Por Justificando
, noNão há como fugir da derrota grandiosa sofrida por Dilma, pelo PT e pela esquerda no campo internacional. Entre a sucessão de erros cometidos, a incapacidade de mobilizar apoio para caracterizar como “golpe” o que acontecia no país, e contra a pauta de retrocessos responsável por entronar Michel Temer. O desenrolar dos fatos no Brasil encaixava-se perfeitamente na narrativa internacional progressista, que viu-se surpreender com Brexit e Trump. Os olhos estarrecidos voltaram para o Norte global, deixando o ultraje à democracia correr no Brasil. Esse processo de normalização continua.
Várias vozes dentro do governo, do partido e da causa dos direitos humanos pleitearam algum tipo de reação internacional. Possivelmente dissuadida por um grupo de apoiadores mais próximos, Dilma não se engajou internacionalmente como deveria. Enquanto José Serra catapultava seus simpatizantes no Itamaraty para os quatros cantos do mundo e Temer acenava com Flávia Piovesan para a comunidade internacional de direitos humanos; Dilma e o PT faziam tímidos esforços de comunicação. O resultado é cada vez mais aparente.
Essa semana, o mundo testemunhou o Brasil de Temer ser eleito para uma vaga no Conselho de Direitos Humanos da ONU. O mesmo Brasil da crise prisional, dos direitos trabalhistas e previdenciários dilacerados, da política de contenção de gastos violadora de direitos econômicos, sociais e culturais. A um governo sustentado pela Bancada da Bala, da Bíblia e Boi; que nomeou em Alexandre de Moraes a maior ameaça às liberdades democráticas a ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal, foi dada a honra de ser um dos 47 países a deliberar sobre direitos humanos internacionalmente.
Essa validação não ocorreu por acaso: fez parte de uma estratégia internacional que em muito superou àquela executada pela esquerda.
Os estrategistas de Temer viram que a resistência internacional contra os retrocessos em Direitos Humanos seriam a última barreira de legitimidade a ser superada.
Fazia sentido ter alguém como Flávia Piovesan na articulação dessa campanha, de forma a assegurar ao mundo que não haveria mudanças bruscas nas mãos de um ideólogo anti-direitos. Na maré de retrocesso que seguiu, porém, tornou-se importante desgrudar a imagem de Temer da camarilla de homens brancos e ricos que puxa os títeres de seu governo. Em plena campanha pela membresia do Conselho de Direitos Humanos, Temer anteviu a oportunidade que se apresentava. Reverteu um de seus primeiros retrocessos, reestabelecendo um Ministério de Direitos Humanos, elevando ao cargo de Ministra a tucana Luislinda Valois, uma das primeiras desembargadoras negras do país.
Se de Flávia Piovesan interessava o conteúdo, em Valois Temer viu o semblante certo para um ministério de fachada. Era o rosto da diversidade necessário para encobrir a destruição dos recortes de gênero e raça nas políticas públicas brasileiras.
Seu discurso na ONU essa semana não mais fez que confirmar essa tese. A mandatária começa por citar seu próprio exemplo de mulher negra rompendo obstáculos para chegar onde chegou. Projeta, assim, a ideia de um Brasil justo com as mulheres, com os negros. Faltou a menção da atual proporção de mulheres ou negros em cargos de liderança nos três poderes e na iniciativa privada; e a alarmante taxa de homicídios de jovens negros no país. Se representasse mesmo as aspirações desses segmentos, ou se estivesse em harmonia com os movimentos sociais que os de fato representam, Valois teria utilizado essa oportunidade para abordar criticamente os problemas reais sofridos pela população brasileira.
Em vez disso, a Ministra passa uma parte considerável do tempo justificando perante o mundo a estabilidade das instituições brasileiras, a continuidade da democracia. Fala de “responsabilidade fiscal” para se referir à política de contenção de gastos sociais insculpida por Temer em nossa constituição, em violação às obrigações brasileiras em direitos sociais, e que foi amplamente criticada por especialistas de todo o mundo, inclusive da própria ONU. Falou em “fortalecimento” da previdência sob Temer; maquiando assim os dois maiores retrocessos em direitos humanos sofridos na última década.
Somente após se despir de legitimidade, se engajou nas pautas de direitos humanos já encrustadas na doutrina internacional brasileira, seguindo o roteiro compilado pelo Itamaraty. Cometeu gafes reveladoras, como por exemplo ao citar várias formas de discriminação e omitir referência à identidade de gênero ou orientação sexual. E deixou de levantar o combate a fome mundial, onde o Brasil tem sido exemplo, enquanto bandeira de luta continuada.
O discurso de Valois foi apaixonado na defesa da língua portuguesa, na liberdade de religião e consciência, e no combate ao racismo e outras formas de discriminação. Foi propositiva ao apoiar uma nova conferência contra o racismo, atendendo uma demanda pungente do Sul Global, a quem se referiu especificamente, em que pese os esforços de José Serra para quebrar o paradigma de cooperação Sul-Sul iniciado nos governos do PT. Além de próximos pessoalmente para a Ministra, são temas de boa ressonância com parceiros internacionais do Brasil, e seguem a cartilha de desviar a atenção dos problemas específicos ao governo Temer. Prestidigitação diplomática, em sua forma mais ardilosa.
Enfim, em sua superfície, visto por quem não vive no país, foi um discurso padrão. Essa superfície é, afinal, todo o objetivo de Temer no Ministério de Valois. O mundo virou seus olhos para o Brasil, e não viu nada preocupante: viu mulheres negras conquistando espaço, combate a corrupção, boa governança e comprometimento com pautas importantes de direitos humanos a nível internacional. Para nós, brasileiros, vendo a destruição das políticas públicas de direitos humanos pelo governo agora referendado globalmente, o som que veio do pódio em Genebra não fez mais do que ocultar nossa voz dos ouvidos do mundo.
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Leonardo Soares Nader é doutorando em Direitos Humanos e Política Global pela Scuola Superiore Sant’anna, em Pisa, na Itália. É mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela UPEACE e pela Universidade de Oxford.
Foto: Palácio do Planalto