeto de crédito de carbono na Resex, que acarretaria custos ao cortarem uma árvore para fazer uma canoa ou um roçado, invertendo a relação de posse e detenção do território, colocando-os em uma posição de desmatadores para manter seu modo de vida, sendo eles os que mais lutam pela preservação da floresta. Na prática, tal projeto limitaria o acesso dos povos da Resex aos recursos naturais necessários para a garantia do seu modo de vida. Em uma forte mobilização, os indígenas ocuparam a sede do ICMBio em Santarém, e conseguiram a suspensão do projeto.
O Movimento Indígena
Alimentando-nos predominantemente à base de farinha de mandioca e caça da floresta, durante a caminhada e abertura da picada era constante a preocupação para a autodemarcação não ”invadir” o território de outros povos indígenas. Muito embora tenha sido debatido em diversos momentos a criação de uma Terra Indígena única, a saída Tupinambá busca pressionar o governo, e forçá-lo a reconhecer a área como terra indígena própria; assim incentivando outras aldeias a caminharem na mesma direção, fortalecendo a pauta de uma Terra Indígena unificada na atual área da Resex. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) tem sido um dos maiores apoiadores deste processo.
Antropólogos e estudiosos atentam para esse fenômeno social e político que é a rearticulação do movimento indígena na região do Baixo Tapajós e rio Arapiuns. Seu Braz é categórico ao recusar o termo índios emergentes: ”sempre fomos índios”. Depoimentos como o de Dona Nazaré, senhora de 87 anos que sempre viveu na Cabeceira do Amorim e mãe da Cacica Estevina, apontam para o processo violento de colonização e apagamento identitário pelo qual passaram. Tal como sua filha, estabelece uma conexão dinâmica entre os índios do passado, a luta pela qual passaram e o futuro indígena depositado nas lutas políticas atuais e na demanda de uma educação específica para retomar tradições no futuro dos jovens.
Não obstante, muitos políticos, empresários e parte do poder judicial insistem em afirmar que na região não existem mais índios, como se a identidade cultural e os modos de vida fossem passíveis de serem apagados pela violência colonial, e não encontrassem formas de se reinventar como potência crítica aos processos que lhes são impostos.
A proposta de uma Terra Indígena única na Resex, respeitando os outros moradores da região é uma das principais pautas a serem debatidas ao longo deste ano pelo movimento. Uma das questões cruciais é a da negociação com os outros moradores das comunidades e das aldeias, e que não se consideram indígenas. Para os Tupinambá, entretanto, a luta em defesa do território é por todos, pois se a mata for derrubada, ou se o mercado de crédito de carbono for instaurado, os efeitos negativos sobre a caça e a água atingirão a todos os moradores e não distinguirão indígenas de não-indígenas. Assim, a autodemarcação está intimamente vinculada ao que muitos Tupinambá identificam como um modo de ser indígena, e uma recusa a um determinado modo de vida em que o trabalho urbano e a venda e compra de mercadorias têm centralidade. Trata-se de uma organização política de resistência, diante de uma situação de guerra tornada norma.
Luta cosmopolítica
Meu envolvimento pessoal para acompanhar o início da autodemarcação foi demandado pelo próprio movimento e seus apoiadores: fiquei encarregado de ajudar com o GPS a marcar os pontos do território Tupinambá e auxiliar a guiar a caminhada na mata fechada. Conhecedores profundos da floresta e capazes de se guiar pelo movimento das nuvens, os guerreiros Tupinambá logo tornaram evidente que o GPS ali era uma ferramenta secundária na caminhada e que nós – e eu e Daniel (desenhista que também acompanhou a autodemarcação, realizando oficinas com as crianças e os desenhos que acompanham este ensaio) – mais precisávamos de ajuda do que de fato conseguíamos ajudar.
A relação com a terra e o modo de vida a ser protegido são os elementos que mais chamam a atenção nesse embate político. Fundamentais na cosmologia indígena, os Encantados e Protetores das Águas e das Matas são centrais na luta contra as novas formas de exploração de seus territórios. A Mãe D’água, a Mãe da Mata (que muitos identificam como o Curupira) e as visagens são constitutivas da apreensão do mundo ao seu redor e do próprio conflito político na região. Histórias como aquela contada por Seu Edno na noite de ”contação de casos” anterior à subida para a autodemarcação, de um homem que maltratava animais e em um sonho viu-se transfigurado em um porco do mato sendo ele mesmo caçado pode ser considerada uma perfeita variação dos mitos recolhidos pelo antropólogo francês Lévi-Strauss. É marcante a crença em um lago no qual os antigos iam pescar e partiam apenas com uma banda de peixe-boi, deixando a outra metade para os Seres Encantados. Tal lago teria desaparecido, e estaria para ressurgir e liberar outras forças. Esse mesmo lago, segundo alguns, teria ajudado a confundir os aparelhos de medição das reservas de petróleo pela Petrobras.
A autodemarcação é a luta pelo território, para gerí-lo de acordo com suas própria regras e demandas; por uma forma de vida específica, em que a sua relação com a floresta e os Encantados é fundamental, e contrária às imposições de outros modos de vida, marcados pela maior centralidade do comércio e de trocas monetárias. Seu Ezeriel, logo após comentar sobre seu receio de que o futuro de seu território fosse igual àquela terra sem mata que constitui os descampados no Amapá, contou uma piada significativa – com a que termino este texto:
”O doutor estava em um barco, e perguntou para o caboclo, que remava:
Você sabe ler, caboclo?
Não….
Então você perdeu metade da sua vida – disse o doutor.
Depois de duas remadas, o caboclo pergunta:
Doutor, o senhor sabe nadar?
Não!
Então você perdeu toda a sua vida – disse o caboclo”.
Contou Seu Ezeriel.”
Post-scriptum: Thomaz Pedro e Veronica Monachini estão preparando um minidocumentário sobre a autodemarcação Tupinambá. Para os interessados em acompanhar o processo, o material deverá ser lançado ao longo dos próximos meses.
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Fábio Zuker é antropólogo e ensaísta.
Colaborou Felipe Garcia, historiador.
Foto: Thomaz Pedro / Arquivo Pessoal
É possível contatar o autor do texto em https://apublica.org/autor/fabiozuker/.
Boa tarde, gostaria muito de ter mais informações sobre esse assunto e saber qual é a situação hoje em dia, como posso lhe contatar ?
obrigado
Parabéns ao povo Tupinambá por sua pratica de autodeterminação. Tudo que indicam como ameaças e como justificativa para demarcar seu território é mais do que verdadeiro, e na verdade, vale para todos os povos da Amazônia e de todo o país. Por isso, torço para que todos os povos indígenas decidam autodeclarar seus territórios.