Alvaro Bianchi apresenta o Dicionário gramsciano

A Boitempo acaba de publicar o monumental Dicionário gramsciano, organizado por Guido Liguori e Pasquale Voza. Ao longo de quase mil páginas, o livro destrincha o pensamento de Antonio Gramsci em uma obra de referência com mais de 600 verbetes elaborados por alguns dos mais importantes estudiosos de sua obra no mundo. Confira, abaixo, o prefácio à edição brasileira do livro, escrito especialmente para a edição da Boitempo por Alvaro Bianchi.

Por Alvaro Bianchi. no blog da Boitempo

É notável o desenvolvimento dos estudos gramscianos ao redor do mundo. Pesquisas especializadas têm sido publicadas com frequência cada vez maior, o número de pesquisadores interessados na obra de Antonio Gramsci aumenta constantemente, e seu nome tem aparecido no debate público, algumas vezes de maneira estridente.1

Quando considerado globalmente, esse desenvolvimento é desigual e combinado. Sob influência da expansão dos estudos gramscianos em outros continentes, estes ganharam novo ímpeto na Itália, país que havia presenciado um substantivo declínio das pesquisa após a crise e dissolução do Partido Comunista Italiano em 1991. Livres das amarras da política imediata, novas pesquisas começaram a ter lugar na terra natal de Gramsci. Sem a preocupação de comprovar forçosamente teses ou alinhar o autor a determinado campo do conflito político, tais estudos se mostraram mais interessados em identificar as múltiplas fontes da reflexão do autor, o momento de produção conceitual e o lugar de suas ideias em uma história intelectual. O impacto dessas novas abordagens no conhecimento de Gramsci e de sua obra são notáveis.

As ferramentas fundamentais para esse relançamento dos estudos gramscianos na Itália haviam sido criadas, entretanto, alguns anos antes. Primeiro, com a edição crítica dos Quaderni del carcere, organizada por Valentino Gerratana e publicada originalmente em 19752. Por meio dela foi possível acessar o conjunto dos cadernos, incluindo a primeira versão das notas – denominadas pela edição de Textos A –, as quais Gramsci havia cancelado e substituído mais tarde por novas versões – Textos C3. Com a edição de Gerratana, tornava-se mais nítido o caráter provisório e inacabado da reflexão gramsciana. Mais tarde, Gianni Francioni publicou um livro fundamental, L’officina gramsciana: ipotesi sulla sttrutura dei “Quaderni del carcere”, de 19844. Em sua monumental pesquisa, Francioni estabeleceu de modo rigoroso a data aproximada da redação por Gramsci das diferentes notas que compõem os Quaderni. Desse modo, os pesquisadores puderam restabelecer uma história interna do texto e reconstruir o ritmo do processo de produção conceitual.

De posse dessas ferramentas, alguns jovens pesquisadores (e outros nem tanto assim) atiraram-se, a partir de meados dos anos 1990, à pesquisa do ritmo do pensamento gramsciano. Escrevendo naquele momento o balanço crítico de quase cinquenta anos de estudos gramscianos, Guido Liguori, um dos organizadores deste Dicionário, vislumbrava a emergência de um novo programa de investigação. Um ciclo inédito de estudos gramscianos tinha lugar, provavelmente o mais fértil até então5.

Os primeiros passos nessa direção estavam sendo dados. A fundação da International Gramsci Society (IGS), em 1991, era um indicativo de uma crescente internacionalização das investigações e da formação de uma ampla rede de pesquisadores. Pouco depois, a criação de uma seção italiana da IGS forneceu condições institucionais para que o novo trabalho encontrasse espaço apropriado. A partir do ano 2000, um seminário promovido pela IGS-Italia sobre o léxico gramsciano consolidou esse processo, dando origem a importantes pesquisas, as quais culminaram na realização deste Dicionário gramsciano6.

Paralelamente, na Fondazione Istituto Gramsci, ganhavam contornos mais precisos o projeto de uma Edizione nazionale degli scritti di Antonio Gramsci [Edição nacional dos escritos de Antonio Gramsci], que, com base nas novas pesquisas filológicas, publicará o conjunto dos textos gramscianos e os novos estudos biográficos que se seguiram aos avanços da pesquisa documental7. Ao mesmo tempo, a Fondazione se mostrou cada vez mais atenta à internacionalização dos estudos gramscianos e procurou tornar acessível ao público italiano as pesquisas realizadas em outros países8.

No Brasil e na América Latina, o percurso das ideias de Antonio Gramsci foi sensivelmente diverso. Em nosso continente, o marxista sardo nunca foi afastado da política. Desde os anos 1970 suas ideias têm servido como um importante estímulo para a análise e a crítica social e política em nosso país. Contraditoriamente, os estudos dedicados à obra gramsciana eram escassos – e sua qualidade, muitas vezes, questionável. Mas isso começou a mudar no Brasil com a publicação de uma edição mais apurada dos escritos do cárcere, entre o fim dos anos 1990 e início dos 2000, sob a responsabilidade de Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, o que permitiu que os pesquisadores brasileiros tivessem ao alcance das mãos uma ferramenta mais adequada para seu trabalho9. O impacto dessa publicação não deixou de se notar tanto no interesse que ela despertou entre jovens pesquisadores quanto na maior consistência que os estudos gramscianos brasileiros adquiriram.

À distância, os pesquisadores brasileiros começaram a acompanhar as novas orientações intelectuais que tinham lugar na Itália. Uma renovada agenda de pesquisa passou a se afirmar também no Brasil, difundindo o método da filologia histórica, assim como a pesquisa em arquivos, o uso de edições críticas, a recuperação das fontes do pensamento gramsciano e um cuidado maior com o contexto no qual as ideias haviam sido produzidas. A internacionalização das universidades brasileiras, por sua vez, permitiu que um número crescente de pesquisadores realizasse estágios de pesquisa na Itália, ao mesmo tempo que investigadores europeus, financiados por agências de fomento nacionais, se fizeram cada vez mais presentes em seminários e congressos científicos realizados deste lado do Atlântico. Enfim, criou-se um ambiente intelectual que tem favorecido fortemente os estudos gramscianos.

Um levantamento realizado por iniciativa da seção brasileira da IGS identificou a publicação, por autores residentes em nosso país, de 1.214 obras sobre o pensamento de Antonio Gramsci ou nas quais este era uma referência importante. Dessas obras, 706 eram livros, capítulos e artigos científicos e 508, teses e dissertações. Mais da metade destas últimas foi produzida em programas de pós-graduação da área de educação. Serviço social, ciências sociais e saúde também concentraram pesquisas. Ainda predomina o uso das ideias de Gramsci para a análise social e a crítica política, mas é possível perceber, nos últimos anos, um sensível aumento das investigações nas quais seu pensamento é o próprio objeto da pesquisa10.

A publicação deste Dicionário gramsciano é um momento fundamental desse desenvolvimento, um estímulo ímpar para a reabertura do laboratório gramsciano. Para um público de especialistas, esta obra fornece um importante ponto de partida, contribui para difundir as pesquisas filológicas e permite trabalhar com o léxico do autor de maneira mais homogênea. Mas a obra destina-se também a um público mais amplo, interessado nas ideias do autor e atento ao uso que é feito delas no debate político contemporâneo. Trata-se, assim, de uma ferramenta única de trabalho e um livro de consulta permanente. É uma iniciativa editorial ousada, cujos efeitos ao longo do tempo serão certamente notados.

Notas:

1 Este texto corresponde ao prefácio da edição brasileira do Dicionário gramsciano (1926-1937) organizado por Guido Liguori e Pasquale Voza.
2 Antonio Gramsci, Quaderni del carcere (org. Valentino Gerratana, Turim, Enaudi, 1977).
3 As notas B, por sua vez, são as de redação única.
4 Gianni Francioni, L’officina gramsciana: ipotesi sulla struttura dei “Quaderni del carcere” (Nápoles, Bibliopolis, 1984).
5 Guido Liguori, Gramsci contesso: storia di un dibattito, 1922-1996 (Roma, Editori Riuniti, 1996).
6 Ver, por exemplo, Fabio Frosini e Guido Liguori, Le parole di Gramsci: per un lessico dei “Quaderni del carcere” (Roma, Carocci, 2004).
7 A Edizione nazionale degli scritti di Antonio Gramsci está dividida em três seções: 1) Scritti 1910-1926; 2) Quaderni del carcere 1929-1935; 3) Epistolario 1906-1937. Os primeiros volumes publicados foram os Quaderni di traduzione, em 2007. Também já foram publicados um volume dos Scritti, reunindo os textos publicados em 1917, e dois volumes do Epistolario, correspondendo aos anos de 1906-1922 e 1923. Para os novos estudos biográficos ver Giuseppe Vacca, Vita e pensieri di Antonio Gramsci, 1926-1937 (Turim, Einaudi, 2012) e Leonardo Rapone, Cinque anni che paiono secoli: Antonio Gramsci dal socialismo al comunismo (1914- 1919) (Roma, Carocci, 2011).
8 Ver, por exemplo, Derek Boothman, Francesco Giasi e Giuseppe Vacca (orgs.), Studi gramsciani nel mondo: Gramsci in Gran Bretagna (Bolonha, Il Mulino, 2015); Dora Kanoussi, Giancarlo Schirru e Giuseppe Vacca (orgs.). Studi gramsciani nel mondo: Gramsci in America Latina (Bolonha, Il Mulino, 2011); Giuseppe Vacca et al., Studi gramsciani nel mondo: le relazioni internazionali (Bolonha, Il Mulino, 2009); e Giuseppe Vacca, Paolo Capuzzo e Giancarlo Schirru (orgs.)., Studi gramsciani nel mondo: gli studi culturali (Bolonha, Il Mulino, 2008).
9 Ver Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999-2000), 6 v., e Cartas do cárcere (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005).
10 Ana Lole et al., “Produção bibliográfica de Gramsci no Brasil: uma análise preliminar”, Hegemonia e Práxis Popular, n. 1, dez. 2016. Disponível aqui.

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

18 − 14 =