Especial Vigilância: Um infiltrado na vila Autódromo

Como um guarda civil tentou dar uma de James Bond e acabou expulso da comunidade que resistiu à Olimpíada

Por Gabriele Roza e Giulia Afiune da Agência Pública

Quando um guarda municipal à paisana entrou na casa de Maria da Penha Macena, uma das principais lideranças da Vila Autódromo, já fazia anos que a comunidade estava ameaçada de remoção pela prefeitura do Rio de Janeiro comandada por Eduardo Paes (PMDB). Grande parte das 500 famílias que viviam na comunidade vizinha ao Parque Olímpico já havia sido removida para dar lugar a vias de acesso ao complexo esportivo. Depois dos Jogos, o local seria cedido a um consórcio entre Odebrecht e Carvalho Hosken para construir ali torres de apartamentos de luxo.

Por tudo isso, aquela quarta-feira, 24 de fevereiro, não foi fácil para os moradores da Vila. Pela manhã, fora derrubada a Associação de Moradores da Vila Autódromo, apesar de um protesto organizado pelos residentes. Era um sinal de que as poucas casas que restavam na comunidade em breve encontrariam o mesmo fim.

A casa de Maria da Penha estava cheia. Moradores, ativistas, jornalistas e apoiadores de toda parte se reuniam ali para defender a comunidade contra as investidas da prefeitura. Havia uma mesa para servir café a todos no pátio da casa, e o chão estava tomado por colchonetes e sacos de dormir. Como a expectativa era que a ordem para a derrubada da casa saísse a qualquer momento, muitos apoiadores passavam a noite no local. “A dona Penha é uma das principais lideranças lá da Vila Autódromo, e a casa dela, que era um dos últimos bastiões de resistência, estava ameaçada. Então, o clima estava bem tenso”, relata a advogada Mariana Medeiros.

Luiz Claudio Silva, marido de Penha, conta que estava fora de casa quando foi chamado por um morador por volta das 9h30: “Alguém bateu no meu ombro e falou: ‘Tem um cara da Guarda Municipal de espião lá dentro da sua casa’”.

O homem entrara despercebido na casa de Luiz e Penha. Não usava farda, e sim roupa comum: bermuda, camisa polo azul-clara e óculos. Moradores relatam que ele subiu até o segundo andar, entrou nos quartos, foi até a laje e tirou fotos da residência. Nathalia Silva, filha de Penha e Luiz, lembra:

“Quando o rapaz desceu, uma apoiadora perguntou:

– O senhor é de onde?

– Sou jornalista.

– Tá, mas de qual mídia?, ela perguntou. Aí ele enrolou para falar.

– Não… mídia alternativa…”

Segundo Nathalia, o senhor voltou a ser indagado a respeito do site para o qual dizia trabalhar. “Mas não quis dizer o nome”, lembra. Percebendo a movimentação, outro morador, Allan Augusto Pereira, fechou o portão da garagem para que o homem não saísse. Quem estava por ali foi se juntando em volta, cobrando que ele se identificasse. “Todo mundo pediu para ele mostrar a identidade e ele não quis”, relata Nathalia. “Ele não quis se identificar, quis sair e ainda disse – o que eu achei um disparate – que a gente estava proibindo ele de ir e vir e que estava fazendo cárcere privado. Aí eu falei: ‘Óbvio que ele é um espião’. Ali a ficha caiu pra todo mundo. Eu e todos os presentes sacamos que ele estava mentindo, que era uma farsa”.

O homem conseguiu escapar do cerco dos moradores na garagem, mas continuou sendo seguido e cercado pela rua. Os moradores exigiam que ele apagasse as imagens que fez dentro da casa – e que enviara para um grupo de WhatsApp cujo nome era “Equipe II”. “Ele entrou por livre e espontânea vontade, sem ninguém convidar. Ele invadiu a minha casa. A verdade é essa”, diz Nathalia.

“Ele estava claramente mapeando o que estava acontecendo lá dentro para organizar a diligência de desocupação. A prefeitura tem contado com o apoio da Guarda Municipal para fazer essas diligências. O que, inclusive, nem é competência da Guarda Municipal”, explica a advogada Mariana. A tensão daquele momento pode ser observada neste vídeo, filmado por uma testemunha e obtido pela Pública.

Allan conta que, quando o grupo chegou à saída da comunidade, o senhor entrou em um carro branco, identificado com uma placa da prefeitura. “Quando percebemos que o carro branco era dele, o Delmo [outro morador] entrou na frente do carro branco e ele acelerou. Aí o Delmo, esperto, pulou e se pendurou no capô.” Allan relata que o carro só parou perto de uma viatura da Polícia Militar.

Os moradores então pressionaram a PM para que o homem fosse levado para a delegacia, pois queriam registrar um boletim de ocorrência. Após alguma discussão, conseguiram que o caso fosse encaminhado ao 42o DP, no Recreio dos Bandeirantes (confira abaixo).

“Chegando na delegacia, ele se identificou como guarda municipal”, relata Allan. “Aí eu falei para o inspetor: ‘Então tá acontecendo algum engano, porque lá ele se identificou como mídia e aqui se identificou como guarda? Falsidade ideológica é crime’.” O servidor municipal, chamado João Calvino Freitas de Souza, rejeitou as acusações.

Segundo Luiz Claudio, a delegada na época, Adriana Belém, não queria registrar o BO, argumentando que não havia necessidade. “Ela falou que não caracterizava invasão de domicílio nem ameaça. Mas eu acho que é muito ameaçador. É aterrorizante uma pessoa que você nunca viu na vida, um estranho dentro da sua casa…”, diz. Os moradores da Vila Autódromo tinham uma relação conflituosa com a delegada, responsável pela região, por causa da sua proximidade com uma das mais conhecidas porta-vozes da prefeitura, Marli Peçanha. No Facebook de Marli, por exemplo, as duas aparecem posando juntas para fotos. (Naquele mesmo dia, Marli Peçanha comandou outra demolição na Vila e foi flagrada pela Pública afirmando: “Eu sinto o cheiro desse povo de longe”.)

Por insistência dos moradores, a delegada registrou o BO, depois de ter ouvido o testemunho dos envolvidos. A advogada Mariana Medeiros vê indícios de crimes na atuação do Guarda Civil à paisana: “Poderia ser imputado como invasão de domicílio, porque ele não foi convidado a entrar na casa, e talvez falsidade ideológica, porque ele estava disfarçado”. Porém, o caso nem foi investigado, segundo apurou a reportagem.

De acordo com os registros da ocorrência da 42o DP,  a delegada Adriana Belém, não considerou o caso um crime e suspendeu a investigação por atipicidade depois de ter ouvido os envolvidos Luiz Claudio, Delmo Oliveira e o guarda João Calvino Freitas de Souza. A reportagem encontrou no Diário Oficial que João Calvino é guarda municipal e concluiu o curso de Atividade de Inteligência Operacional da Guarda Municipal do Rio de Janeiro em novembro de 2015, na Academia da Guarda Municipal, sede da GM-Rio, em São Cristóvão. Segundo o termo de declaração de Luiz Claudio, abaixo, o depoimento foi tomado no dia 24 de fevereiro às 12h pelo inspetor Rafael Albuquerque Silva.

Luiz Claudio e Nathalia acreditam que a infiltração de um guarda municipal em sua casa foi mais uma estratégia que a prefeitura encontrou para forçar os moradores da Vila Autódromo a sair de suas casas. “A gente se sente invadido, né? Colocar uma pessoa da sua tropa lá dentro à paisana para vigiar?”, critica Luiz Claudio. “É uma estratégia que usam para atingir seus objetivos mais sórdidos, sem limites”, opina o morador.

Esta reportagem faz parte do Especial Vigilância da Agência Pública. Acesse apublica.org/vigilancia para saber mais e navegar pelas páginas interativas.

Imagem: Diversas manifestações foram realizadas na Vila Autódromo contra a remoção da comunidade (Foto: Reprodução/Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro)

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