À margem do milagre do São Francisco

Idealizada há um século, transposição enfim é inaugurada, ao custo de R$ 9 bilhões. Mas, por enquanto, muitas comunidades do semiárido do Nordeste só veem a água passar, enquanto outras ainda esperam que ela chegue.

Por Nádia Pontes, na Deutsche Welle

A menos de um quilômetro do canal que traz as águas do rio São Francisco para a Paraíba, muitas torneiras estão secas. No bairro onde Gabriel mora, na cidade de Monteiro, por onde a obra da transposição entra no estado, a vizinhança paga a conta enviada pela companhia de saneamento, mas água só tem quem contrata o caminhão-pipa.

Monteiro ganhou os holofotes quando recebeu autoridades para inaugurar a “chegada das águas do Velho Chico nas torneiras paraibanas”, como dizia o slogan. Mas a prefeita Anna Lorena ainda não vê motivo para festa.

“Não é justo assistirmos à passagem das águas e os moradores não receberem esse benefício em suas casas”, diz.

Na zona rural de Monteiro a situação é de calamidade. Moradores de mais de 100 comunidades dependem de caminhões-pipa para sobreviver. Até os assentados na Vila Produtiva Rural, construída pelo Ministério de Integração para abrigar famílias que moravam na zona da obra, reclamam.

A fonte da cidade é o reservatório de Poções, que passou a receber água do São Francisco há mais de uma semana. “Se já temos água no açude Poções, não justifica mais a falta dela nas torneiras”, reclama a prefeita.

Questionado pela DW Brasil, Helder Barbalho, ministro de Integração, informou que a responsabilidade do abastecimento domiciliar é do estado. A Cagepa, Companhia de Água e Esgoto da Paraíba, afirmou que Monteiro e outras 11 cidades da região devem sair do racionamento em abril, quando a instalação de um sistema de captação específico for concluída.

Meia dádiva

O caminho artificial para desviar parte do volume do rio São Francisco foi proposto pela primeira vez há mais 100 anos. O formato atual, chamado de Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias do Nordeste Setentrional (Pisf), foi apresentado em 2004 e começou a ser executado há dez anos pelo Exército.

A obra, no total orçada em 9,6 bilhões de reais, prevê o transporte da água por dois eixos principais, sob a justificativa de garantir segurança hídrica às populações mais pobres do semiárido do Nordeste.

O Eixo Leste, o primeiro a ficar pronto, tem 220 km de extensão. Ele começa em Floresta, Pernambuco, segue até Monteiro para, então, ser interligado à calha do rio Paraíba. De lá, as águas seguem o leito natural do rio até o reservatório de Epitácio Pessoa, que abastece Campina Grande.

O Eixo Norte, com 402 km de canais, passa por Pernambuco, Ceará, Paraíba até chegar em Rio Grande do Norte. Problemas com construtoras atrasaram sua conclusão, que agora está prevista para o final de 2017, segundo o ministro Helder Barbalho.

Desde as discussões iniciais, o projeto causou polêmica e dividiu até a Igreja Católica – enquanto um bispo na Bahia fez greve de fome contra a transposição, o arcebispo da Paraíba divulgava manifesto a favor.

“A parte política dominou o debate, já a técnica sempre esteve em segundo plano. Mas agora não pode mais continuar assim, senão a obra vai virar um elefante branco”, alerta Janiro Rego, professor da Universidade Federal de Campina Grande, que acompanha o processo.

Vendo a água passar

Enquanto cidades no entorno do Eixo Leste reclamam de apenas ver a água passar, os operadores do reservatório de Epitácio Pessoa, o Boqueirão, contam as horas para vê-la chegar.

As águas do São Francisco correm para socorrer Campina Grande, maior cidade do interior paraibano e polo industrial com mais de 1300 empresas. Cravada na região onde menos chove no país, o centro depende exclusivamente de Boqueirão.

Com 3% de sua capacidade, o nível da água no reservatório baixa 2 centímetros a cada dia, e a bomba emergencial instalada trabalha 24 horas por dia.

“O manancial é abastecido pela chuva, e vivemos mais de cinco anos de seca. Boqueirão foi perdendo capacidade até chegar neste nível”, justifica Hélio Cunha Lima, presidente da Companhia de Água e Esgoto da Paraíba.

No entorno do reservatório, moradores de 19 cidades sofrem um racionamento severo para receber a água escassa, com alto teor de sal. “A gente não consegue beber”, conta João, taxista de Campina Grande. “Comprei duas caixas d´água extras por causa do racionamento. Os vizinhos batem lá em casa e pedem água, a gente dá, mas não deixa ninguém abusar”, diz, sobre a rotina de receber água apenas três dias na semana.

Em Boqueirão, o alívio deve ser comemorado em meados de abril, quando as águas do São Francisco chegarem ao reservatório. “Depois disso, serão mais uns 30 dias para normalizar o abastecimento na região”, afirma Lima. Sem o reforço do São Francisco, uma medida drástica seria a única alternativa. “Teríamos que evacuar toda a região”, admite.

“O que vai ser da gente sem água?”

Quem vai comandar toda a operação, como o controle do volume de água que corre para os estados, é a estatal Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba).

O serviço, no entanto, poderá ser privatizado, como destaca Helder Barbalho. “Nós demandamos ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) que faça estudos sobre a possibilidade de haver uma transferência para uma gestão privada no futuro”, diz o ministro da Integração.

Ainda não se sabe quanto cada um dos quatro estados beneficiários pagará à Codevasf para receber água pelos eixo Leste e Norte. O custo será elevado, prevê Janiro Rego, pesquisador da UFCG. Para ele, problemas antigos na gestão de recursos hídricos deveriam ter sido resolvidos antes de a transposição chegar.

“O Plano Estadual de Recursos Hídricos da Paraíba mostra que temos reservas suficientes para abastecer o estado. Mas agora estamos vivendo uma seca severa. E depois que essa seca passar e que Boqueirão sair do sufoco, o que vão fazer com as estruturas da transposição?”, questiona.

Para Inácio, trabalhador rural aposentado, a chegada da água, não importa se do céu ou pelos canais da transposição, é o mais urgente. “A gente reza pra chuva cair, mas ela não vem há seis anos. O que vai ser da gente sem água?”, pergunta olhando para o alto, e poucos quilômetros de onde passa o Eixo Leste.

 Imagem: À espera das águas do São Francisco: o chão onde Osvaldo pisa já foi coberto por um açude – Foto: Deutsche Welle

Enviado para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

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