Rubens Casara: combate à corrupção não pode levar à corrupção da própria democracia

A opinião pública não autoriza o afastamento das regras democráticas

Em O Globo

As democracias do pós-guerra se caracterizam, para além da efetiva participação popular na tomada de decisões, pela existência de limites intransponíveis ao exercício do poder, de qualquer poder. Nem mesmo a vontade de maiorias de ocasião, muitas vezes forjada na desinformação, permite o afastamento dos limites impostos ao poder pela Constituição. Nem mesmo em nome das “melhores intenções” dos agentes estatais, esses limites podem ser ignorados. Nas democracias constitucionais, os fins não justificam os meios, as ilegalidades não podem ser combatidas com ilegalidades, a opinião pública não autoriza o afastamento das regras democráticas e o combate à corrupção não pode levar à corrupção da própria democracia.

As experiências totalitárias demonstraram que o poder sem limites leva à barbárie. Hitler, que alcançou o poder político pela via legal, recorreu ao discurso do fim da corrupção, da eliminação do comunismo e do retorno às origens do povo alemão para legitimar suas ações. Todo movimento autoritário passa pela busca de legitimidade a partir de argumentos que reservam aos limites legais, morais ou éticos o papel de obstáculos transponíveis à eficiência do Estado ou do mercado.

A linha argumentativa de que situações excepcionais justificariam medidas excepcionais está presente em toda quadra autoritária, de Auschwitz ao bombardeio em Hiroshima e Nagasaki, da “Revolução Cultural” de Mao à eliminação de dissidentes na URSS, do Estado Novo de Vargas ao golpe de 1964.

Na democracia constitucional, que introduz a rigidez constitucional e a presença de garantias constitucionais inegociáveis pensadas para evitar novos delírios autoritários, cabe ao Judiciário a função de resguardar os limites legais impostos ao poder político, ao poder econômico e ao exercício do próprio poder jurisdicional. Dentre esses limites, destacam-se os direitos e garantias fundamentais, verdadeiros trunfos contra a opressão e maiorias de ocasião, inclusive no Parlamento. As garantias constitucionais dos direitos fundamentais, portanto, são igualmente garantias da própria democracia: afastar ou “relativizar” direitos e garantias é sempre um passo ao autoritarismo.

Cabe aos juízes evitar derivas autoritárias. Para tanto, devem atuar sem comprometimento com a versão do autor ou do réu. Sempre que o juiz adere a uma das teses parciais, e assume como verdadeira uma versão mesmo antes da produção probatória, abandona a imparcialidade. Nos julgamentos penais, a tentativa de se aproximar da verdade desaparece sempre que o juiz cede a uma certeza delirante. Juízes inseridos numa cultura democrática procuram evitar a tentação autoritária de aderir às hipóteses parciais e, para tanto, respeitam os direitos e garantias fundamentais que servem de garantia da imparcialidade no processo. Porém, juízes lançados em tradição autoritária afastam garantias fundamentais que poderiam constranger suas certezas delirantes.

No Brasil, preocupa a percepção popular do juiz como um inimigo do réu, como um Führer do processo. Inimigo, por definição, é aquele que, na guerra, não possui direitos. O fato de o cidadão, à direita e à esquerda do espectro político, encarar um processo judicial como um duelo, no qual o juiz está em oposição a uma das partes, diz muito da falta de uma cultura democrática. O fato de agentes políticos afastarem direitos e garantias fundamentais para agradar a maiorias condicionadas por uma tradição autoritária revela o caminho perigoso que se está a seguir.

Rubens Casara é juiz

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