A Academia está sempre de portas abertas para os privilegiados

Gizele Martins – RioOnWatch

Historicamente a academia é um espaço ocupado apenas pelos privilegiados: por ricos e pela classe média. No Brasil, nós que somos das periferias e favelas, só estamos conseguindo entrar nesse espaço há um pouco mais de uma década pelo sistema de cotas. E isso não foi por bondade dos governantes, foi por causa da luta histórica dos movimentos negros do nosso país.

O universo da academia é por natureza exclusivo. Lá não somos bem-vindos e isso é mostrado no dia à dia na forma de tratamento ao nosso povo. Esse espaço cobra produtividade, artigos, apresentação de trabalho, viagens, conhecimento de outros idiomas… cobram pontualidade em um horário de aula que é só durante o dia. São xérox e mais xérox de textos para ler em menos de uma semana, são livros e mais livros exigidos a todo momento. Não, eles não querem saber se a gente necessita dividir o tempo dos estudos com o trabalho de telemarketing, com o trabalho de resistência na busca pelo direito à vida na favela, com o trabalho de caixa de supermercado, com o trabalho de oito horas por dia que nos consome.

Também não somos bem-vindos nos conceitos dados em sala. A didática e as referências são opressoras. O formato das cadeiras em sala de aula já mostra isso: é hierárquico. A literatura é, em sua maioria, de escritores europeus. Estes colonizaram o Brasil, foram opressores e exploradores da cultura popular, da minha vida. E o que eles “ensinam” em textos carregados de clichês sobre minha realidade, não me representa.

A academia perpetua a opressão e o racismo. Não respeitam a nossa cultura. A tal oralidade que eles tanto romantizam em sala de aula, não serve nem para o formato de texto que eles pedem. Por que não posso escrever da forma que eu quero no artigo acadêmico? Estou acostumada com um tipo de linguagem que valorizo na minha cultura, nordestina, negra, indígena, favelada. Falo gírias, minhas referências estão no funk. Em casa, é Carolina Maria de Jesus, é a Orosina Vieira, a primeira moradora da Maré. É Ilda Felix, minha vó. É Carmem Lúcia, minha mãe. É a sabedoria delas que eu quero rechear meus artigos, mas eu quero só as delas, apenas as delas, porque foram elas que ensinaram e deram os seus conhecimentos para muitos outros, que não fazem parte desse espaço de resistência. Os conhecimentos delas foram “interpretados” por outras e outros e isso não me serve.

A academia necessita perceber que os costumes vindos dessa população que resiste, por exemplo, há 100 anos nas favelas do Rio, são saberes que devem ser valorizados, aprofundados e, acima de tudo, respeitados, mas sem qualquer uso do estereótipo. É preciso que a favela seja protagonista da sua própria escrita, fala. Se não for assim, não haverá diversidade, e apenas imposição dos costumes dos que nos oprimem por séculos.

Os que sempre tomaram esse espaço do ensino público acadêmico, também não nos aceitam em sala de aula, nos desqualificam dizendo que só temos ódio, que somos revoltados. A cada palavra racista que rebatemos, nos desqualificam, sempre aproveitando o momento da sala para falarem da quantidade de livros que eles leram no final de semana, ou que passaram um mês viajando pela Europa com o dinheiro da bolsa que ganharam porque tiveram tempo e passaram em primeiro lugar no curso.

Não, a academia não nos aceita, mas a gente precisa ocupar cada dia mais aquele espaço e mostrar todos os dias que temos sim nossas referências, que temos sim nossa forma de falar, de escrever, de se comportar. Que conhecimento mesmo é o que construímos no dia a dia, sem ignorar a sabedoria de muitos livros, fato.

Mas só isso não me serve. Afinal, eu faço parte de uma vida ou luta por sobrevivência que é muito real. O tiroteio atravessa inúmeros corpos todos os dias na minha favela, a Maré. A falta de luz é outra dificuldade que temos na favela. O computador e a internet ainda são muito caros. A falta de grana para pagar a passagem, é outro desafio. São inúmeros os desafios, são várias as nossas lutas que temos, e teremos que travar ainda para mudar esse espaço.

Vamos mudar, mas esta não é e não pode ser uma luta individual. Nosso diploma deve servir como exemplo de força e luta de um povo que resiste há mais de 500 anos só nesse país. Vamos ocupar aquele espaço, vamos dividir nosso conhecimento com quem ainda não conseguiu estar nele. Este espaço necessita ser nosso, ele ainda vai ser nosso por inteiro! Queremos um dia mais professores com cara de povo, mais alunos com cara de povo!

Comments (3)

  1. O hermetismo da academia é clássico, histórico, “denunciado” há muitos séculos. Não tem muito a ver com a sua posição de pessoa oriunda das periferias. O termo “pintura acadêmica” por exemplo, se refere àquela pintura feita com maestria mas sem nenhuma imaginação, meio que um dever de casa obtuso. O que me impressiona nesse artigo de opinião não é a acusação de elitismo da academia. É tentar entender por que a autora precisa tanto da legitimação da academia? Os problemas de flata de dinheiro para xérox e domínio de idiomas são problemas estruturais de fato e não só para os alunos periféricos. A Universidade deve sanar da melhor maneira possível com boas bibliotecas, cursos de extensão em idiomas. Mas a reclamação sobre o uso da linguagem acadêmica ao invés da linguagem de rua é mimimi, desculpe a sinceridade. A linguagem acadêmica é isso mesmo, é formal, é mais obtusa, é mais quadrada, se move mais lentamente que a dinâmica da linguagem oral. Ou a autora acha que os professores não falam gíria? Não falam palavrão?

    Acusar a universidade de elitismo por cobrar produtividade… bom, ok, saia dela e procure emprego na iniciativa provada. Você vai ver o que é cobrar produtividade.

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