Patrícia Fachin – IHU On-Line
Nas duas últimas décadas e meia, a “ação política” foi substituída ou confundida com a “atuação social”, adverte a socióloga Regina Magalhães de Souza, na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail. A atuação social foi “colocada no lugar da ação política como se fosse ação política, aliás, como se fosse a única alternativa legítima e verdadeira de ação política. Mas ela não é ação política, uma vez que não supõe poder de decisão, nem criação, nem mudança no rumo dos eventos”, diz.
Segundo a socióloga, embora essas duas práticas pareçam semelhantes, suas consequências são completamente diversas. A atuação social, explica, “consiste em defender interesses particulares e fazer coisas, ou prestar serviços a si próprio e à comunidade” e, portanto, “não há um propósito coletivo” nessas ações, porque elas visam “interesses localizados e individuais”.
Na entrevista a seguir, Regina Magalhães de Souza comenta o que ficou conhecido como “protagonismo juvenil”, tema de sua tese de doutorado, intitulada “O discurso do protagonismo juvenil” (São Paulo: Ed. Paulus, 2008), e afirma que “esse modo de compreender a ‘participação social’ (…) pouco reflete as demandas da juventude e da sociedade civil”. “A defesa de interesses ocorre por mecanismos de ‘participação’ já previamente definidos, em torno de questões já previamente decididas, de acordo com uma semântica que confunde. Assim, a chamada ‘participação’ na ‘formulação’ das políticas é apenas oportunidade de reafirmação de decisões que já foram concebidas em outras instâncias”, constata.
Na avaliação dela, o discurso do “protagonismo juvenil” difundido por ONGs e instituições governamentais desde a década de 90 “tem embasado a política de educação” brasileira. Apesar disso, defende, “os jovens, as mulheres, os negros, os trabalhadores, os cidadãos, enfim, qualquer que seja a categoria ou grupo social, não precisam, nem devem se preocupar ou perseguir o protagonismo. Aliás, eu proponho que se esqueça o protagonismo!”. As manifestações recentes de ocupação de escolas ou os protestos de junho de 2013, afirma, “não foram protagonistas”, mas “demonstrações das possibilidades de ação política verdadeira, autônoma e autêntica por parte dos jovens”.
Regina reflete ainda sobre as causas da insatisfação social no Brasil e frisa que uma das causas desse sentimento foi manifestada em junho de 2013. “Uma delas, que eu penso esteve presente como motivação das manifestações de 2013, é a condição do indivíduo que se vê desamparado e impotente, mas, ao mesmo tempo, obrigado a arcar com as responsabilidades e tarefas que a própria sociedade lhe impõe. Não foi por acaso que a mobilidade urbana foi o tema inicial das manifestações de 2013: jovens que se veem obrigados a fazer malabarismos para atender às exigências do mercado de trabalho e da sobrevivência cotidiana, tentando conciliar jornadas extensas de trabalho e escola noturna, percorrendo grandes distâncias diariamente, sentem-se meio ‘traídos’ quando a própria sociedade não lhes garante as mínimas condições para realizarem, justamente, o que lhes é exigido”, conclui.
Regina Magalhães de Souza é graduada em Ciências Sociais, mestra e doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. É socióloga efetiva do Departamento de Produção e Análise de Informação da cidade de São Paulo e professora de Sociologia na Universidade Nove de Julho.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Na sua tese de doutorado, você menciona que desde a década de 1990 os organismos internacionais, sejam ONGs ou órgãos governamentais, têm citado o “protagonismo juvenil” em seus documentos. Quais documentos especificamente você analisa, como essa ideia de “protagonismo juvenil” é abordada nesses documentos e por que ela aparece a partir desse período?
Regina Magalhães de Souza – Na minha tese, intitulada O discurso do protagonismo juvenil, pesquisei artigos acadêmicos e documentos produzidos pelos organismos internacionais (ONU, Unesco, Cepal etc.), organizações do chamado terceiro setor e governos (federal, estaduais, municipais), no período compreendido entre 1985 e 2005. Analisei um conjunto bastante amplo e diverso de documentos, basicamente, artigos, livros, textos publicados nos sites da internet, legislação, matérias de jornais e revistas, relatórios de conferências e congressos.
O enunciado protagonismo juvenil nem sempre aparece explicitamente no texto dos documentos, mas está, pelo menos, suposto. Ou seja, enquanto algumas organizações e autores mencionam, explicitamente, a expressão protagonismo juvenil, outras participam do mesmo discurso, mesmo sem mencioná-la diretamente.
No Brasil, o enunciado protagonismo juvenil como identificador e aglutinador de um discurso sobre a juventude surge em meados dos anos 90. Trata-se de um discurso – ou de um conjunto mais ou menos articulado de ideias, argumentos, conceitos, orientações para a ação – sobre a participação da juventude na sociedade, que começa a ser produzido em finais da década de 70, antes mesmo da emergência da expressão protagonismo juvenil. Um dos primeiros marcos desse discurso acontece no ano de 1979, quando as Organizações das Nações Unidas declararam o ano de 1985 como o Ano Internacional da Juventude: Participação, Desenvolvimento e Paz. De lá para cá, foram sendo construídas as chamadas “políticas públicas” de juventude, no interior das quais foi sendo produzido um discurso que tem como pedra angular a prescrição de uma forma determinada de “participação” dos jovens nessas mesmas políticas.
O protagonismo juvenil não é um discurso dos jovens, mas dos adultos. Não é um discurso transformador, mas integrador. Isto porque ele prescreve, ou impõe, um modelo determinado de “participação”. Embora não pareça à primeira vista, não são os jovens que têm o efetivo poder de decisão e deliberação sobre suas ações.
IHU On-Line – Qual é o discurso que dá ou tem dado suporte a essa concepção de “protagonismo juvenil”?
Regina Magalhães de Souza – A sociedade é concebida como um aglomerado de indivíduos “atores sociais” num cenário, todos, supostamente, em condições de igualdade para defender seus interesses e prestar serviços a si próprios e à comunidade. Ou seja, as desigualdades estruturais são omitidas; o discurso é homogeneizante e esconde as contradições sociais.
Uma das dificuldades para se fazer a crítica a esse discurso é, justamente, que ele não aparece como um discurso integrador, homogeneizante e conservador. Pelo contrário, ele aparece como transformador, como a alternativa legítima e verdadeira de participação e transformação. Ele faz isso por meio de estratégias e mecanismos diversos, “armadilhas”, poderia se dizer.
Uma dessas armadilhas é o embaralhamento de significados: ou seja, noções construídas em outros momentos históricos são tomadas e usadas, simultaneamente, com sentidos ambíguos, por vezes, tautológicos, confundindo aquele que se depara com esse discurso. Entre os muitos exemplos que poderiam ser citados, destaco a palavra “cidadania”, repetida à exaustão, mas com sentidos distintos daquele construído na década 80, consagrado na Constituição de 1988, e que supõe a garantia efetiva e inquestionável de direitos. Hoje, os direitos foram reduzidos a serviços a que cada indivíduo deve constantemente “correr atrás” e pagar por eles ou, pelo menos, oferecer uma contrapartida.
Então, trata-se de um discurso que coloca no indivíduo as responsabilidades pelos seus êxitos e pelos seus fracassos, ignorando posições de classe e condições históricas, econômicas e sociais. Ao indivíduo, considerado “ator social”, compete defender seus interesses e trabalhar para si próprio e para a comunidade.
IHU On-Line – Como esses documentos internacionais têm sido analisados por sociólogos que estudam a temática da juventude e do protagonismo juvenil na política e no espaço público?
Regina Magalhães de Souza – Infelizmente, são raras as críticas radicais a esses documentos e às políticas prescritas pelos organismos internacionais. Esse discurso integrador também está sendo coproduzido no meio acadêmico, não só por sociólogos, mas, principalmente, por economistas e pedagogos.
IHU On-Line – Que modelo de ação política esses organismos internacionais têm incentivado?
Regina Magalhães de Souza – Trata-se de um modelo de participação, na maioria das vezes, não nomeado como “ação”, nem como “política”, mas como “atuação social“. A “atuação social” consiste em: defender interesses particulares e fazer coisas, ou prestar serviços a si próprio e à comunidade. Não há um propósito coletivo, mas interesses localizados e individuais.
A defesa de interesses ocorre por mecanismos de “participação” já previamente definidos, em torno de questões já previamente decididas, de acordo com uma semântica que confunde. Assim, a chamada “participação” na “formulação” das políticas é apenas oportunidade de reafirmação de decisões que já foram concebidas em outras instâncias. A “participação” serve para a fabricação do consenso. Não há verdadeira deliberação, muito menos contestação. Os rumos dos acontecimentos não são alterados.
E o fazer coisas ou prestação de serviços, a outra face da “atuação social“, é, simplesmente, trabalho não remunerado! A dita “participação” na “implementação” das políticas é, em última instância, apenas trabalho gratuito, apresentado como se fosse capaz de produzir a transformação social. Mas, como diz Hannah Arendt, o fazer apenas acrescenta artefatos ao mundo, mas não o transforma.
Regina Magalhães de Souza – A “atuação social” é colocada no lugar da ação política como se fosse ação política, aliás, como se fosse a única alternativa legítima e verdadeira de ação política. Mas ela não é ação política, uma vez que não supõe poder de decisão, nem criação, nem mudança no rumo dos eventos. A “atuação social” é, como já disse, apenas defesa de interesses privados e prestação de serviços, ou seja, é a reafirmação do status quo, do já existente. E aí o próprio discurso denuncia a encenação da política, ao adotar os termos atuação, ator, protagonismo, cenário. Nesse sentido, o discurso não mente.
IHU On-Line – Quais têm sido as consequências políticas e sociais do incentivo dessa concepção de protagonismo juvenil nesses documentos?
Regina Magalhães de Souza – O discurso do protagonismo juvenil tem embasado a política de educação no Brasil, tanto a educação escolar quanto a não escolar, realizada pelas organizações do terceiro setor. Como eu fiz a análise de documentos, não tenho elementos para dizer até que ponto as escolas, professores e educadores reais, nas suas práticas cotidianas, estão, de fato, colocando o discurso em ação. Há necessidade de se realizarem outros estudos para investigar o alcance desse discurso na prática dos educadores, mas também na experiência dos próprios jovens. Mas, sem dúvida, nos textos escritos, o discurso do protagonismo juvenil é hegemônico.
IHU On-Line – Considerando as questões discutidas na sua tese, como você avalia as manifestações de junho de 2013? A juventude manifestou seu protagonismo de fato naquela ocasião?
Nesse sentido, as manifestações de junho de 2013 foram um acontecimento muito importante na história deste país. No futuro, acho que as próximas gerações vão estudar na escola a ruptura histórica provocada pelas manifestações de 2013. Respondendo à sua pergunta: os jovens não foram protagonistas em 2013! Que bom!
IHU On-Line – Como o protagonismo dos jovens brasileiros se manifesta hoje, em diferentes cenários sociais, culturais e políticos, especialmente na atual conjuntura de crise?
Regina Magalhães de Souza – O protagonismo juvenil é a forma de participação imposta pelo poder instituído. Assim sendo, os alunos de ensino médio que ocuparam suas escolas no ano passado, a meu ver, também não foram protagonistas! Tanto as manifestações de 2013, quanto as ocupações das escolas de 2016 foram demonstrações das possibilidades de ação política verdadeira, autônoma e autêntica por parte dos jovens. Ou seja, o discurso do protagonismo juvenil não consegue ser universal e a todos integrar.
IHU On-Line – A que atribui o atual estado de insatisfação político e social nos dias de hoje, especialmente no Brasil?
Regina Magalhães de Souza – São inúmeras, eu diria, as causas de insatisfação numa época de capitalismo flexível e de políticas neoliberais agressivas. Uma delas, que eu penso esteve presente como motivação das manifestações de 2013, é a condição do indivíduo que se vê desamparado e impotente, mas, ao mesmo tempo, obrigado a arcar com as responsabilidades e tarefas que a própria sociedade lhe impõe. Não foi por acaso que a mobilidade urbana foi o tema inicial das manifestações de 2013: jovens que se veem obrigados a fazer malabarismos para atender às exigências do mercado de trabalho e da sobrevivência cotidiana, tentando conciliar jornadas extensas de trabalho e escola noturna, percorrendo grandes distâncias diariamente, sentem-se meio “traídos” quando a própria sociedade não lhes garante as mínimas condições para realizarem, justamente, o que lhes é exigido.
IHU On-Line – Qual sua avaliação da atual conjuntura?
Regina Magalhães de Souza – De um lado, muita desilusão e falta de perspectiva. De outro, penso que nas periferias das grandes cidades estão aqueles, jovens e adultos, que já perceberam o esgotamento de certas práticas políticas, mas que não foram integrados pelo discurso do protagonismo juvenil nem seduzidos pelas estratégias manipulativas do mercado de consumo. As possibilidades de política transformadora, o que quer que isso signifique, estão aí.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Regina Magalhães de Souza – Analisei documentos publicados entre 1985 e 2005, e defendi minha tese em 2006. Hoje, mais de dez anos depois, creio que minha interpretação continua bastante atual. Meu trabalho tem causado polêmica e grande desconforto entre aqueles professores e educadores em geral que, honesta e seriamente, valorizam a participação da juventude, mas se veem identificados com um discurso autoritário e manipulador. Fazer a crítica do discurso do poder é tarefa urgente e necessária, embora não seja fácil, para ninguém… Mas esses mesmos professores e educadores têm um conhecimento que não se encontra nos livros de pedagogia, muito menos nos documentos dos organismos internacionais. Assim, eu tenho participado de debates muito ricos.
Termino dizendo que, a meu ver, os adultos não devem ensinar os jovens a participarem, mas, sim, lhes fornecer elementos – teorias, conceitos, métodos de pensamento, oportunidades de discussão e livre manifestação de ideias e experiências – para que os próprios jovens tomem suas decisões e escolham seus caminhos, na política e na vida, mais conscientes do sentido de suas ações.