Quem ganha e quem perde nos (des)caminhos da cadeia industrial da carne?

Para termos um panorama das questões de fundo relacionadas ao tema, façamos o percurso ao longo dos caminhos da cadeia de produção da carne, imaginando-a como uma corrente que passa por diversos elos até as prateleiras do supermercado

Por Diana Aguiar[1], na FASE

A deflagração da Operação Carne Fraca da Polícia Federal suscitou preocupações em relação à qualidade da carne comercializada cotidianamente no Brasil e exportada a partir daqui, resultando inclusive na suspensão da importação de carne brasileira por diversos países. Em pouco tempo, as redes sociais tornaram-se palco de um debate acalorado, que infelizmente, da mesma forma que a cobertura da mídia, passou ao largo das questões de fundo que envolvem a cadeia industrial da carne e as estratégias de enfrentamento que há muito vêm sendo construídas por organizações, movimentos sociais e sindicais do campo no Brasil e através de suas articulações nacionais, regionais e internacionais.

Para termos um panorama destas questões de fundo, façamos o percurso ao longo dos caminhos da cadeia de produção da carne, imaginando-a como uma corrente que passa por diversos elos até chegar à prateleira dos supermercados. Já na parte inicial da cadeia produtiva, os monocultivos de soja e milho transgênicos – cujo principal destino é a produção de ração animal – despejam venenos que contaminam solos, rios e lençóis freáticos e promovem a erosão da diversidade das sementes e das culturas agrícolas e alimentares.

No elo seguinte deste caminho, a criação de gado, encontramos uma atividade campeã em trabalho análogo à escravidão no país[2]. Ainda neste elo, vemos que entre terras degradadas e atualmente utilizadas no Brasil para pastagem, a pecuária já ocupa 25% do território nacional e continua pressionando por expansão[3]. Essa expansão acontece em grande medida por meio da grilagem de terras públicas e de ocupação tradicional, causando conflitos intensos com camponeses e camponesas, indígenas e outras comunidades tradicionais. Ainda em razão da contínua expansão, a pecuária é o principal vetor do desmatamento no país, promovendo o etnocídio de povos que construíram e constituem a diversidade biológica e cultural de territórios no Cerrado e na Amazônia, os dois biomas mais ameaçados pela expansão da carne. O caso do Cerrado é tão dramático que o próprio futuro do bioma está sob ameaça imediata [4]. Mas, apesar disso, as tecnologias desenvolvidas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para a expansão da cadeia industrial da carne, e que foram implementadas ali ao longo das últimas décadas, servem como justificativa para que o Cerrado seja modelo para o avanço do agronegócio no norte de Moçambique [5] e em outros países.

A parte seguinte da cadeia produtiva é o abate de animais, um setor que conta com inúmeras denúncias de condições indignas de trabalho nos frigoríficos. A Operação Carne Fraca teve como alvo direto este elo e somente uma parte específica dos problemas relacionados a este: as brechas e corrupção na fiscalização da qualidade da carne comercializada a partir dos frigoríficos. É compreensível que a qualidade da carne seja a primeira preocupação da perspectiva do consumo, mas em um cenário tão complexo: como ignorar que a carne que comemos, vendida empacotada e com a aparência de total higienização, percorre um caminho tão tortuoso até chegar ali, deixando um rastro de devastação ambiental e social?

Poucos campeões, muitos perdedores

A cadeia produtiva da carne é ligada a algumas das mesmas oligarquias herdeiras do coronelismo no Brasil, compondo hoje a coalizão mais poderosa e reacionária do Congresso Nacional: a bancada ruralista. As continuidades históricas na governança agrária no país são trágicas, sobretudo por conta da eterna promessa não realizada da reforma agrária, que propicia a permanência de grandes latifúndios concentrados nas mãos de poucos.

Como um espelho corporativo desta concentração de poder econômico, a cadeia industrial da carne em todo o mundo tem alguns de seus elos controlados por um pequeno conjunto de empresas transnacionais. Os insumos agrícolas para o monocultivo, como as sementes transgênicas e os agrotóxicos, são controlados por um pequeno conjunto de corporações. Este setor deve ficar ainda mais concentrado em razão de diversos processos de fusão em curso (Bayer com Monsanto, Dow com DuPont e ChemChina com Syngenta). Já a exportação da soja e do milho transgênicos para consumo animal, entre países onde se localizam os monocultivos e outros países produtores de carne, tem participação majoritária de gigantes corporativas como Bunge, Cargill, ADM e Louis Dreyfus Commodities.

A política dos “Campeões Nacionais” do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) propiciou que um conjunto de empresas cujo capital tem origem no Brasil entrasse nesse time seleto e passasse a figurar entre as gigantes do setor de frigoríficos. Entre 2007 e 2013, período em que vigorou a política, o BNDES injetou R$ 18 bilhões em apenas cinco empresas (dentre elas os frigoríficos JBS e Marfrig). A JBS (que controla marcas como Friboi e Seara) recebeu o maior volume: R$ 10 bilhões. Além disso, entre 2005 e 2014, os frigoríficos JBS, Marfrig, Independência e Bertin receberam R$ 11 bilhões em participação acionária do banco via BNDESPar. O banco também estruturou o processo de fusão da Sadia com a Perdigão, resultando na criação da Brasil Foods. A política de campeões nacionais foi instrumental para que estas empresas adquirissem o poder de que hoje gozam: a JBS, atualmente a maior produtora e exportadora de carnes do mundo, não estava nem entre as 400 maiores empresas em operação no Brasil em 2002.

Para se ter uma ideia da concentração de mercado resultante deste processo, em 2007, onze grandes exportadores representavam 70% das exportações do país, enquanto em 2015, apenas três empresas (JBS, Marfrig e Minerva) realizaram 80% das exportações.  Certamente tanta concentração de poder econômico aumenta a ascendência destas empresas sobre o sistema político, erodindo ainda mais os sentidos já tão degradados da democracia. Não surpreende que a JBS esteja entre as maiores doadoras de campanhas políticas no Brasil.

Nesse sentido, ainda que existam prováveis motivações políticas por trás da investigação da Polícia Federal, são questionáveis os argumentos em torno de um complô imperialista por trás da Operação Carne Fraca. Este tipo de argumento parte da mesma premissa que justificou a política de “Campeões Nacionais”: a de que a economia nacional é mais forte se empresas cujo capital tem origem no Brasil se inserem de forma competitiva no mercado internacional. É uma premissa falida ao menos em três aspectos. Por um lado, ela entende que o coração de um suposto “interesse nacional soberano” é o crescimento econômico e que as exportações são um fim em si mesmo, e não um meio para a justiça social. Pior, ela entende que existe algo que se possa chamar “interesse nacional”, apagando toda a diversidade e assimetrias sociais contidas no território brasileiro e a dura realidade de que há sempre os poucos que ganham e os muitos que perdem com o incentivo a uma cadeia produtiva concentrada e devastadora como é a da carne.

Em terceiro lugar, essa premissa escolhe ignorar que as empresas transnacionais não têm fidelidade nacional. Elas migrarão suas operações produtivas e financeiras de acordo com as perspectivas de ganho. Por exemplo, a dificuldade do Brasil em cumprir os requisitos sanitários para exportar a muitos países levou a JBS a uma estratégia de comprar frigoríficos nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Alemanha, Argentina, Uruguai, Paraguai, Itália, África do Sul e China. Em 2016, 90% dos rendimentos da empresa já eram gerados fora do Brasil e, já em 2011, 60% de seus funcionários também se localizavam fora daqui. No primeiro semestre de 2016, a JBS anunciou a intenção de mover sua sede para Irlanda, um paraíso fiscal. O BNDES, importante acionista da empresa via BNDESPar, vetou a mudança, mas não há garantias que uma correlação de forças diferente no banco público no futuro não permita a concretização deste intento.

Cadeia produtiva globalizada

A JBS e a BRFoods são empresas com cadeia de produção globalizada e foram alçadas a tal patamar com injeção vultosa de recursos públicos. Advém daí a pergunta de ouro: se este setor é tão competitivo, por que precisa ser continuamente incentivado? E mais importante: se esta mesma soma de recursos públicos tivesse, diferentemente, sido direcionada para a agricultura familiar, incentivando a produção agroecológica e os mercados institucionais, imaginemos a revolução produtiva e social que teríamos em curso. Ao contrário deste cenário, a situação da agricultura familiar e camponesa em um contexto de contínuos incentivos públicos ao agronegócio é de crescente confinamento.

Por outro lado, o distanciamento das populações urbanas com a realidade da produção daquilo que consomem só dificulta a pensar para além do imediato. Há uma tendência crescente de preocupação com a saúde na alimentação nos centros urbanos, mas é fundamental enfatizar que mudanças através do consumo têm limites. A maioria das pessoas come o que pode. Dentre as poucas pessoas que podem escolher quais alimentos consumir, menos ainda fazem essas escolhas por motivações sociais ou ambientais. E mesmo quando esse é o caso: quem consegue ter total controle sobre as cadeias produtivas daquilo que come?

Diante dessa situação, uma primeira ação pode ser a de nos somarmos a iniciativas que aprofundem o tema e não diluam falsamente a complexidade do desafio que temos diante de nós. Há diversas articulações construídas coletivamente no Brasil, como a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e em pela Vida e a Campanha em Defesa do Cerrado, que dialogam diretamente com a ideia-chave “Comida de verdade no campo e na cidade”. Um pressuposto básico é de que devemos reivindicar reformas estruturais, como a reforma agrária, e programas e políticas públicas de potencial emancipatório para a agricultura familiar. Entender o tamanho do problema envolvido na cadeia industrial da carne deve ser motor de mobilização coletiva e convergência entre as bandeiras de luta no campo e na cidade.

Notas:

[1] Integra o Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE.

[2] André Campos (Repórter Brasil). Relações de trabalho e a saúde do trabalhador. Em: Cadeia Industrial da Carne.

[3] Sérgio Schlesinger (FASE). Poucos campeões, muitos perdedores:concentração e internacionalização da indústria brasileira de carnes.

[4] A transposição e a morte do rio São Francisco (Instituto Humanitas Unisinos).

[5] A cooperação sul-sul dos povos do Brasil e de Moçambique (FASE).

[6] Sergio Schlesinger. A cadeia produtiva de carnes no Brasil. Em: Cadeia Industrial da Carne.

Foto: Vermelho/Reprod.

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