O poder em movimento e o direito de resistir, por Jacques Távora Alfonsin

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As manifestações coletivas de protesto público nas ruas, organizadas por grupos de pressão política, frequentemente realizadas no Brasil nesses últimos anos, muito acentuadas nos meses anteriores e posteriores à deposição da presidenta Dilma, têm sido criticadas de preferência sob a “racionalidade” da segurança pública sempre em risco nesses eventos  e da “irracionalidade” (assim entendida geralmente), do conflito ideológico presentes em cada uma. Para  fazer frente a problemas ético-jurídicos, como o de abusos praticados tanto pela organização dos protestos como pela repressão policial utilizada contra eles, a aplicação da lei penal tem sido cogitada, praticamente a margem de qualquer outra ponderação.

A insuficiência dessa resposta tem sido verificada no passado, mostrando efeito contrário ao da sua pretensa adequação. Não por acaso, a maior parte das/os mártires inspiradoras/es de movimentos populares, organizados em torno de reivindicações de direitos, manifestando-se nesses protestos, em vez de diminuí-los ou eliminá-los aumenta o seu poder e motivação.

Roseli Nunes, uma agricultora gaúcha morta num protesto realizado pelo MST em Sarandi RS é um exemplo luminoso desse fato. Dia 31 deste março  completam-se 30 anos da sua morte neste evento. Ela contava 33 anos, tinha três filhos e, na mesma ocasião, morreram juntamente com ela Iari Grosseli de 23 anos, Vitalino Antonio Mori, 32 anos. As/os sem terra brasileiras/os, quando relembram Roseli nos protestos que fazem agora, carregam numa faixa a cópia de um lema seu, revelador da sua coragem e do nível de consciência que ela possuía dos responsáveis pela injustiça social, como causa da sua pobreza e da legitimidade da reforma agrária: “Prefiro morrer lutando do que morrer de fome”.

O grau da violência contrária a manifestações como a dessa sem terra e de muitos outros protestos públicos realizados em defesa de direitos sociais, é um desafio permanente para eles conseguirem manter acesa a chama da sua motivação, do seu entusiasmo, da animação coletiva, dos objetivos a não serem esquecidos ou até abandonados. Essa é a razão pela qual lideranças populares, “intelectuais orgânicos”, agentes de pastoral, servidoras/es públicos dedicadas/os às suas prestações de serviço ao povo pobre, vivem procurando soprar as brasas remanescentes de todo um repetido incêndio que esse povo tem de acender para queimar a lenha das injustiças que bate materialmente nas suas costas a cada quadra histórica.

Não se trata de coisa fácil, muito menos de execução feita às pressas, a começar pelo detectar de quando sobrevém o cansaço da militância defensora das reivindicações em grande parte dos casos sofrendo reveses sucessivos. Duas advertências oportunas para os movimentos populares, atualmente organizando manifestações massivas de protesto contra os desmandos do governo (!?) instalado desde o  golpe de Estado, são feitas por pensadores qualificados que se dedicaram ao estudo desses tipos de inconformidade social. Assim Sidney Tarrow diz  em “O poder em movimento. Movimentos sociais e confronto político”, Petrópolis: Vozes, 2009:

Exaustão e polarização. A razão mais simples do declínio da mobilização é, provavelmente, a exaustão. Embora os protestos de rua, as demonstrações e a violência sejam excitantes ao início, à medida que os movimentos se organizam melhor e se dividem em líderes e seguidores, eles envolvem risco, custos pessoais, e, eventualmente, cansaço e desilusão. Disso resulta um declínio na participação que pode ser acentuado quando as autoridades políticas e as forças da ordem são inteligentes o bastante para aguardar o seu momento.” {…} “As taxas desiguais de deserção entre o centro e a periferia de um movimento mudam o seu equilíbrio – de reivindicações moderadas para radicais e de protestos pacíficos para violentos.” {…} “Este declínio desigual de participação coloca um dilema para as lideranças dos movimentos. Conscientes de sua força que está em seu contingente elas podem reagir ao declínio na participação fazendo reivindicações mais moderadas e tentando conciliar com seus opositores. Inversamente, para manter o apoio dos elementos militantes, elas podem tentar manter a chama acessa fazendo reivindicações radicais e intensificando o confronto. Nos dois casos, o declínio diferencial de apoio leva à polarização entre aqueles que querem a conciliação com as autoridades e aqueles que buscam a manifestação do confronto.”

Os cuidados com o conhecimento generalizado da legitimidade dos confrontos é essencial à mantença da sua motivação e à continuidade das suas manifestações, um apoio ético-político sem o qual uma e outras tendem a se enfraquecer e até desmoralizar. Talvez seja essa a intenção de José Carlos Buzanello, em “Direito de resistência constitucional”, Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003, quando parece ter previsto o incidente constitucional brasileiro de hoje, inclusive no referente a subtração de direitos do povo pobre e a tomada de poder da República como forma de usurpação:

“Conforme ensina Pedro Demo, pobre não é aquele que não tem, mas sim o que foi proibido de ter, em decorrência do cerceamento do acesso dele aos bens culturais e econômicos. Pobreza é, em sua essência, repressão, ou seja, resultado da discriminação sobre o terreno das vantagens. Assim, pode existir maior violência do que a miséria? Parece que a razão está com Hegel ao afirmar que a miséria é a violação infinita do ser e, portanto, uma ausência total de direito.” {…} “A usurpação não consiste na mudança de pessoas, mas não nas formas e regras do governo – porque se o usurpador estender o seu poder além do que de direito pertence das governantes legítimos, junta-se então a tirania à usurpação. Do mesmo modo que a usurpação consiste no exercício do poder a que outrem tem direito, a tirania é o exercício do poder além do Direito. Onde quer que a lei termine, a tirania começa. Se os atos ilegais praticados pelo governo forem mantidos por meio do poder que ele tem em mãos, o remédio adequado para essa situação – é o direito de resistência.”

Incontestável. Seguir empoderando a movimentação popular e resistindo à usurpação continua modo de fazer valer a verdadeira cidadania e a verdadeira e legítima defesa da democracia.

Praça da Matriz durante votação dos projetos do pacote do governo Sartori, em dezembro de 2016. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

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