Trabalhadores só vão perceber que algo os atingiu quando for tarde demais, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

Quando eu entrava em disputas de Banco Imobiliário e War (aviso aos jovens, jogos de tabuleiro), decidíamos mudar as regras para fazer com o que a disputa andasse mais rápido. Quem já passou horas em intermináveis contendas com dados e pecinhas (sim, havia diversão antes do Pokémon Go e do Candy Crush), tentando ”Conquistar a Totalidade da Ásia e da América do Sul”, sabe bem o que estou falando.

Depois, a gente cresce e percebe que tem gente que tenta o mesmo na vida real. Por exemplo, defenestrar parte da legislação que garante as condições mínimas para a compra da força de trabalho no meio do jogo é uma opção defendida para acelerar o crescimento econômico. O problema é que a vida, ao contrário do jogo, é feita de pessoas de carne e osso que não podem simplesmente recomeçar suas vidas com as novas regras adotadas no meio do caminho.

Informatizar, desburocratizar, reunir impostos e tornar mais eficiente a relação de compra e venda da força de trabalho é possível e desejável e certamente irá gerar boa economia de recursos para empresários e de tempo para trabalhadores. Desonerar a folha de pagamento em alguns itens, como diminuir a contribuição previdenciária para setores que usam grande quantidade de mão de obra é possível também. Isso sem contar que ninguém é contra sobrepor o que é negociado entre patrões e empregados/sindicatos ao que está legislado – desde que isso signifique ganhos reais para ambos os lados. Para tanto, seria necessário um melhor equilíbrio de forças, com sindicatos mais fortes e a garantia de contrato coletivo de âmbito nacional para manter a responsabilidade do setor econômico para os subcontratados.

O problema é que, por trás do discurso do “vamos avançar” presente entre os defensores desta Reforma Trabalhista está também o desejo de tirar do Estado o papel de mediador da relação entre patrões e empregados, deixando-os organizarem suas próprias regras. Quando um sindicato é forte e seus diretores não jogam golfe com os diretores das empresas, nem recebem deles mimos, ótimo, a briga é boa e é possível obter mais direitos do que aquele piso da lei. Mas, e quando não, faz-se o quê? Rezamos?

Quando alguém promete uma reforma trabalhista sem tirar direitos dos trabalhadores irá, provavelmente:

a) mudar a CLT e acrescentar direitos aos trabalhadores e tirar dos empresários (posso contar também a do papagaio que passava trote ao telefone);
b) desenvolver um novo conceito do que seja um direito trabalhista (situação em que o pintor surrealista René Magritte diria: “isto não é um cachimbo”);
c) diminuir a arrecadação do Estado junto às empresas e manter os direitos dos trabalhadores (esperando que o país quebre em 3, 2, 1…);
d) vai operar um milagre mais espantoso do que multiplicar pães e peixes para uma multidão faminta.

A sociedade mudou, a estrutura do mercado de trabalho mudou, a expectativa de vida mudou. Portanto, as regras que regem as relações trabalhistas e a Previdência Social podem e devem passar por discussões de tempos em tempos.

Ou seja, caso se encontrem pontos de convergência que não depreciem a vida dos trabalhadores, não mudem as regras do jogo no meio de uma partida sem a concordância de todos e atendam a essas mudanças, elas podem passar também por uma modernização. Tem muita coisa na CLT que passou da hora em ser alterada, mas o seu coração – impedir que o natural desequilíbrio entre trabalhador e capital não seja aprofundado – deve ser preservado.

Essa discussão não pode ser conduzida de forma autoritária ou em um curto espaço de tempo. Pois essas medidas não devem servir para salvar o caixa público, o pescoço de um governo e o rendimento das classes mais abastadas, mas a fim de readequar o país diante das transformações sociais sem tungar ainda mais o andar de baixo.

Por exemplo, falar em imposição de 25 anos de contribuição para assalariados urbanos e rurais e 15 anos de contribuição para trabalhadores rurais da economia familiar, como pequenos produtores e pescadores, sem considerar que os mais pobres começam a trabalhar mais cedo é desconhecer a realidade – para ser polido. Em lugares em que as tábuas de mortalidade aponta para uma sobrevida menor após os 60 anos, como o interior Maranhão, os aposentados não terão muito tempo para usufruir as pensões antes de morrer.

O Congresso já aprovou a contratação de prestadoras de serviços para executarem atividades para as quais outras empresas foram constituídas (atividades-fim) e não apenas serviços secundários, como é hoje. É claro que a terceirização precisa de regras melhores no Brasil, porque muita gente fica ao relento. Mas a aprovação da terceirização da atividade-fim do jeito foi feito, dando a possibilidade de contratar por PJ praticamente qualquer função de uma empresa, vai piorar a vida de muita gente e reduzira arrecadação da própria Previdência. Armamos uma bomba-relógio.

O segundo projeto é exatamente o que permite que convenções e acordos coletivos de trabalho negociados entre patrões e empregados prevaleçam sobre a legislação trabalhista, mesmo que isso signifique perdas aos trabalhadores. Como já disse, negociar tendo como base nosso sistema sindical, que em muitos casos serve aos interesses dos próprios sindicalistas e não dos trabalhadores, será entregar o galinheiro à raposa.

E, antes de qualquer reforma, seria importante melhorar a regulação do mercado de trabalho (aliás, regulação é algo péssimo por aqui), desenvolver a qualificação profissional de forma a gerar empregos mais sólidos, melhorar o sistema de ingresso no mercado de trabalho (o que inclui dar efetividade ao serviço nacional de intermediação de mão de obra, pois o que existe em boa parte do país é o bom e velho ”gato” intermediando) e, é claro, a redução na jornada – pleiteada pelos trabalhadores e empurrada há anos.

O cidadão deveria ter o direito de escolher um mandatário de acordo com a agenda que ele propõe para os direitos trabalhistas e previdenciários. Com um programa de governo debatido, votado e eleito. Mas aí não aconteceriam reformas.

Parte dos jogadores está mudando as regras no meio do jogo, na surdina. Os demais só perceberão o golpe quando for tarde demais e eles tiverem sido excluídos do tabuleiro.

Um dos últimos seringueiros em atividade na região norte de Rondônia, Estevão Veloso de Aqui, de 71 anos, viu muitos companheiros de trabalho morrerem na floresta. Hoje, madeireiros estão derrubando árvores a poucos metros da porta de sua casa, dentro da reserva florestal. Ele pensa em abandonar tudo e ir para a cidade. Foto: Dida Sampaio, Estadão

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