Os guardiões da floresta

Por: Maria Fernanda Ribeiro* – Crônicas Indigenistas

Ao chegar em Cruzeiro do Sul, no Acre, demorei um dia para sair do hotel. Fiquei prostrada na cama com uma angústia travestida de medo que me paralisou até os ossos. Não era medo da violência. Não era medo por ser uma mulher viajando sozinha pela Amazônia. Era um terror de que ao andar pelas ladeiras de uma das cidades mais a Oeste do país eu constatasse que a decisão de largar minha vida em São Paulo para conhecer e compartilhar as histórias dos povos da floresta havia sido um equívoco. E dos bravos.

A jornada, que só tinha passagem de ida, começou em julho de 2016 e a decisão veio após uma rápida viagem de férias pelo Pará e o rio Tapajós, com comunidades ribeirinhas, e a certeza de que eu era uma ignorante completa – no sentido genuíno da palavra – do Brasil e do povo brasileiro.

Ao navegar pela água cristalina do Tapajós percebi que eu era mais uma das pessoas do Sul e Sudeste do país que ignorava completamente a existência da Amazônia e enxergava o país de acordo com o meu conceito e concepção de realidade, que naquele momento resumia-se a um apartamento a um quarteirão da Avenida Paulista, a um emprego bem remunerado e a malfadada zona de conforto, que pode nos paralisar como num estado de coma. Induzido.

Eu não queria mais ser essa pessoa. Não queria mais fazer parte da engrenagem trabalhar-ganhar dinheiro – comprar um apartamento – trabalhar mais – comprar um outro maior – trocar de carro – pagar prestações – mudar de emprego para ganhar mais. Era preciso sair para saber se havia vida fora dessa linha de produção que somos impostos a integrar desde que nascemos.

Voltei do Pará para São Paulo, comecei a ler sobre a Amazônia, comprei um mapa do Brasil, emoldurei e coloquei na sala de casa e foi então que eu tive, pela primeira vez, a dimensão da grandiosidade do nosso país. E percebi, como uma porta de um labirinto que se abre para um novo caminho nunca visto, de que havia chegado a hora de furar a bolha que me sufocava.

Pedi demissão do emprego, fechei o apartamento, e com a minha mochila de 55 litros iniciei essa viagem em que já se tornou impossível contar a quantidade de milhas que já acumulo em meu coração. Não foi fácil. Mudar dói. E doeu. Mas ficar parado mutila muito mais.

Após um dia deitada na cama de solteiro do hotel São José, saí. Com passos curtos e desconfiados, fui olhar o rio Juruá. Tomei um açaí. Senti o calor dominando as minhas entranhas. E fui me dando conta de que eu estava na Amazônia. Sim, eu tinha conseguido.

No dia seguinte era o momento de começar a viagem para a aldeia Mutum, dos índios Yawanawa, no rio Gregório. Pela esburacada BR-364 chegamos até a Vila de São Vicente e a pele de uma anta com moscas que a rodeavam faceiras era as boas-vindas do único lugar aberto onde era possível comer algo.

Durante a subida do rio, algumas pessoas me perguntaram se eu estava com medo daquelas águas repletas de troncos e paus, em que o habilidoso barqueiro desviava com presteza – mas nem sempre. Não havia em mim mais nenhum traço daquele medo inicial. Eu havia me libertado das algemas que eu carregado de São Paulo até o Acre. E estava plena.

Lembro bem que durante a subida do Gregório, ao ver aquelas crianças correndo para o barranco ao ouvirem o som do motor, eu pensava “que vida é essa que elas levam, no meio do nada”. Sem comunicação, sem internet, sem televisão, sem supermercado, sem cinema. Sem nada.

Passei uma semana com os índios Yawanawa, durante o festival Mariri, e estar no meio da floresta com eles só me fez ter vontade de levitar, apenas para poder ver tudo aquilo – e até eu mesma – de cima. Uma clareira no meio da floresta. Uma fogueira. E em volta dela penas coloridas bailavam no ar sem cessar. E essa vontade de voar sempre me acomete em momentos assim.

Neste mês eu completo nove meses como viajante da floresta. Nesse tempo ganhei o presente do universo de conhecer seis etnias e oito aldeias nos estados do Acre e Rondônia. Tornei-me madrinha de três lindas indiazinhas. Participei de rituais de Ayahuasca, pajelanças, assisti aulas na língua, tomei muito banho de rio. Dormi muito em rede. Sofri muito com duas infestações de mucuins. Vivenciei o dia-a-dia desses povos. Fui caçar na floresta. Participei de assembleias. Fui convidada a registrar a história de algumas aldeias. Conheci pessoas dentro da floresta que parecia que há anos eu vivia só esperando por esse encontro. Fui protegida. Fui acolhida. Senti a solidariedade na pele. Vi a vida em sua essência. Conheci o ser humano com o que ele tem de melhor. Sorri. E chorei muito também. De emoção. E de saudade.

A jornada continua, com a diferença de que já não fico mais um dia todo num quarto de hotel com medo do que virá. E hoje, ao ver os índios correndo para o barranco ao ouvirem o som do motor para saber quem é que chega, já não penso mais que eles estão no meio do nada. Eles estão é no meio de tudo. No vazio estão todos nós, que ousamos ignorar a vida e a história desses que são os verdadeiros guardiões da floresta.

*Jornalista, está viajando pela Amazônia para conhecer e compartilhar as histórias dos povos da floresta.

Foto: Jovem Ashaninka (tirada por Maria Fernanda Ribeiro).

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