Presidente da FEI, Raimundo Sobrinho é proibido de usar o sobrenome Atroari

Por Kátia Brasil,  no

O diretor-presidente da Fundação Estadual do Índio (FEI) no Amazonas, Raimundo Nonato Ferreira Sobrinho, 50 anos, assinou um Termo de Compromisso do 5º Ofício Cível do Ministério Público Federal, no dia 6 de junho, onde reconheceu que não pertence à etnia indígena Waimiri Atroari, e se comprometeu a não utilizar os nomes Waimiri, Atroari ou qualquer outra expressão referente ao grupo étnico como elemento de sua identificação no nome, sobrenome ou apelido, em qualquer ocasião.

A assinatura do Termo de Compromisso, que é inédito em contestação da identidade indígena na Amazônia, foi uma exigência do povo Waimiri Atroari (auto denominados de Kinja), que desde 2014 questionava a ausência de legitimidade de Raimundo Sobrinho para se identificar publicamente como índio da etnia com o nome de “Raimundo Atroari”.

No caso de descumprimento do termo, conforme o documento ao qual a Amazônia Real teve acesso, Raimundo Sobrinho poderá ser responsabilizado por crime de falsidade ideológica, podendo pagar indenização por danos morais aos Waimiri Atroari. Como ele assinou o documento “por sua livre e espontânea vontade”, segundo o MPF, não cabe recurso judicial.

O termo foi assinado também pelas seguintes lideranças Waimiri Atroari: Mario Parwe Atroari, José Maria Warakaxi, Waika Elinaldo, Joanito Tuwadja e Aldo Sawa. Eles representam a população de 1.939 índios do tronco lingüístico Karib, que vive no território tradicional localizado entre o sul de Roraima e norte do Amazonas.

Assinaram o documento ainda o procurador da República Fernando Merloto Soave, do MPF no Amazonas, Arthur Nobre Mendes, Maria Janete de Carvalho e Rafael Illenser, da Fundação Nacional do Índio (Funai), o gerente Marcelo Cavalcante e o advogado Jonas Fontenele de Carvalho, do Programa Waimiri Atroari, e a advogada Suzy Evelyn Souza e Silva, da Fundação Estadual do Índio (FEI).

Como o nome “Atraori” no sobrenome, Raimundo Sobrinho despontou no Movimento Indígena de Manaus, em 2014. Além de assumir o cargo de diretor-presidente da Fundação Estadual do Índio em 2016,  notícia de grande repercussão na mídia com o título: “Raimundo Atroari é nomeado presidente da FEI”; ele foi indicado pelo ex-governador  do Amazonas, José Melo (Pros), para assumir a Presidência da Funai no lugar do dentista e pastor Antônio Costa, exonerado em 5 de maio último. Nos discursos, Raimundo nunca defendeu causas dos Waimiri Atroari.

Nos documentos que estão anexados junto com o termo há a cópia da carteira de identidade de Raimundo Sobrinho, onde consta que ele nasceu no município de Novo Airão, no Amazonas. Na carteira não há o número do Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI), que é emitido pela Funai, e não cita se ele é índio.

A agência Amazônia Real procurou a assessoria de imprensa da FEI para entrevistar o diretor-presidente Raimundo Sobrinho sobre a assinatura do Termo de Compromisso no MPF. O órgão pediu que as perguntas fossem enviadas por e-mail. Na tarde desde segunda-feira (12), a assessoria enviou uma nota oficial assinada por Sobrinho. Ele diz “que irá cumprir a determinação do Termo de Compromisso nº02/2017, firmado junto ao Ministério Público Federal e as lideranças do povo Waimiri Atroari”. Ressalta também “que o cumprimento desta medida representa o profundo respeito que ele tem pelo povo Waimiri Atroari, do qual se reconhece como descendente.”

“O Diretor-presidente destaca ainda que a não utilização do nome “Atroari” não modifica sua identidade e seu orgulho de ser indígena, como também não compromete o amor que sente pelos povos originários, assim como sua determinação diária na luta pela conquista e garantia dos direitos indígenas neste Estado”, diz a nota assinada por Raimundo Sobrinho. A íntegra da nota oficial está no final desta matéria.

O conhecimento dos velhos Kinja  

O líder do Waimiri Atroari, Mario Parwe Atroari, que tem aproximadamente 60 anos, concedeu uma entrevista à Amazônia Real. Foi a primeira vez que ele falou à imprensa sobre o uso indevido do nome da etnia por Raimundo Sobrinho. E também a primeira entrevista de uma lideranças Kinja após a morte do amigo, idealizador e coordenador do Programa Waimiri Atroari, o sertanista José Porfírio Carvalho, que acompanhou parte do processo, e faleceu no dia 13 de maio aos 70 anos.

Com o olhar firme e aborrecido, Mario Parwe disse que o povo indígena Waimiri Atroari tomou conhecimento de que Raimundo Nonato Ferreira Sobrinho usava indevidamente o sobrenome Atroari quando ele apareceu dando entrevistas na imprensa local como representante da etnia no Movimento Indígena de Manaus, em 2014.

“Conheço os Waimiri Atroari desde pequeno. Quando surgiu falar desse nome Raimundo Atroari lá fora [em Manaus], todo mundo estranhou. Quem era esse? Aí nós convocamos com os nossos velhos para confirmar se tinha saído alguém [da terra indígena]. Eles disseram: não. Aí nós falamos que ele não era [da etnia]. Quando conversamos com ele [Raimundo Sobrinho], aí percebemos que não era mesmo Waimiri Atroari. Mesmo assim, ele continuou usando o nome Atroari”, explicou Mario Parwe.

Há três anos, as lideranças enviaram uma carta à juíza Joana dos Santos Meirelles, da Justiça do Amazonas. Raimundo Sobrinho havia participado de uma reunião com a magistrada reivindicando direitos sobre terras ocupadas em Manaus. “Não queremos aqui comentar sobre se ele tem direito de pleitear ou não [terras], não queremos entrar no mérito, mas como se trata de uma identificação étnica indevida, viemos informar à vossa excelência que ele não pertence a nossa etnia”, diz trecho da carta assinada por Mario Parwe Atroari.

Em 2015, durante a disputa pela troca no comando da extinta Secretaria Estadual do Índio (Seind), o grupo de indígenas liderado por Raimundo Sobrinho reivindicou que ele assumisse a chefia do órgão.

Na ocasião, a Comunidade Indígena Waimiri Atroari enviou uma carta ao então governador do Amazonas, José Melo (Pros), dizendo que “não aceitamos que usem o nome da nossa etnia como participante ou como autores desse pleito. Este senhor não é um índio Waimiri Atroari. Pode até ser índio, mas pertence a outra etnia”, diz a carta enviada à Melo, que teve o mandato cassado pela Justiça Eleitoral em 4 de maio desse ano.

Depois da manifestação dos Waimiri Atroari, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) denunciou à Justiça do Amazonas a ausência de legitimidade de Raimundo Sobrinho na identificação pública como indígena da etnia usando o nome de “Raimundo Atroari”. O processo ainda tramita na justiça.

Em maio de 2016,  José Melo (Pros) nomeou Raimundo Sobrinho para diretor-presidente da Fundação Estadual do Índio (FEI). Como ele continuou utilizando o nome “Raimundo Atroari” as lideranças Waimiri Atroari decidiram contestar sua autoidentificação ao Ministério Público Federal.

Raimundo Sobrinho em reunião com os Kinja em 2016. Foto: PWA

Decisão abre precedente

À Amazônia Real, o procurador da República Fernando Merloto Soave disse que a questão da identidade indígena é complexa, mas quando a pessoa é contestada pela própria etnia indígena fica difícil chegar ao consenso e encaminhar o caso para um estudo antropológico.

“A questão da identidade é difícil de se discutir, mas quando o povo não reconhece, o mínimo que tem que fazer ou é acatar ou discutir judicialmente”, disse Fernando Soave.

O procurador afirmou que a assinatura do Termo de Compromisso pelas lideranças Waimiri Atroari e Raimundo Sobrinho abriu um precedente para que outras etnias busquem esse direito.

O MPF tem atuação na defesa dos direitos difusos e coletivos, na defesa judicial e extrajudicial das populações indígenas. “Estamos sempre abertos para mediar esse tipo de situação quando não há o reconhecimento. Temos os casos dos Apurinã e dos Marubo que estamos avaliando”, disse Fernando Soave.

Segundo o MPF, Raimundo Sobrinho se comprometeu ainda de publicar na página da Fundação Estadual do Índio na internet uma cópia do termo de compromisso num prazo de cinco dias, o que não fez até o momento. Na sua página na internet a FEI  justifica que o site está desativada por causa do período das eleições para o governo do Amazonas. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou nova eleição após a cassação de José Melo.

Teste na aldeia desmontou farsa

Na situação do consenso entre o diretor-presidente da FEI, Raimundo Sobrinho, e as lideranças do povo Waimiri Atroari, foi fundamental uma reunião realizada na terra indígena no dia 2 de abril de 2017. Na ocasião, os Kinja fizeram vários testes de autoidentificação com ele.

Em entrevista à Amazônia Real, o líder Waika Elinaldo contou como foram os testes com Raimundo Sobrinho.

“Fiz a pergunta se ele [Raimundo] falava a nossa língua. Eu falei com ele na língua. Ele não entendeu nada. Ele é falso.”

“Disse a ele: eu lembro onde eu nasci, eu lembro onde foi minha festa [de iniciação]. Ele não soube explicar, ele não é.”

“Perguntei sobre o cocar que ele usa. Também não explicou. Eu disse que o nosso cocar é sagrado, não usamos em público.”

“Ele citou que nasceu na aldeia Capa Rosa, isso não existe. Disse que seria nos rios Jauaperi e Alalaú. Todos os Kinja conhecem a nossa região, nosso passado, não tem nenhuma aldeia Capa Rosa.”

“Não existiu Capa Rosa nem no passado. Os Kinja mais velhos andam na terra todo, eles não sabem que aldeia é essa, ela não existe.”

“Ele não pode mais falar que é Waimiri Atroari, isso acabou. Ele pode construir outra identidade para ele, se quiser. Mas Atroari acabou. Nós sabemos quem são os Waimiri Atroari. E sabemos nos defender. Ele não pode dizer nunca mais que é representante do povo Waimiri Atroari.”

Quem são os índios Waimiri Atroari?

Grupo falante da língua Karib, eles se autodenominam Kinja, palavra que significa “gente”. Há 45 anos, o povo Waimiri Atroari quase foi dizimado pelos impactos socioambientais causados por megaempreendimentos dentro do território indígena: a construção da rodovia BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, a usina hidrelétrica de Balbina e a implantação da mineração por meio do Grupo Paranapanema, todos projetos iniciados no governo militar (1964-1985).

Um decreto presidencial desapropriou parte das terras dos índios para a produção de cassiterita. Dos 974 quilômetros da estrada abertos, 125 km cortaram o meio da terra indígena.

O território foi demarcado com 2.585.911 hectares em 1987.

Como compensação e mitigação dos impactos ambientais da construção da hidrelétrica de Balbina, o sertanista José Porfírio Carvalho idealizou e coordenou, até o primeiro trimestre de 2017, o Programa Waimiri Atroari criado em 1988.

O programa é um convênio entre a Funai e a Eletrobrás (Eletronorte) que tem como objetivo realizar ações indigenistas e ambientais voltadas à valorização cultural e a melhoria da qualidade de vida da etnia.

Por causa do programa, a população, que foi reduzida para 374 pessoas no início da década de 1980, chegou a 1.000 pessoas em 2003.

Antes, em 1996, os índios Waimiri Atroari foram indenizados com um pagamento de R$ 1,7 milhão pelos governos do Amazonas e de Roraima por danos socioambientais.

Apesar de todos os danos causados à etnia, os Waimiri Atroari continuam lutando para impedir obras governamentais em suas terras. No momento, o embate é contra a construção do Linhão de Tucuruí, cujas torres para as linhas de transmissão podem passar por dentro de seu território tradicional. A obra foi aprovada pelo governo federal ainda na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). No governo de Michel Temer (PMDB), o linhão voltou à agenda, pressionada por políticos de Roraima, como o senador Romero Jucá (PMDB).

Leia a nota oficial de de Raimundo Sobrinho:

NOTA OFICIAL

O Sr. Raimundo Nonato Ferreira Sobrinho informa que irá cumprir a determinação do Termo de Compromisso nº02/2017, firmado junto ao Ministério Público Federal e as lideranças do povo Waimiri Atroari, que determina a não utilização do nome Waimiri Atroari, Waimiri, Atroari, ou qualquer outra expressão referente ao grupo étnico em sua assinatura oficial, em respeito à tradição da etnia que declara que, uma vez fora do convívio na terra indígena Waimiri Atroari, o indivíduo passa a não ser mais reconhecido como pertencente e/ou representante do povo.

Raimundo Sobrinho ressalta que o cumprimento desta medida representa o profundo respeito que ele tem pelo povo Waimiri Atroari, do qual se reconhece como descendente. O Diretor-presidente destaca ainda que a não utilização do nome “Atroari” não modifica sua identidade e seu orgulho de ser indígena, como também não compromete o amor que sente pelos povos originários, assim como sua determinação diária na luta pela conquista e garantia dos direitos indígenas neste Estado, pela promoção do etno-desenvolvimento das aldeias, e pelo fortalecimento da cultura das 64 etnias que escreveram e continuam escrevendo a história do maior Estado deste país, o Amazonas. 

Ainda em respeito ao Termo de Compromisso, Raimundo Sobrinho informa que esta NOTA OFICIAL será publicada na imprensa local. Entretanto, informamos que em decorrência da orientação da Secretaria de Comunicação Social do Governo do Estado do Amazonas em obediência à Recomendação PRE/AM Nº01/2017, os portais, sites, blogs institucionais e redes sociais foram desativados em razão do período eleitoral. Portanto, estamos impedidos de publicar qualquer conteúdo na página da Fundação Estadual do Índio (FEI) no Facebook, que representa hoje o portal de comunicação oficial da FEI, onde Raimundo Sobrinho ocupa hoje o cargo de Diretor-presidente.

Raimundo Nonato Ferreira Sobrinho

Mario Parwe (de blusa azul) e as lideranças Kinja em reunião no Programa Waimiri Atroari. Foto: PWA.

Comments (1)

  1. nonato inaugura uma nova maneira de conseguir uma diretoria e terras de originários!!!

    a “esperteza” dos malandros nao tem limite!!!

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