Entre 0,1% e 0,15% da população das cidades médias e grandes do Brasil vive nas ruas. Entrevista especial com Ivaldo Gehlen

Patricia Fachin – IHU On-Line

O número de pessoas adultas que moram nas ruas de Porto Alegre cresceu 75% nos últimos oito anos. Esse dado decorre de uma pesquisa realizada desde 2007 pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS em convênio com a Fundação de Assistência Social e Cidadania – Fasc da prefeitura de Porto Alegre. O levantamento mais recente acerca da população adulta em situação de rua, realizado em setembro do ano passado, contabilizou 2.115 pessoas nessa condição. Conforme um dos responsáveis pela pesquisa, o professor de Sociologia Ivaldo Gehlen, da UFRGS, entre 0,1% e 0,15% da população das cidades médias e grandes do Brasil estão em situação de rua.

Uma amostra de 467 pessoas que vivem nas ruas de Porto Alegre responderam a uma entrevista, a fim de se descobrir informações sobre hábitos cotidianos, identidades sociais e étnicas, condições socioeconômicos e culturais, estratégicas de sobrevivência, de trabalho e de renda, formas de sociabilidade, representações sociais, relações e avaliações das instituições e suas principais demandas.

Gehlen afirma que era previsto que a região de maior concentração da população de rua fosse o Centro Histórico, com cerca de 40%, e na sequência os bairros Floresta, Menino Deus, Cidade Baixa e Navegantes. “Em relação aos censos anteriores, observou-se expansão para os bairros, inclusive alguns distantes do Centro, como Restinga e Sarandi”, disse em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-line.

O crescimento dessa população é verificado em várias cidades grandes brasileiras. “Talvez reflitam justamente o fato de haver políticas, mesmo que insuficientes e precárias, de âmbito nacional e municipais, que estimulam as pessoas se apresentarem nesta condição, ou seja, não mais se ocultarem ou viverem muito precariamente em outras condições”, avalia o sociólogo.

Ivaldo Gehlen é bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, especialista em Educação de Adultos e Desenvolvimento Rural Integral pelo Centro Regional de Educação de Adultos Unesco, mestre em Sociologia pela UFRGS e doutor em Sociologia pela Université de Paris X, Nanterre. É professor do Departamento de Sociologia e dos programas de pós-graduação em Políticas Públicas e em Desenvolvimento Rural da UFRGS.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quantas pessoas vivem nas ruas de Porto Alegre atualmente? Como é feito o cálculo para saber quantas são as pessoas que vivem nessa situação?

Ivaldo Gehlen – O censo realizado da população adulta em situação de rua na cidade de Porto Alegre em setembro de 2016 contabilizou 2.115 pessoas nessa condição. Dessas, 357 foram contadas, ou seja, não foram coletadas informações cadastrais porque elas se encontravam dormindo, ou sem condições de prestarem informações ou se recusaram. As informações que caracterizam nos aspectos gerais esta população referem-se a 1.758 cadastrados. Destes, selecionou-se uma amostra representativa de 467 pessoas que responderam a uma entrevista, objetivando compreender seu mundo, ou seja, hábitos cotidianos, identidades sociais e étnicas, condições socioeconômicos e culturais, estratégicas de sobrevivência, de trabalho e de renda, formas de sociabilidade, representações sociais, relações e avaliações das instituições e suas principais demandas.

A realização do estudo foi do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, através de contrato por licitação com a Fasc (Fundação de Assistência Social e Cidadania) da prefeitura de Porto Alegre. Realizou-se detalhada preparação com formação para os técnicos da prefeitura, para os estudantes que participaram e para representantes da população em situação de rua, principalmente suas lideranças e a organização Boca de Rua, que publica um jornal com o mesmo nome. A participação desses representantes foi fundamental para os resultados obtidos e também para validação social do estudo.

Através de reuniões com a Fasc e representantes do movimento da população de rua, definiu-se com detalhes as demandas e expectativas, construiu-se os instrumentos e realizou-se o mapeamento prévio à realização do campo (cadastros e entrevistas). Seis equipes de campo compostas por facilitador (neste caso, um representante da população de rua), um supervisor e três entrevistadores percorreram durante 30 dias os locais identificados ou informados, sendo que no Centro Histórico e nos bairros próximos (Floresta, Bom Fim e Cidade Baixa) foram feitos pelos menos três percursos para cadastro e entrevistas em dias e horários diferentes em cada local. Em bairros como Menino Deus, Santana e Navegantes, pelo menos duas vezes. Nos demais bairros, uma ida ou duas, quando necessário, de uma equipe.

O instrumento previu o registro exato do local onde foi realizado o cadastro ou aplicado o questionário, possibilitando uma visualização bastante fidedigna sobre a distribuição territorial dessa população na cidade. Como previsto, a região de maior concentração é o Centro Histórico, com cerca de 40%, e na sequência os bairros Floresta, Menino Deus, Cidade Baixa e Navegantes. Em relação aos censos anteriores, observou-se expansão para os bairros, inclusive alguns distantes do Centro, como Restinga e Sarandi.

IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades encontradas ao estudar as populações que estão em situação de rua?

Ivaldo Gehlen – O aspecto mais importante para estudo desta natureza, com população heterogênea, dispersa territorialmente e sem endereço, é construir um ambiente de confiança entre todos os pares, no caso agente público municipal, universidade e população em situação de rua, com objetivos e metodologia claros para dar legitimidade aos procedimentos e aos resultados. Este processo é construído com idas e vindas e com compromissos, no caso da UFRGS, há mais de uma década.

Outro desfio é conceitual, no sentido de definição do universo e dos instrumentos. Neste estudo, optou-se pelo Estatuto do Idoso e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente ECA para estabelecer faixas etárias, pelos conceitos relativos a esse universo social adotados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário – MDS e pela acumulação acadêmica – sobretudo da antropologia e da sociologia – para conceitos específicos, como identidade, sociabilidade e visibilidade, e para caracterização sociocultural.

Outros desafios são: o mapeamento prévio à ida a campo é decisivo para precisão da abordagem do universo e para eficiência dos recursos humanos e financeiros; o treinamento de todos os envolvidos no estudo; a informação prévia ao maior números de pessoas do universo investigado sobre a pesquisa e sua finalidade; o controle para evitar repetições ou ausências e, por fim, cuidados na análise, pois os dados nem sempre podem ser tratados analiticamente da mesma forma que os relativos a outros universos já mapeados e de populações com pertencimento reconhecidos.

IHU On-Line – Segundo a Fundação de Assistência Social e Cidadania – Fasc, o número de pessoas adultas que moram nas ruas de Porto Alegre cresceu 75% nos últimos oito anos. Por quais razões o número aumentou e como interpretar esse percentual?

Ivaldo Gehlen – Esse crescimento foi constatado pelos censos que realizamos (o IFCH/UFRGS) desde 2007 para a Fasc. Informações indicam que o crescimento dessa população em percentuais pouco menor ou maior se verifica em várias cidades grandes brasileiras. Talvez reflitam justamente o fato de haver políticas, mesmo que insuficientes e precárias, de âmbito nacional e municipais, que estimulam as pessoas se apresentarem nesta condição, ou seja, não mais se ocultarem ou viverem muito precariamente em outras condições. Bem ou mal, ao se assumirem como sendo “moradores de rua”, passam a ter crescentemente acesso a alguns recursos e políticas que lhes são favoráveis: alimentação, vestimentas, acolhimento e atendimento em saúde. Repito, mesmo que precário, começam a existir e crescentemente acessados por eles.

Outro aspecto a considerar para fins estatísticos é que no Brasil, entre 0,1% e 0,15% da população das cidades médias e grandes estão em situação de rua. Porto Alegre tem cerca de 1,5 milhão de habitantes regulares (maior se considerarmos a flutuante, não residente na cidade, mas que trabalha, busca serviços etc.). Porto Alegre possui atrativos para essa população, como recursos de sobrevivência e renda (forte classe média que usa serviços como guarda de carros, limpeza, coleta de material reciclável etc.) que sustenta boa parte dessa população. Portanto, o número censado está dentro de um percentual previsível e relativamente normal estatisticamente.

IHU On-Line – Quais são os principais fatores que contribuem para que as pessoas optem por morar na rua?

Ivaldo Gehlen – Em relação aos censos realizados em 2007 e em 2011, o de 2016 apontou crescimento significativo, com índice maior neste último em relação ao intervalo de 2007 e 2011, do ponto de vista demográfico. As causas desse crescimento precisam sem investigadas. O estudo, por ser de caráter de diagnóstico, não aprofundou aspectos específicos. As razões pelas quais adotam este “modo” de vida são muito variadas. Cada um tem uma história que, agrupadas, apontam para frustrações (econômicas, familiares, emocionais), para se sentir mais livre para viver como quiser, para dependências de consumos (drogas, álcool), para rejeições etc. Ficou claro que o tempo de vida na rua tem relação direta com adaptações e mesmo adoção e talvez subjetivação desse modo de vida como naturalizado para eles.

O tempo de vida na rua, sobretudo na mesma cidade, se consolida em Porto Alegre como fator de consolidação desse “modo de vida” e atribui conhecimentos que se constituem como um patrimônio sociocultural específico, no qual sentem-se incluídos. Portanto qualquer mudança dessa condição pode constituir-se numa ameaça à identificação com o pertencimento a um ambiente que os acolhe, no qual se sentem relativamente à vontade.

Políticas de mudanças ou de melhoria das condições de vida dessa população serão melhor sucedidas se levarem em consideração o sentimento de pertencimento a esse modo de vida com suas implicâncias. No geral, as políticas atuais não dialogam com essa variável fundamental.

IHU On-Line – Qual é o perfil da população de rua de Porto Alegre? Eles são originários da cidade ou de outras regiões do estado? Permanecem por muito tempo na rua ou não?

Ivaldo Gehlen – A população adulta em situação de rua em Porto Alegre apresenta um perfil muito diversificado do ponto de vista etário (tendencialmente envelhecendo), de pertencimento étnico, de opção religiosa (católica tem maior adesão), de escolaridade e de renda. A escolaridade é semelhante à de população de baixa renda da cidade, cerca de 70% com Ensino Fundamental incompleto ou analfabetos. Quase todos possuem alguma renda, e cerca de 70% declarou receber até um salário mínimo (de setembro de 2016).

Metade dessa população afirmou ter nascido em Porto Alegre, percentual quase 10% maior que em 2007. Houve diminuição do percentual de população feminina de cerca de 20% para cerca de 14%, ou 242 pessoas em 2016. O tempo de moradia em Porto Alegre aumentou, e o tempo que está na rua, também. O tempo de rua é muito importante para políticas de atendimentos a suas demandas, pois quanto maior este tempo, maior o vínculo que estabelecem no sentido de construírem condições e artimanhas de sobrevivência e de segurança. Depois de alguns anos, há perda de vínculos, sobretudo com seu meio de origem e de hábitos, e aquisição de novos vínculos e hábitos. Com o tempo, aprendem as artimanhas desse modo de vida e se ajustam a elas, e passam a reivindicar a partir dessa condição.

Os contatos com familiares ou com as pessoas de convivência no período anterior à rua se alongam e, para cerca de 37%, há mais de 10 anos não tem nenhum contato dessa natureza. Não há, portanto, como transpor o “nosso” conceito de família. Em Porto Alegre, há algumas experiências de criarem vínculos societários entre eles, com compromisso, que chamam de comunidade. Incipientes ainda, mas podem estar apontando perspectivas interessantes.

IHU On-Line – Como os moradores de rua reagem a políticas públicas de assistência, como, por exemplo, aos abrigos oferecidos pelo poder público?

Ivaldo Gehlen – As políticas públicas despertam cada vez maior interesse por parte dessa população, porém, no geral, são percebidas e ou recebidas com controvérsia, sobretudo por serem padronizadas e por refletirem regramentos e interesses da ordem estabelecida. Os lugares protegidos (abrigos, albergues etc.) são utilizados. Mais da metade dorme em lugar desprotegido (praças/parques, marquises, pontes etc.) de forma regular. Cerca de 10% também dorme nestes locais intermitentemente, o que significa que, para cerca de 60%, as políticas de acolhimento e proteção não surtem efeito algum.

No que se refere a outras políticas, como de alimentação e vestuário, de maneira geral estão atendendo às demandas. Em relação às que referem a saúde e bem segurança, porém, o estudo mostrou situação crítica, inclusive de piora, na percepção desses usuários, em comparação aos estudos anteriores. Atender a essas demandas específicas permanece sendo um dos principais desafios para a sociedade e para a administração de Porto Alegre.

IHU On-Line – A que situações de riscos as pessoas que vivem em situação de rua estão submetidas?

Ivaldo Gehlen – Por estarem em condições de desabrigo corporal e de sofrerem preconceito social cotidianamente, os riscos e desafios que enfrentam são correlacionados a esta condição. Afetam suas condições de saúde corporal e muitas vezes mental. A maioria confessa possuir forte medo de risco de vida (“não acordar” de manhã), não poder utilizar determinados espaços ou meios (transporte, praças, áreas de lazer…). O alto índice de consumo de cigarros, de álcool ou de drogas pode ser manifesto dessas condições ou sensações de risco constante.

IHU On-Line – Há crianças e adolescente também vivendo na mesma situação?

Ivaldo Gehlen – O estudo contemplou também o censo de crianças e adolescentes (conceituados pelo ECA) em situação de rua de Porto Alegre. O resultado mais impactante, e originalmente não esperado, é a fortíssima diminuição dessa população nos últimos oito anos. De um total de 383 cadastrados em 2008, para 27 em 2016. A metodologia do campo foi a mesma, ou seja, o percurso de toda a cidade mapeada como havendo informações ou indícios de presença de pessoas pertencentes a esse universo.

Reproduzo um trecho do relatório da pesquisa Cadastro de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua de Porto Alegre – 2016: “Reconhecer a existência social de crianças e adolescentes em situação de rua em Porto Alegre, por todos, como cidadãos que integram nosso cotidiano e devam usufruir dos direitos e das condições saudáveis de vida permanece como tarefa comum, de todos nós, além das responsabilidades das instituições. A responsabilização não pode ficar adstrita aos órgãos públicos ou instituições que prestam serviços formalmente para essa população. A superação de políticas assistencialistas, objeto de esforços nas últimas três décadas em Porto Alegre, não pode esmorecer e ser substituída por métodos de controle social punitivos ou restritivos, mas devem consolidar-se em cultura da cidade para acompanhar suas demandas e as transformações dos complexos processos sociais que as configuram, na sua dramaticidade e luta cotidiana”.

IHU On-Line – Considerando suas pesquisas com população de rua em Porto Alegre desde 2004, o que o senhor tem percebido ao longo desses 13 anos sobre o desenvolvimento dessa população na cidade?

Ivaldo Gehlen – É uma experiência muito interessante como pesquisador. Além do desafio metodológico (“coisa para louco”, nos diziam lá no começo), é gratificante observar como seus resultados mobilizam a cidade de Porto Alegre, tanto os meios de comunicação, quanto instituições, quanto a população em geral. Numericamente pouco expressivo, esse universo ocupa um “lugar” territorial (físico e simbólico) importante na cidade. Não há quem não tenha vivido alguma experiência, contato, conversa, observação de soslaio ou em forma de desafio, observado seus cachorros bem cuidados e fiéis aos donos, trocado algo, parado diante do noticiário para ouvir sobre eles, lido uma reportagem ou artigo acadêmico, lamentado a violência gratuita sobre algum deles etc. A presença diuturna de uma quase negação da existência provoca desacomodações, despertam sentimentos humanos.

Perceber e mostrar com dados e informações o grau e a profundidade do pertencimento deles na cidade, o compromisso com a preservação ambiental que lhes dá abrigo e sombra, com a coleta dos resíduos recicláveis que produzimos, com a crescente consciência coletiva de uma identidade em construção e de um desafio cotidiano que expressam através de suas precárias condições, que os mantêm vivos, alguns por mais de 30 anos na rua desafiando essa precariedade.

Os estudos estão sendo utilizados pelo chamado movimento dos moradores de rua, suas organizações, pelas ONGs solidárias, por jornalistas, políticos e pessoas do direito institucional para posicionar-se e por vezes proporem iniciativas ou no mínimo questionamentos sobre esse tema ou campo social.

IHU On-Line – Muitos especialistas que atuam com pessoas em situação de rua costumam dizer que essa população é invisibilizada pela sociedade. Como deveríamos lidar com essa questão para diminuir o contingente de pessoas que vivem em situação de rua?

Ivaldo Gehlen – População em situação de rua existe em todas as sociedades, não somente nas cidades, mas também nos espaços não citadinos (trecheiros, andarilhos, biscateiros…). Há maior concentração nas metrópoles, pois as condições objetivas de sobrevivência, de invisibilidade ou anonimato são mais favoráveis. No Brasil, o Ministério do Desenvolvimento Social e AgrárioMDS contempla com apoio a políticas para essa população às cidades com mais de 200 mil habitantes. Um arbítrio inaceitável, discriminatório, inumano e gravíssimo.

A questão central me parece ser a de oferecer políticas de bem-estar e compensatórias, para que tenham garantido seus direitos de cidadania, sem impor uma condição civilizatória. Valorizar as experiências e escutar suas demandas, por mais simples que sejam, como, por exemplo, banheiros abertos 24 horas, acesso fácil a água potável, acesso fácil aos serviços de saúde, políticas de estímulo a renda de trabalho ou social, entre muitas iniciativas que certamente surgirão como numa rama de melancia, em que o desabrochar de uma fruta libera a rama para novas frutas.

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