Por Roberto Amaral, no Brasil 247
O que correntemente denominamos ‘Estado de Direito democrático’, pois há ‘Estados’ para todos os gostos e um extenso cardápio de ‘direitos’ – nossa última Ditadura Militar (1964-1985), por exemplo, era um Estado definido como burocrático-autoritário -, distingue-se pelo fato de estar assentado em uma ordem jurídica legítima, isto é, derivada da soberania popular, e democrática, assim caracterizada pelos direitos assegurados, em igualdade de condições, a todos os cidadãos.
Um desses direitos é a existência de uma ordem jurídica conhecida e estável, fundada numa legislação democrática e igualmente conhecida e numa jurisprudência estabelecida, também estável e também conhecida, construída pelo pronunciamento reiterado dos tribunais.
Por trás de tudo isso e dando-lhe fundamentação filosófica, está a clássica divisão tripartite dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), com suas competências privativas que, na democracia, não podem ser invadidas.
A ordem constitucional depende da chamada “harmonia de poderes”: compete ao Legislativo formular as leis, ao Executivo aplicá-las e ao Judiciário vigiar sua execução (é o que se chama de controle jurisdicional).
Todo esse mecanismo – cujo objetivo é assegurar a ordem jurídica democrática – assenta-se nos textos constitucionais, cuja legitimidade decorre de sua origem, a soberania popular expressada mediante uma Assembleia Constituinte.
Nessa engrenagem, cumpre a uma Suprema Corte, no topo do Poder Judiciário, assegurar a incolumidade da ordem jurídica constitucional e democrática, que impera sobre todos os poderes e sobre a sociedade e seus agentes.
Quando essa segurança – ditada por um direito (leis e jurisprudência) conhecido e estável – cessa, desaparece com ela o Estado de direito democrático e emerge o Estado de exceção.
Assim, não há mais como falar em Estado de direito democrático quando a Suprema Corte, por ofício guardiã da constitucionalidade, invade a competência dos demais poderes e decide contra a norma constitucional.
Isto vem ocorrendo no Brasil, por exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determina a execução de pena privativa da liberdade sem o seu trânsito em julgado, quando a Constituição (inciso LVII do art. 5º) determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória”.
O STF também investe contra a Constituição quando permite que juízes de piso transformem a prisão preventiva, pela sua duração, em verdadeira pena antes do julgamento. Ele desserve à Justiça quando se atribui o direito de não estar condicionado por prazos.
O Estado de exceção se instala quando o STF, partidarizado, adota dois pesos e duas medidas na aplicação da Lei.
Diante da mesma hipótese legal – as nomeações do ex-presidente Lula e de Moreira Franco para o cargo de ministro de Estado, acusadas ambas de manobra para obtenção do foro privilegiado, tivemos duas decisões antípodas.
Numa delas, o ministro Gilmar Mendes, conhecido pela sua ostensiva parcialidade partidária, decidiu anular a nomeação do ex-presidente Lula para a chefia da Casa Civil do governo de Dilma Rousseff.
Em outra decisão, diante de pedido de igual arguição, o ministro Celso de Mello sancionou a nomeação de Moreira Franco, acusado nos inquéritos da operação Lava Jato, para a Secretaria Geral da Presidência de Michel Temer.
Ao rejeitar qualquer irregularidade na nomeação de Moreira Franco, o favorito da Corte, o ministro Celso Mello está, querendo ou não, afirmando que a decisão de Mendes contra Lula foi uma exceção à regra. A Justiça desaparece quando emerge o casuísmo.
Entrementes, pouco antes da concessão da liminar pelo ministro Celso de Mello, o Tribunal Federal de Recursos da 2ª Região decidira que Moreira Franco poderia ser nomeado ministro, mas “sem o foro privilegiado” que até o reino mineral sabe que é inerente ao cargo. Estultice ou mais uma incursão legiferante sob pretexto de interpretação imaginosa da Constituição, violando seu texto?
Como tirar daí uma regra, um precedente para julgar hipótese futura?
As duas liminares, concedidas monocraticamente, ainda não foram (serão um dia?) levadas ao pleno do Supremo, e assim produzem efeitos e prejuízos irreparáveis antes de terem o mérito julgado.
O STF, a despeito da Constituição, interfere no Legislativo, seja impondo procedimentos que não lhe cabe ditar, seja legislando.
Recentemente, o ministro Luiz Fux concedeu liminar – sempre elas! – para escancarar o ativismo de juízes e ministros, e mandou o Senado da República devolver à Câmara dos Deputados o famoso pacote de medidas autoritárias elaborado por jovens procuradores, jejunos em História e Sociologia.
Refiro-me às “10 medidas para acabar com a corrupção”, entre as quais medidas está a aceitação, contra o réu, de provas mesmo ilícitas, desde que ‘obtidas de boa-fé’.Segundo o ministro, o Congresso havia alterado dispositivos do projeto original.
Ou seja, senadores e deputados estão acusados de haver legislado, função precípua para a qual foram eleitos e da qual não podem declinar!
Não estamos em face de casos isolados. O ministro Roberto Barroso, tido como bom constitucionalista e liberal, mas exorbitando de sua competência, determinou que a Lei Geral de Telecomunicações, aprovada no Senado, não fosse enviada à sanção presidencial, até que todos os recursos apresentados contra a tramitação da lei fossem apreciados.
Em dezembro último, o ministro Marco Aurélio Mello mandou afastar o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) da presidência do Senado, sabendo, pois não é analfabeto, que essa decisão só poderia ser tomada pelo plenário do Senado.
E há outros procedimentos irmãos de velhos expedientes de reles chicana, como o do ministro Gilmar Mendes, o inefável, segurando por quase dois anos a decisão (já aprovada por maioria) do STF de proibir o financiamento empresarial das eleições, cujo potencial de corrupção está escancarado pelas investigações da Lava Jato.
Mas o ministro não se emenda e em entrevista recente, falando como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (STE), volta a defender o financiamento privado do processo eleitoral.
Na mesma sequência, e em casuísmo inaceitável, o STF, por decisão de sua Segunda Turma, decidiu que o ex-presidente José Ribamar Sarney (PMDB-MA), sem mandato eletivo, seja, em processo aberto pela Lava Jato, protegido pelo foro privilegiado.
E mais recentemente decidiu que a doação legal a partidos ou políticos pode ser considerada legal ou não. Fica ao critério do Procurador Geral, do relator, ou do Olimpo.
Ao protagonismo do STF, como coletivo, soma-se o ativismo individual de ministros e juízes de primeira instância.
O juiz Sérgio Moro, auto investido no papel de advogado de defesa do ainda presidente da República, opôs censura, por ‘impertinentes’, a 21 das 41 perguntas formuladas pelo seu comparsa Eduardo Cunha.
Essas mesmas perguntas (por exemplo: ‘Qual a relação de Vossa Excelência com o senhor José Yunes? O senhor José Yunes recebeu alguma contribuição de campanha para alguma eleição de Vossa Excelência ou do PMDB?”), foram aceitas, porém, em outro processo, corrente em Brasília, por outro juiz federal, o dr. Vallisney de Souza Oliveira.
Entrementes, uma quase delação do advogado José Yunes, amigo íntimo de Temer e seu ex-assessor na Presidência, revelariam a procedência das insinuações de Eduardo Cunha.
Como é sabido, Yunes confessou haver desempenhado o papel de mula (termo retirado da gíria dos narcotraficantes) na intermediação de milhões de reais entre o doador (Odebrecht) e o receptador, o hoje ministro Eliseu Padilha (PMDB-RS), alvo de dezenas de citações dos delatores da Lava Jato.
A transação teria sido acordada em 2014, em jantar no Palácio Jaburu, onde morava o então vice-presidente da República e presidente do PMDB, que teria presidido do convescote.
A ausência de critério alimentada pelo histrionismo de juízes ávidos de notoriedade, se caracteriza pela corrente de decisões que se atropelam e se contradizem em todas as instâncias.
Uma das características dos Estados de exceção é a facilidade com a qual o direito – a norma — é alterado pela ordem dominante. Assim, nada obstante haver ditado por intermédio de um Congresso ilegítimo uma Carta Constitucional, a ditadura militar conservou, até seus últimos vagidos, o poder de criar novas normas (Atos institucionais e, deles derivados, Atos Complementares) através dos quais fazia face aos fatos novos que se interpunham ao seu império.
Mutatis mutandi essa adaptação do direito à nova ordem, autoritária, se faz, presentemente, pelo STF, “adequando” sua jurisprudência, suas falas e seus silêncios aos interesses hoje hegemônicos.
Assim está a revogação do princípio da presunção da inocência, conquista do mundo civilizado, transformada em convicção preconcebida da culpa. O princípio segundo o qual o ônus da prova cumpre ao acusador– apotegma que remonta ao direito mais remoto – transformou-se numa expressão vazia, sem sentido.
Na ditadura franca dos militares não havia, como há nas democracias, a exigência de sentença transitada em julgado para que o acusado fosse considerado culpado e, assim, condenado.
Naquela altura, o inimigo era culpado pelo simples fato de ser inimigo do regime, e assim, antes de julgado, era preso; só então, após sua confissão, obtida sob tortura, era aberto o processo que formalizaria a pena já em curso, a cadeia ou o ‘desaparecimento’.
Mas então estávamos em uma ditadura.
Diante de um Congresso que não honra o mandato da soberania popular, empenhado em limitar direitos de toda ordem, de um Executivo ilegítimo gerido por agentes da corrupção, diante de um STF partidarizado e casuísta, arbitrário na medida em que avança sobre as competências privativas dos demais Poderes, diante do discurso da ordem autoritária, a batalha que se oferece às forças progressistas é a defesa da ordem constitucional e democrática, a batalha pelos direitos e pelas igualdades.