Patricia Fachin – IHU On-Line
Os processos migratórios gerados por conta da construção da hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira, no Pará, como a “realocação das famílias nas áreas atingidas pelo alagamento decorrente do lago da hidrelétrica” e a “migração da população que trabalhou diretamente no empreendimento a partir de setembro de 2015”, algo em torno de 15.680 trabalhadores, “geraram um impacto profundo e problemático nas relações de convivência social, na geração de renda, na circulação de riquezas e, entre outras coisas, nas próprias dinâmicas de produção da violência social”, diz Assis Oliveira, professor da Universidade Federal do Pará – UFPA, à IHU On-Line.
O boom populacional na cidade por conta da construção de Belo Monte também teve como consequência o aumento do tráfico. “A demanda por consumo de drogas teve um salto expressivo com o aumento populacional em um curto período de tempo no município de Altamira. Com isso, uma disputa pelo domínio de territórios e de mercados consumidores também ocorreu concomitantemente e, sobretudo, depois do processo de realocação da população diretamente atingida, com um reposicionamento territorial de pessoas envolvidas com o tráfico de drogas, as quais passaram a reordenar, dentro dos Reassentamentos Urbanos Coletivos, a configuração dos domínios do tráfico de drogas, com base em muitos assassinatos e outras violências”, informa.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Oliveira também apresenta e comenta os últimos dados de sua pesquisa sobre a configuração da violência sexual em Altamira. “A dinâmica da exploração sexual está cada vez mais associada à movimentação do tráfico de drogas, e ambas possuem autoridades públicas envolvidas como partes coniventes da engrenagem de manutenção, usufruto e crescimento das organizações criminosas”, diz.
Além disso, pontua, aumentou o número de desempregados e do emprego informal. “No segundo semestre de 2015 e ao longo do ano de 2016, a quantidade de casas por alugar ou vender, de lojas que fecharam e de pessoas desempregadas pelas ruas, era algo de estranhar ainda mais nossos olhos já ‘acostumados’ a conviver com os impactos sociais da obra de Belo Monte”.
Graduado em Ciências Jurídicas e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará – Ufpa, Assis Oliveira é professor na mesma universidade e membro fundador do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular “Aldeia Kayapó” – Najupak.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a situação social, econômica e ambiental de Altamira hoje, após a construção de Belo Monte? De que maneira a cidade se transformou por conta da construção dessa obra?
Assis Oliveira – Li numa reportagem sobre as condições de vida em Altamira e o (des)cumprimento das condicionantes de Belo Monte, em que o repórter cunhou a expressão de clima de “fim de festa”, e eu acrescento, da “festa” que nunca houve, ou seja, do cumprimento das condicionantes socioambientais nos prazos estabelecidos pelas licenças ambientais e com a qualidade que deveria ter. Ainda que não considere que este cumprimento resultaria num clima ideal de “festa”, ou seja, de felicidade geral, pois só atestaria o nefasto processo de deslocar para a competência empresarial de boa parte das políticas públicas que deveria ter sido obrigação prévia e histórica do Estado. Ou seja, atestaria a incapacidade estatal de assegurar a garantia da cidadania à população local e o interesse de cumpri-los somente com a “moeda de troca” da implantação da hidrelétrica.
Então, pensar o que temos hoje, como condição de vida neste município, em suas múltiplas dimensões, exige atentar para os legados não concluídos de Belo Monte, que não são apenas as condicionantes pendentes de cumprimento, mas várias questões básicas, como saneamento e hospital, mas também os legados da maneira inapropriada da implantação de determinadas condicionantes, as quais geraram novas violências, a exemplo do ocorrido aos povos indígenas e à realocação da população diretamente atingida.
Ao mesmo tempo, existem os problemas do entrecruzamento de dois movimentos populacionais com alta capacidade de reterritorialização e transformação social: a retirada e realocação das famílias nas áreas atingidas pelo alagamento decorrente do lago da hidrelétrica, iniciado em meados de 2014; e a migração da população que trabalhou diretamente no empreendimento a partir de setembro de 2015, cujos dados, obtidos diretamente com o Consórcio Construtor Belo Monte – CCBM, apontam a demissão de 15.680 trabalhadores entre outubro de 2015 e abril de 2016.
Estes dois processos migratórios geraram um impacto profundo e problemático nas relações de convivência social, na geração de renda, na circulação de riquezas e, entre outras coisas, nas próprias dinâmicas de produção da violência social, que também se alteraram e ganharam novos contornos, não apenas de intensificação dos índices sociais já inflacionados pós-início da construção da hidrelétrica, assim como com novas estratégias, articulações e sujeitos envolvidos.
No entanto, gostaria de retomar a ideia do “fim de festa”, do início do texto, pois ele remete também a algo que tenho visto na convivência com alguns agentes, sobretudo do setor comercial e da classe popular do município, que é certa nostalgia dos aspectos positivos do curto período de auge da obra de Belo Monte, identificado entre os anos de 2012 e 2014, e que remete não a uma volta ao passado, mas a uma ânsia pela próxima grande obra, o próximo megaempreendimento, que pode ser Belo Sun ou outro qualquer, que possa trazer “de volta” o que se viveu naquele período crítico da hidrelétrica: geração de renda, circulação de riqueza e, supostamente, qualidade de vida. Isto, a meu ver, revela uma violência simbólica que marca e marcará profundamente o imaginário social no município, o de que a próxima grande obra é o único futuro possível para as relações socioeconômicas locais. E, por certo, esta violência simbólica atinge a própria capacidade dos sujeitos de pensarem processos alternativos de desenvolvimento local.
IHU On-Line – Segundo dados do Datasus, em 2000 ocorreram oito homicídios em Altamira, e em 2015 o número chegou a 135. Do mesmo modo, o Relatório de Vulnerabilidade Juvenil à Violência de 2015 apontou Altamira como o terceiro pior índice entre todos os municípios do Brasil com mais de 100 mil habitantes. Quais são as causas desses fenômenos?
Assis Oliveira – Existe um conjunto de dados oficiais (IDH, Ideb, Mapa da Violência, Mapa da Exclusão Social, além dos dados da Polícia, Conselho Tutelar, entre outros) que têm atestado uma tendência crescente, nos últimos seis anos, da violência social no município. Quando digo violência social, quero dizer não apenas o homicídio, que é a violência mais extrema, mas várias outras modalidades, como a violência contra a mulher, a violência sexual, furto, roubo, tráfico de drogas e ato infracional cometido por adolescentes. A leitura destes dados precisa ser associada, a meu ver, com alguns elementos explicativos que delineiam causas estruturais ou efeitos destas violências.
Em termos de causas, considero duas questões preponderantes: primeiro, está a real falta de preparação do território e das políticas públicas de maneira prévia ao empreendimento de Belo Monte, complementado pela não inclusão de medidas de segurança pública entre as condicionantes socioambientais.
Vou começar pela última, pois me parece muito grave o fato de a Segurança Pública não ter sido considerada condicionante socioambiental e, posteriormente, ter sido ajustada para obter investimento da Norte Energia via Termo de Cooperação assinado em 2011, junto ao governo do estado do Pará, num valor de 110 milhões, mas que, por um lado, concentrou quase metade deste investimento, ou 45 milhões, num único item, a compra de um helicóptero para operações policiais; e, por outro, o não investimento em atividades preventivas e investigativas da Polícia, como ações da Polícia Comunitária e aparelhos de escuta policial, cruciais para um trabalho mais eficaz da polícia.
Por outro lado, e ainda relacionado à Segurança Pública, mais diretamente à Polícia, é preciso apontar o fato de que muitos homicídios, especialmente os relacionados ao tráfico de drogas, têm a participação de milícias organizadas com mais que provável participação de policiais, e cujas investigações e punições precisam avançar com mais celeridade.
Em relação às políticas públicas e à população local, o que vemos, ao longo das etapas de construção da hidrelétrica, é o aumento da desigualdade social e da migração populacional na região afetada pela hidrelétrica que geraram condições propícias à aceleração da violência social. Então, esta desigualdade ficou maquiada durante a etapa de construção do empreendimento, quando o volume de recursos financeiros em circulação na cidade e o aumento do custo de vida repercutiam na precarização das condições de vida e da violência, devido ao caráter concentrador da geração de renda e ao não acompanhamento pelas condicionantes que poderiam frear ou reduzir os impactos sociais de alguns desses processos.
Depois, com a chegada do processo tecnicamente chamado de “desmobilização dos recursos humanos” do empreendimento, em que, em poucos meses, mais de 15 mil pessoas foram demitidas e houve uma queda acentuada da arrecadação de tributos, da circulação de dinheiro e da geração de emprego e renda no município, as condições de vida continuaram a tendência de precariedade, associada à crise econômica e política nacional, mas, sobretudo, pela ausência de um plano de sustentabilidade socioeconômica e ambiental ao município pós-Belo Monte. E hoje ainda se discute a implantação de condicionantes, como a de saneamento básico, que deveriam estar prontas desde a etapa prévia, e fica-se a disputar, agora, os dois únicos recursos que permaneceram a médio/longo prazo disto tudo, os royalties da geração de energia da hidrelétrica e o fundo do PDRS/Xingu.
IHU On-Line – Como a população de Altamira tem reagido ao aumento dos homicídios e da violência?
Assis Oliveira – A população de Altamira, sobretudo as organizações e os movimentos sociais, sempre se mostrou muito atenta à repercussão social da violência no município. Basta lembrar toda a mobilização social desencadeada no caso dos meninos emasculados, no início da década de 1990, para dizer que já existia uma contestação social antiga quanto à situação da violência social no município e prévia às novas situações geradas por influência de Belo Monte.
Em relação à violência ocorrida nos últimos anos, houve diversas ações sociais, como audiências públicas, passeatas, cartas públicas e planos intersetoriais, que buscaram apontar não apenas os cenários da violência em si, mas proposições de criação e/ou melhorias de políticas públicas e, sobretudo, alterações para o Plano Básico Ambiental da hidrelétrica de Belo Monte e iniciativas de projetos sociais financiados pelo Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu.
Na pauta que atuei com mais afinco enquanto professor e militante social, do enfrentamento da violência sexual e garantia dos direitos de crianças e adolescentes, a Comissão Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, os diagnósticos, os planos intersetoriais e as mobilizações sociais desenvolvidas ao longo destes últimos anos certamente contribuíram para qualificar o debate e as formas de intervenção sobre tais temáticas, e não apenas em nível local, mas também pensando as conexões com outros cenários regionais ou nacionais em que o modelo de desenvolvimento pautado em grandes obras provoca a mesma reprodução histórica das violências sociais e da lógica de atuação do Estado e das empresas.
IHU On-Line – Além do aumento do contingente populacional por conta da construção de Belo Monte, muitos avaliam que as drogas têm tido um peso relevante no aumento da taxa de homicídio. Que papel as drogas e o tráfico de drogas desempenham nos casos de homicídios e violência urbana na região?
Assis Oliveira – É certo que a demanda por consumo de drogas teve um salto expressivo com o aumento populacional em um curto período de tempo no município de Altamira. Com isso, uma disputa pelo domínio de territórios e de mercados consumidores também ocorreu concomitantemente e, sobretudo, depois do processo de realocação da população diretamente atingida, com um reposicionamento territorial de pessoas envolvidas com o tráfico de drogas, as quais passaram a reordenar, dentro dos Reassentamentos Urbanos Coletivos, a configuração dos domínios do tráfico de drogas, com base em muitos assassinatos e outras violências.
Porém, quero ressaltar algo que constatei com os dados apurados da última pesquisa que coordenei sobre a configuração da violência sexual em Altamira: a dinâmica da exploração sexual está cada vez mais associada à movimentação do tráfico de drogas, e ambas possuem autoridades públicas envolvidas como partes coniventes da engrenagem de manutenção, usufruto e crescimento das organizações criminosas.
IHU On-Line – Como o poder público tem se manifestado sobre os casos de homicídio na cidade?
Assis Oliveira – No caso dos homicídios, o foco central de análise é a atuação do governo estadual, que possui competência gerencial sobre as Polícias. Tenho dito, já de algum tempo, que é preciso ampliar o investimento na área de prevenção, num trabalho da Polícia que seja mais comunitário, e menos ostensivo, que atue mais na perspectiva do diálogo e da inteligência policial, do que da repressão às situações de violência já ocorridas. Mas também é preciso pensar nas duas pontas deste processo: o primeiro é o campo judicial, e a importância de assegurar a celeridade de tramitação dos processos judiciais e de combater a impunidade; o outro são as políticas públicas básicas, como educação, saúde, iluminação, geração de renda e lazer, que possuem uma influência estrutural na qualidade de vida das pessoas e no aumento ou na diminuição das vulnerabilidades que propiciam a ocorrência de violências sociais, como o homicídio.
IHU On-Line – Altamira teve um boom de emprego à época da construção de Belo Monte. Hoje, diante da crise econômica e do aumento do desemprego, qual é a situação em relação à empregabilidade na cidade?
Assis Oliveira – A situação é bastante crítica e tem gerado não apenas um aumento do desemprego, mas também do emprego informal, que, via de regra, dificulta o acesso aos direitos trabalhistas e coloca os trabalhadores em situações de risco. No segundo semestre de 2015 e ao longo do ano de 2016, a quantidade de casas por alugar ou vender, de lojas que fecharam e de pessoas desempregadas pelas ruas, era algo de estranhar ainda mais nossos olhos já “acostumados” a conviver com os impactos sociais da obra de Belo Monte, e isto, por certo, gerou também um impacto de arrecadação tributária pelo poder público, replicando este problema para a capacidade do Estado de gerar políticas efetivas de enfrentamento desta situação.