Quem fica mais tempo na timeline: bife podre, índio morto ou escravidão?, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

A pergunta do título, mais do que uma provocação, é uma tentativa de entender como funciona o comportamento humano.

Nesta sexta (17), a Polícia Federal deflagrou a Operação Carne Fraca, para desarticular uma suposta organização criminosa envolvendo fiscais agropecuários para liberar produtos sem verificação. A investigação, que focou na venda ilegal de carne, envolveu dezenas de empresas, como as gigantes BRF (dona da Perdigão e Sadia) e JBS (dona do Friboi e da Seara). A operação revelou, inclusive, a venda de carnes impróprias ao consumo humano e a reembalagem de produtos vencidos.

O assunto inundou as redes sociais, provocando da indignação ao sarcasmo, incluindo amigos veganos dizendo ”nós avisamos…”

É interessante que não é de hoje que frigoríficos são acusados de estarem ligados, direta ou indiretamente, a graves problemas sociais, ambientais e trabalhistas. Casos de trabalho escravo (comprando animais de fazendas que utilizaram-se desse tipo de mão de obra), de superexploração de trabalho (quando os próprios frigoríficos incapacitam seus operários por lesões causadas no serviço), de desmatamento ilegal (adquirindo bois oriundos de propriedades flagradas com crimes ambientais), de violência contra populações tradicionais (lideranças indígenas sendo violentadas ou mortas por fornecedores de gado em Estados como o Mato Grosso do Sul). Ou mesmo graves e preocupantes casos de animais maltratados e torturados à revelia do que prevê a legislação.

Esses casos aparecem em sua timeline, mas não viralizam tanto. Talvez porque não conseguimos ver as pessoas vítimas dessas situações como detentoras dos mesmos direitos que nós. Estão distantes, lá longe, na Amazônia, no Cerrado ou no Pantanal, se vestem de uma forma diferente, comem de um jeito diferente, sofrem da maneira que nós não sofremos. Longe o bastante para não produzir em nós um sentimento de empatia.

Ao mesmo tempo, não conseguimos perceber a conexão entre esses problemas trabalhistas, ambientais e crimes contra a vida e os direitos humanos e nós. Não sabemos ou não queremos saber que aquela produção, através de uma longa cadeia produtiva, chega até nossas cidades, açougues e supermercados. Sim, estamos conectados àquelas condições através de nosso padrão de consumo.

A noção de imperdoável restringe-se, muitas vezes, a quem trai nossa confiança. Seja ao vender carne vencida, seja ao nos entregar uma roupa feita com trabalho escravo de migrantes estrangeiros – não pela escravidão em si, mas porque a empresa vendeu caro algo pelo qual pagou quase nada.

Por que temos dificuldades de colocar tudo no mesmo barco? Afinal, tanto a carne podre quanto carne derivada de trabalho escravo, desmatamento ilegal, violência a populações indígenas e danos à vida de trabalhadores deveriam estar ”impróprias” para consumo.

Choca saber que alimentos que consideramos bons podem ter chegado estragados à nossa mesa? Sim, as pessoas ficam chocadas. Mas e uma criança de 13 anos escravizada em uma fazenda de gado que vendia a frigoríficos e que tinha esquecido até a data de seu aniversário quando acompanhei seu resgate junto com uma equipe do governo federal anos atrás. Também não choca?

Temos afinidade com aquilo que nos é mais próximo ou que nos desperta determinados sentimentos. Entendo que a libertação de 150 escravos que sangravam na Amazônia para produzir boi que muitos nem sabem como vira bife choca menos que um bife que veio estragado.

Talvez não nos indignemos por banalização dessa violência. Talvez por um ato de fuga consciente ou inconsciente diante da crença na incapacidade de fazer qualquer coisa para resolver o problema.

Mas a possibilidade de reação existe, tanto que minha timeline ferveu com as notícias da Operação Carne Fraca.

Saúdo que a Polícia Federal siga fazendo operações para mostrar o Brasil Profundo que muitos não conhecem. E que nós nos indignemos como consumidores e cidadãos.

Mas desejo também que não deixemos de nos indignar diante de outras injustiças. Pelo contrário, que consigamos fugir de nossas programações mais básicas e acordemos de nossa acomodação e percebamos que há certas coisas que passam diante de nossos olhos e não as vemos como um problema. Apesar de, não raro, financiarmos essa injustiça indiretamente.

A indignação por uma causa não exclui a outra e jogar para baixo do tapete os incômodos que também dizem respeito a todos nós, não fazem eles desaparecerem. Manifestar-se pode, ao contrário, significar a mudança da situação ou a manutenção de tudo como está.

Sei que não é fácil criar as condições para que algo desperte compaixão e, de lá, ação. Mas se não puder ser pela emoção, que não nos esqueçamos que ainda existem a ética e a razão.

E não há razão alguma para um setor economicamente relevante e financiado com dinheiro público como esse continuar, de uma forma ou de outra, dando coices e chifradas nos brasileiros.

 

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