Rapé: Pó com whisky e um pouco de Jurema Preta…

Por: Jairo Lima – Crônicas Indigenistas

Sinceramente, o Brasil perdeu as estribeiras, de maneira escancarada nesta funesta semana que quase não termina. Fotos de corpos ensanguentados na chacina de sem-terra no Pará misturavam-se a cenas grotescas de prédios queimando no Planalto Central, saltando da tela fria do meu computador como partes de um horrendo filme Classe B.

Tentando manter a sanidade e uma certa prudência nas leituras e interações com o mundo ‘exterior’ (para mim, esse mundo é o que acesso através do meu computador), restringe muito o acesso e a interação, no intuito de evitar polêmicas ou discussões inúteis sobre temas que já tenho minha própria opinião formada.

Enquanto dava conta dessa roda viva existencial profissional e pessoal que é a vida da gente, entre as mensagens interessantes que recebi, teve uma do Jornalista Altino Machado que me indicou a leitura de um artigo da revista Piauí, sob o título ‘DE VOLTA AO PÓ – A ressurreição do rapé’ (clique aqui). Texto bizarro, na verdade, mas bem interessante, e que de certa forma, sistematiza muito a sobre do que venho refletindo e escrevendo nestes últimos meses.

Neste texto, a autora narra uma noite de peripécias com figuras do meio teatral, onde a questão toda rola em torno de ‘cheirar o pó’, em alusão ao uso de rapé de origem indígena. Claro que, em virtude da limitação de espaço numa coluna de revista, amordaçada pela quantidade de palavras, a autora do texto tenta explicar um pouco sobre este rapé, citando alguns povos indígenas do Acre que se destacam na produção e ‘exportação’ do produto. Cita ainda o fato de que é um costume que vem tomando conta dos meios sociais e artísticos, destacando seu uso por parte de “ artistas, hipsters e ativistas da causa indígena” (sic). O final da matéria também é igualmente bizarro e interessante:

Uma amiga do dramaturgo, que pouco antes havia se juntado a nós, comentou que tinha em casa um saco de 100 gramas de jurema-preta, uma árvore cuja raiz tem propriedades psicoativas. “Vamos usar isso aí”, ele reagiu, animado. “Como é que faz? Você cheira ou você toma?”, quis saber.

“Tem que fazer um ritual, acender uma fogueira”, respondeu a amiga. “Ah, ritual, não. Aí é coisa de pajé”, respondeu o dramaturgo, antes de colocar os óculos escuros. Depois saiu do camarim, decidido, e foi se encostar no balcão do bar. Queria tomar mais uma dose de Jack Daniel’s.

Indico a leitura deste texto. Melhor, indico insistentemente que o mesmo seja lido e creio até que o entendimento da minha reflexão de hoje só fará sentido para quem ler o mesmo.

Aviso que não irei aqui fazer toda uma reflexão purista sobre o tanto que estes personagens do texto são o estereótipo da banalização das medicinas indígenas. Nada disso. Na verdade creio que estes devam ser umas figuras bem interessantes de ter como amigos para uns bons papos. Claro que estes dariam um trabalhão danado se participassem de maneira séria de um ritual onde se usassem a ayahuasca, Jurema ou mesmo o rapé.

Vale lembrar que em outro texto já refleti profundamente sobre o rapé indígena, suas propriedades espirituais e os cuidados para com o uso do mesmo, indico sua leitura (clique aqui). Deixei claro que tem pessoas que o utilizam de maneira social, sem cerimônias ou preocupação mais séria do que encontrar um pedaço de papel para limpar o muco escuro que certamente escorrerá de suas narinas (se bem que há aqueles que engolem a coisa toda). Ou seja, não há a preocupação com o ‘equilíbrio no cotidiano’, ou o ‘equilíbrio do yuxin e yuxibu.

Esse uso dissociado de um ritual ou sem uma preocupação ritualística ocorre mesmo entre os indígenas, é normal, apesar de acreditar que nenhum destes o fariam de maneira tão junkie quanto o protagonista da matéria da Piaui faz.

Essa expansão do rapé, em destaque ante os demais produtos das chamadas ‘medicinas indígenas’ não é de se estranhar, afinal, seus efeitos físicos e ‘perceptivos’ são facilmente notados. O mercado da espiritualidade indígena, com seus produtos disponíveis via internet, já está bastante consolidado, vindo a propiciar riqueza material para seus representantes (ou atravessadores), como, certamente, o fornecedor entrevistado na matéria. E isso seria uma banalização do chamado ‘sagrado indígena’? – É uma questão interessante para se pensar.

O rapé é algo que faz parte da mística indígena, mas não é usado só para isso. Também não é exclusivo indígena, afinal, o uso de rapé já era de conhecimento e possui um mercado próprio há muito tempo, apesar de que o produto ‘industrializado’ ser horrível e pouco eficiente, se comparado ao indígena com seus diferentes ‘temperos’ no preparo. Por isso mesmo vem crescendo seus consumidores ‘sociais’.

Ele tem seu papel e espaço nos rituais indígenas, tendo, inclusive rituais específicos e técnicas para seu uso, no entanto, no que diz respeito aos povos citados na matéria, e em outros da mesma região. No entanto, o pináculo de seu misticismo é, sem sombra de dúvidas a ayahuasca. E o seu uso social ou cotidiano desvinculado de uma ritualística, para mim ao menos,  seria a mesma coisa que ver alguém comendo todos os dias no café da manhã uma tigela de hóstias com leite, ou, ainda ver alguém fazendo cigarrinhos de palha usando as página do Alcorão.

“Mas a parada vicia?” – Claro que vicia. É aí que vem a questão do cuidado com o equilíbrio em seu uso, do contrário, torna-se um vício bastante desagradável, assim como o tabagismo, ou até pior, uma vez que tem-se os fluídos expurgados à cada uso, além do que, para os usuários nawa (não-índios) compulsivos de longa data observa-se alguns tiques bastante comuns (e irritantes).

Vale citar que além dos que usam rapé como ‘pó’, tem ainda aqueles, que, por se considerarem espiritualizados, ou ‘antenado’ com as causas indígenas,  justificam seu uso compulsivo como parte de sua espiritualidade ou afinidade com a causa. Bobagem, afinal todo excesso é fruto de um desequilíbrio. Mas, para estes é entendível essa falsa noção espiritual, já que na sociedade moderna, em geral as pessoas querem uma espiritualidade que lhes sirvam, uma espiritualidade de consumo.

Mas, vamos ‘virar a moeda’, olhar do outro lado.

O rapé é um produto de ‘exportação’ das comunidades indígenas, principalmente aqui no Acre. Dá lucro para seus feitores, claro, que bem menos que para os atravessadores (e tem um bocado aqui),  e o comércio ajuda muitas famílias indígenas e gera renda para a comunidade.

Certamente que temos vozes que se levantam contra seu uso social, pelo menos, no que concerne ‘ao outro’, já que dificilmente esta restrição seria adotada pelos que são contra. Se a proposta é mantê-lo somente dentro de seu espaço sagrado seria necessário extinguir este mercado de produção e consumo. Será?

É importante citar que, assim como muitos produtos de origem indígena, sempre tem aqueles nawa que aprendem a fazer estes produtos e passam a se beneficiar financeiramente dos mesmos. De maneira que, mesmo com a restrição e proibição de que as comunidades indígenas comercializassem este produto, o mesmo não desapareceria do mercado.

Acreditem, eu acharia louvável e apoiaria totalmente se uma comunidade decidisse vetar toda e qualquer possibilidade de acesso e venda de suas medicinas. Se fosse decidido que somente teriam acesso às mesmas aqueles que fossem até a comunidade para uma vivência e aprendizagem. Isso seria ótimo, perfeito. Mas pouco provável que ocorra.

Acredito ser importante que as ‘autoridades’ alertem os usuários para os cuidados com o uso deste produto, afinal o mesmo tem como base o tabaco e pode trazer complicações para a saúde quando usado em excesso (ou em grande dosagem).

Não costumo usar rapé. Eu prefiro o tabaco em seu estado natural mesmo. Sou fumante de cachimbo, o qual o utilizo pouco antes de ir deitar, à noite, como parte de minha ‘sincronização’ com o estado de espírito e percepção que creio ser ideal. Não o usaria o dia todo, afinal, vejo seu uso um pouco além do social, mas não excluo essa possibilidade quando necessário. Assim reservo o momento para isso, seja em rituais que participo, seja sozinho, em minha casa.

Aqui pelo Juruá o uso do rapé vem aumentando consideravelmente entre os jovens da cidade, trazendo, inclusive, problemas nas escolas que o vêem estritamente (e estão certas) como tabaco, quando dentro do espaço e do tempo escolar em que o aluno se encontra em suas dependências. Estão certas em buscar informar tanto os alunos quanto os pais sobre isso, mas precisam ainda melhorar este atendimento pois, na maioria, infelizmente, tratam a situação como se trata de algo pernicioso à sociedade tal qual o uso de cocaína, sendo considerado o comércio do produto (mesmo que não usado) dentro da escola uma falta grave, digna de apreensão e chamamento dos pais para uma conversa com a direção.

Ainda não temos um estudo ou uma posição oficial dos chamados ‘órgãos de controle’ sobre o rapé indígena. Vale citar que o mesmo é apreendido quando transportado em grande quantidade em aeroportos ou rodoviárias. Porque? Creio que por falta justamente de uma regulamentação que esclareça mais sobre este produto de origem comunitária. Se eu acho ser importante haver esta regulamentação? – Não sei, na verdade seria um bom tema para uma conversa com as comunidades, para que elas decidissem.

Como citei no início desta crônica, o texto da revista é bem interessante, com suas bizarrices e desinformação. É importante citar aqui que, ao contrário do que os personagens da insólita aventura comentam no texto, não se deve aplicar rapé em recém-nascidos, pois elas não ficarão calmas, e sim morrerão.

Finalizando, acho a atitude dos protagonistas da matéria algo típico do que vem ocorrendo comumente nos grandes centros urbanos, mesmo achando um pouco demais a mistura ‘pó com whisky’. Assim, não vejo o assunto (ou o texto) como polêmico, nem digno de manifestos e ‘hastags’ (#) do tipo #soucontraessaporratoda  ou #soudorapéenãolargo.

Mas uma coisa é certa, eu não teria coragem de ir pra balada com essa galerinha aí não, afinal #nemtodomundoémalucoaesseponto.

Boa semana a tod@s!   

Imagem: Site Medicina da Floresta

Comments (1)

  1. Uaaaau! Que texto!
    Infelizmente, se eu conhecer 3 que concordariam é muito. A galera viciada em rapé não aceita de jeito nenhum q é vício.
    Em 7 anos que conhecí esta medicina utilizei 5 vezes…quase que 1 a cada ano.
    Nisso, todo final de semana, jumto com outras medicinas e drogas tambem, vejo gente se atolar no pó.
    Amei quando tu falou da hóstia pq é bem assim mesmo q eu vejo…fico assombrada. Uns 5 rapés num “trabalho espiritual” de 4 horas de duração e ainda usam em casa…antes e depois…é assustador.
    E ainda tem as demais medicinas…ayahuasca 4 vezes por semana, 200 ml…
    Concordo contigo. Seria um sonho restringirem tudo às origens e quem quisesse q fosse la consagrar…
    Mas é somemte um sonho mesmo..tem questões mais delicadas aí financeiramente falando também…sigamos…e o q há

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