Na segunda-feira 6, um casal da etnia foi atropelado e morto por um caminhão madereiro. Leia o relato do antropólogo Maycon Melo sobre o caso
Por Felipe Milanez, no Carta Capital
O povo Gavião Pyhcop catiji (Pykobjê), no Maranhão, grita por socorro. Suas terras, assim como dos Kaapor, dos Guajajara, dos Áwa Guajá e de populações quilombolas e camponesas, estão sendo invadidas e saqueadas.
Nesta segunda-feira 6, um casal, José Caneta Gavião (Cu Carut, entre seu povo) e Sônia Vicente Cacau Gavião (Cry Capric), foi atropelado e morto por um caminhão madeireiro. O crime aconteceu na cidade de Amarante do Maranhão, a mais próxima da Terra Indígena Governador, e indígenas do povo Gavião reconheceram tanto o caminhão, quanto o motorista, pelas práticas ilegais de extração de madeira dentro do território.
Essa é a terceira morte por atropelamento no último ano que os indígenas atribuem a represálias por suas ações contra madeireiros.
Recentemente, a Comissão Pastoral da Terra divulgou que o Maranhão foi o segundo estado mais violento em conflitos no campo no ano passado, com pelo menos 12 assassinatos (em Rondônia, primeiro lugar, foram 17), ultrapassando o violento Pará em número de mortes.
Foram 56 assassinatos em 2016. Um dos casos mais emblemáticos foi o assassinato da liderança quilombola Zé Sapo, em 31 de março, além de uma onda de assassinatos de indígenas Guajajara com seis mortes na sequência.
Se uma ação de combate a madeireiros ilegais do Kaapor ganhou as mídias internacionais em 2015, graças a uma série de fotografias do combativo fotografo Lunaé Parracho, há muitas outras batalhas que estão acontecendo de forma anônima na Amazônia maranhense.
Abaixo, o relato do antropólogo Maycon Melo, que trabalha há quatro anos com os Gavião no Maranhão e tem testemunhado a garra dos indígenas na defesa da floresta e a ação dos “Guardiões do território Pyhcop catiji”.
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A agonia da etnia Gavião
Por Maycon Melo*
Nesta segunda-feira 06, na cidade de Amarante do Maranhão, um homem, José Caneta Gavião (com nome de Cu Carut entre seu povo) e sua esposa, Sônia Vicente Cacau Gavião (com nome de Cry Capric), indígenas da etnia Gavião Pyhcop catiji (Pykobjê), foram atropelados por um caminhão madeireiro e morreram no local.
Carregado de toras extraídas ilegalmente da terra indígena Governador, o motorista fugiu sem prestar socorro e ainda não foi identificado pelas autoridades — mas foi reconhecido por indígenas que testemunharam o crime. O duplo homicídio é mais um crime que vem a agravar a trágica situação enfrentada pelos povos indígenas no estado frente ao avanço da madeira ilegal e do desmatamento
Em dez anos, a Amazônia maranhense perdeu 60% de sua cobertura vegetal. Este brutal desmatamento devasta o que resta das florestas em reservas, APP’s e terras indígenas. As maiores vítimas desse saque estão sendo os indígenas e camponeses que estão sendo assassinados por tentarem impedir esses crimes ambientais.
O povo Gavião Pyhcop catiji (Pykobjê) que vive na TI Governador é um dos afetados pelas máfias de madeira. Cansados de ver sua terra invadida e da apatia dos órgãos responsáveis pela fiscalização, formaram um grupo para monitorar e proteger seu território: “Guardiões do território Pyhcop catiji”.
Seguem o mesmo caminho dos Urubu Kaapor, no mesmo estado — que ganharam notoriedade internacional ao ter uma de suas operações de combate a madeira ilegal retratados pelo fotógrafo da Reuters Lunaé Parracho. E os Tenetehara—Guajajara, que tiveram seis vítimas assassinadas ano passado por madeireiros (leia aqui sobre a onda de assassinatos).
Essa resistência dos Gavião e a omissão dos aparelhos repressivos do Estado para combater as ilegalidades têm aumentado o risco de conflito armado dentro da mata e já resultou em ao menos três mortes.
No início desse ano, a equipe indígena de monitoramento, chamada “Guardiões do território Pyhcop catiji”, localizou um ramal na floresta feito pelos madeireiros onde ocorria grande retirada de madeira. Os Guardiões, um grupo criado pelos próprios indígenas em 2015 para combater a madeira ilegal, cercaram a área, expulsaram os madeireiros e apreenderam caminhões, motos, equipamentos e muita madeira pronta a ser transportada. Em seguida, os Gavião protocolaram no dia 17 de janeiro uma denúncia junto ao Ministério Público Federal — até hoje sem qualquer resposta.
Nas fiscalizações, os indígenas localizaram quatro pontos de desmatamento no interior da TI Governador: Jurema, Santa Quitéria, Jatobá e Feijão.
Em fevereiro, visitei um destes acampamentos, no Feijão. São quase 20 quilômetros de “arrastão”, que percorrem estradas largas abertas pelos madeireiros dentro da floresta. Estas vias sobem e descem aclives, contornam brejos e, e ainda utilizam madeira ilegal para pontes, garantindo permanente fluxo de caminhões carregados mesmo no período das chuvas. As madeiras procuradas são Aroeira, Sucupira, Ipê, Jatobá e Capitão do Mato, essa última usada na produção de carvão que é consumido pelas siderúrgicas de ferro gusa.
Marcelo Gavião, um dos Guardiões indígenas, diz que há muito tempo os madeireiros estão nesse ramal do Feijão. Primeiro, eles localizam as árvores usando motos; em seguida, constroem, estradas , derrubam as árvores e preparam o carregamento. O trabalho dos madeireiros começa no fim do dia e se estende noite adentro; o transporte da madeira é feito de madrugada.
Apenas no ramal do Feijão os Guardiões conseguiram resgatar “três carradas” de madeira, o equivalente à carga de três caminhões de porte médio, mas contam que uma quantidade muito maior de madeira foi transportada pelos madeireiros antes dessa ação.
Na ponta oposta da TI Governador, no local chamado Santa Quitéria, os Guardiões localizaram uma carvoaria dentro dos limites de seu território, queimando madeira derrubada daquele mesmo local. Na localidade Jatobá, um fazendeiro roçou quase três quilômetros dentro da TI e plantou milho, arroz e mandioca.
Segundo alguns dos “Guardiões” mais velhos que estiveram no local, o próprio marco que delimita as terras dos Gavião foi deslocado para dentro dos limites da terra indígena, aumentando ainda mais a área plantada do fazendeiro.
Ninguém tem certeza sobre quem são os envolvidos, mas os indígenas possuem pistas da finalidade da madeira ilegal que sai da TI Governador. E não se trata de madeira para exportação, mas para o mercado local e informal. Roberto Gavião conta que essas árvores da Amazônia maranhense são retiradas para servir de estaca em cercas, currais e na construção civil, justamente por sua durabilidade.
A maioria delas não chega a marcenaria alguma, são vendidas diretamente nas propriedades ou em pequenos comércios de cidades e povoados ao redor de Amarante do Maranhão em um percurso de 150 quilômetros até a cidade de Imperatriz.
Acuados dentro de sua própria terra os Gavião sentem medo de se deslocar pela mata nas proximidades dos ramais madeireiros. O medo de frequentar as extremidades da TI se estende nos deslocamentos ao município de Amarante, onde são afrontados por políticos, comerciantes e, claro, fazendeiros e madeireiros envolvidos na extração ilegal de madeira.
Quase todas as 11 aldeias na TI Governador estão próximas de ramais madeireiros. O arrastão no Feijão fica a menos de 20 km da Aldeia Governador, e no fim do dia é possível ouvir o barulho de motosserras e caminhões.
Em 14 de fevereiro, o Conselho Missionário Indigenista (CIMI) publicou reportagem na qual as lideranças do povo denunciam que a extração ilegal de madeira é realizada em uma forma de acordo entre fazendeiros, madeireiros e donos de carvoarias (leia aqui) .
Nos últimos anos, a violência tem aumentado cada vez mais. Em 2013, [os Gaviões] se organizaram e apreenderam dois caminhões, um trator, motos, motosserras e madeira retirada ilegalmente em suas terras. Sem ação da Policia Federal, foi criado um cenário de terror nas aldeias. Na cidade, não eram atendidos em certos estabelecimentos comerciais e nem pelos serviços públicos, como em saúde e educação.
O estopim das ameaças aconteceu em uma noite quando cortaram os fios de eletricidade que vai para a TI Governador, deixando todas as aldeias sem luz, sem água e com medo de uma invasão. Segundo Roberto Gavião, foi preciso um contingente de 30 carros da Policia Federal para recolher os veículos, equipamentos e madeira apreendidos na Aldeia Governador, já que os fazendeiros e madeireiros bloqueavam a estrada e impediam a passagem.
Ao menos três indígenas foram mortos em razão de se oporem à atividade madeireira ilegal . Ano passado, o cacique da Aldeia Riachinho, Joel Gavião, foi encontrado morto ao lado de sua moto depois de uma colisão na rodovia MA 122 — o motorista do outro veículo fugiu sem prestar socorro.
Nenhuma pericia foi realizada, e como o cacique era contrário aos desmatamentos, indígenas acreditam que sua morte está diretamente relacionada às ameaças que ele recebia. Da mesma forma creditam aos madeireiros a responsabilidade pela morte do casal atropelado em março de 2017.
Segundo Marcelo Gavião e outros indígenas com quem tenho convivido nos últimos quatro anos, a única solução para por fim aos conflitos deve ser não só a fiscalização da área já demarcada, como a demarcação de partes do território que, por erros e corrupção do passado, ficaram de fora. Entre as áreas tradicionais não demarcadas estão justamente antigas áreas de caça e pesca fundamentais para sobrevivência do povo.
Essa revisão de um erro histórico já possui um relatório de identificação e delimitação, ainda não publicado pela Funai. Indígenas atribuem as invasões e os conflitos também à morosidade da revisão da demarcação.
Os Gavião estão gritando por socorro, pedindo ajuda para proteger a floresta. Mas, também estão dispostos a ação direta, mesmo sabendo que além da floresta, suas vidas também podem ser tombadas por mãos brancas.
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*Antropólogo e doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Maranhão.
o: Guardiões do território Pyhcop catiji / Divulgação