A cidade mais violenta do país: em 15 anos, taxa de homicídios em Altamira aumentou 6 vezes

Construção da usina de Belo Monte levou a crescimento rápido e desordenado que estimulou violência na cidade paraense, segundo pesquisador do Ipea

por Yago Sales*, A Ponte

Quando o repórter-cinematográfico Carlos Calaça, de 31 anos, recebe fotos e vídeos com informações pelo WhatsApp, monta na Yamaha XTZ 125 preta e segue, com uma câmera e um microfone acoplado, para qualquer lugar dos 159 695,938 km² de Altamira, no Pará, a 817,6 km de Belém, a capital. Mesmo de folga na emissora de TV em que trabalha, ele não deixa de passar na delegacia ou segue algum carro da Polícia Militar. A intenção dele é registrar a tragédia cotidiana no município mais violento do país, segundo o Atlas da Violência 2017. O estado do Pará consta como o quinto mais violento do Brasil.

O estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) foi divulgado no último dia 5 de junho, com análise das taxas de homicídios entre 2005 e 2015.

As postagens na página do Facebook de Calaça, com corpos caídos e rostos borrados — mas sem esconder a nódoa de sangue no chão de terra esturricada —, ganham milhares de curtidas, compartilhamentos e comentários. Há quase dez anos ele é o primeiro a saber de todas as tragédias do município e de toda a região do Rio Xingu. E quem o acompanha também.

Às 23h27min de domingo (28/06) Calaça publicou na página que leva seu nome, com uma fotografia feita por Leandro Silva, outro repórter da cidade, que naquela noite “mais uma pessoa foi assassinada no Conjunto Santa Benedita, no Bairro São Domingos”. A vítima: “Wisley Sirqueira Farias, de 19 anos, conhecido como Pimpolho, foi morto a tiros”. O jovem, negro, estava na rua quando foi abordado por dois assassinos em uma motocicleta. Ele morreu no local depois de alvejado por vários disparos. Mais um jovem para endossar a estatística: a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Os dados do Atlas da Violência 2017 revelam, ainda, que os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados.

O estudo mostra que mais de 318 mil jovens foram assassinados no Brasil entre 2005 e 2015. Apenas em 2015, foram 31.264 homicídios de pessoas com idade entre 15 e 29 anos, uma redução de 3,3% na taxa em relação a 2014.

Nos comentários da postagem sobre Wisley Sirqueira, muita lamúria sobre a violência na cidade. Uma adolescente escreveu em um comentário: “Vai em paz nego. Vai fazer falta… Ainda mais amanhã quando passar na rua e você não vai me cumprimentar com toda educação…”. Em outro comentário, um homem desabafa: “Diaxo, morre gente todo dia em atm [Altamira], tá perigoso mesmo”.

Em 2000, diz o estudo, o município registrou 13 homicídios em todo o ano, uma média de 16,8 mortes por 100 mil habitantes. Em 2015 foram registrados 114 mortes, média de 105 por 100 mil habitantes. Ou seja, em 15 anos, a taxa de homicídios se multiplicou por 6.

A pesquisa analisou dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde e os dados dos registros policiais publicadas pelo 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do FBSP. Para chegar às conclusões do relatório, o Ipea e o FBSP somaram as taxas de homicídio e de Mortes Violentas com Causa Indeterminada (MVCI), considerando as cidades com mais de 100 mil habitantes.

Altamira apresentou taxa de homicídios de 105 por 100 mil habitantes, em seguida, aparece na lista Lauro de Freitas, na Bahia, com 92,5 e São José de Ribamar, MA 91,2

Solução? 

Em entrevista à Ponte Jornalismo, o coordenador do Atlas da Violência 2017, Daniel Ricardo de Castro Cerqueira, pesquisador do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), explicou que existem vários fatores que podem explicar o índice de violência em Altamira.

“Se comparar Altamira com a mais pacífica do país, Jaraguá do Sul (SC), você vê não apenas questões de violência, mas de desenvolvimento humano. Quando olha para os indicadores, são sempre duas vezes melhor em Jaraguá do Sul, por exemplo, quanto à escolaridade do que Altamira. O primeiro ponto que explica violência e paz tem a ver com educação. Quanto mais fora da escola, mais crime você vai ter nas cidades”, enfatiza o pesquisador.

Ainda segundo Cerqueira, outro fator de Altamira ter se tornado o epicentro da criminalidade na região foi o crescimento rápido, desordenado e sem planejamento. Para ele, a cidade, considerada tranquila nos idos de 2000, com baixos índices de crimes, teve seus elos de controles sociais desfeitos assim que apareceram os rumores da Usina de Belo Monte. “Com isso, é possível perceber o desenvolvimento humano vulnerável e política pública sem embasamento em prevenção”, esclarece.

“A confiança, a vigilância mútua, são enfraquecidas. Uma cidade que cresce rapidamente cria oportunidade para criminosos profissionais e mais chances para eles fugirem da polícia. E isso veio depois de Belo Monte, basta olharmos para 10, 15 anos atrás”, explica.

A política local, diz ele, precisa se basear nos diagnósticos para a prevenção de crimes olhando sobretudo para crianças e jovens. Quanto ao que fazer, o pesquisador é enfático: “infelizmente no Brasil a Segurança Pública é sinal de repressão, mas deveria estar balizado na inteligência, com ostensivo reativo, levando em conta a vida”. Para ele, o Atlas não traz nada de novo e critica a atenção dada apenas com a publicação do estudo. “Tem que dar atenção à violência todos os dias.”

Sem benefícios

Antes de entrar para o jornalismo policial, Carlos Calaça tentou o concurso da Polícia Militar três vezes, mas não foi aprovado nos certames. Acabou indo trabalhar como office boy na emissora de TV. “Fui vendo a correria dos repórteres e me interessei pelo ramo. Pedi para minha mãe comprar uma câmera simples e não larguei mais. Como não era casado, eu ficava a noite toda na delegacia e chegava no dia seguinte com as broncas e as ondas [matérias] que eu gravava”, lembra ele, que viu a violência aumentando na cidade a partir de Belo Monte.

“Essa barragem só veio acabar o que tinha de bom aqui em Altamira, a paz, poluir a água, afundar as praias. O único benefício chegou para os ricos, para os pobres não teve nada”, garante Calaça.

O sonho de ser policial, “servir o Brasil”, deu a ele fôlego para registrar cotidianamente a violência que irrita políticos da cidade. Um vereador que pediu para não ter o nome divulgado, respondeu para a Ponte: “Vocês querem isolar a gente com estes estudos aí, só falam mal”. Em um grupo do WhatsApp a que a reportagem teve acesso, todo mundo conhecia alguém vítima da violência nos últimos anos, mas ninguém quis contar sua história. “Medo”, escreveu uma mulher.

Baseado em seu empirismo em delegacias, Instituto Médico Legal, hospitais, funerárias, valas onde corpos são encontrados e velórios em Altamira, Carlos Calaça reluta em aceitar os dados do Atlas da Violência 2017. “Esta pesquisa deve estar errada, porque percebi que as ocorrências diminuíram aqui, principalmente depois que a Norte Energia acabou com algumas favelas daqui, onde muita gente morria com faca e tiro. Passei um mês em Belém e, em um dia, eu cheguei a ver cinco mortes. Aqui dificilmente tem uma por semana”, tenta justificar.

Um policial militar, que pediu para não ser identificado, culpa a falta de ocupação para o número de mortes. “A gente pega muito desempregado cometendo delitos por não ter o que fazer na cidade. E, se um vagabundo desse vem com tiro, a gente precisa responder, dar tiros”.

A soldado Karla Cristina Mota de Souza, vice-presidente da Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros do Estado do Pará, lembra a morte de policiais no município. “Desde Belo Monte, a população aumentou muito e a busca por poder também, ainda mais em relação à droga. E esta violência tem atingido a nós, policiais”, alerta.

Dia 1° de novembro de 2016, o cunhado de Karla, o soldado da PMPA Victor Rafael de Moraes Lacerda, 28 anos, lotado no 16º Batalhão PM, sediada em Altamira, foi atender a uma ocorrência quando Rogério Leite, o filho de um vereador, o atingiu com disparos de arma de fogo. “Estamos receosos com esta violência”, confessa Karla.

A violência na cidade foi denunciada pelo Dossiê Belo Monte, em 2015. O estudo, organizado e publicado pelo Instituto Socioambiental (ISA), teve com um dos autores Assis da Costa Oliveira, doutorando em Direito pela UnB (Universidade de Brasília) e professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) no campus de Altamira. Oliveira informou à reportagem que um novo dossiê pode manter Altamira no topo da lista das cidades mais violentas.

No Dossiê Belo Monte, é destacado que a cobertura dos veículos de comunicação local “mostram todos os dias o desespero de mães, sobretudo, chorando em cima dos corpos dos filhos assassinados. O mais triste é ver que os investimentos na área de segurança e justiça não acompanharam a evolução da obra. A Norte Energia S.A. celebrou com o governo do estado do Pará um convênio no valor de R$ 100 milhões. Infelizmente, a população de Altamira não sentiu nenhum impacto positivo advindo desses recursos”.

Em maio de 2011, como ressalta o Dossiê Belo Monte, frente às cobranças de movimentos sociais diante de tanta violência, o estado do Pará e a Norte Energia firmaram um termo de cooperação técnico-financeira “determinando que a empresa concessionária viabilizasse a implementação de ações de fortalecimento dos órgãos de combate ao crime e prevenção da violência.

À época, existia uma previsão que entre 2011 e 2015, fossem repassados “ao estado mais de R$ 115 milhões, destinados a compras de equipamentos e reforma de prédios”. Um terço desse recurso (R$ 39 milhões) seria usado, apenas, para a compra de um helicóptero para o poder público. Até 2014, mais de 70% do valor já havia sido aportado ao Plano de Segurança Pública no Entorno de Belo Monte. Mesmo assim, Altamira registra indicadores de violência elevados, como demonstra o Atlas da Violência 2017.

Em um artigo assinado por Antônia Pereira Martins no Dossiê Belo Monte, militante do Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Altamira do Campo e da Cidade (MMTA-CC), ela ressalta a dor das mães no contexto de violência no município. “Observamos, também, o número de trabalhadores que morreram vítimas da violência e imaginamos que, para as mães, principalmente, não é uma tarefa fácil ver os seus filhos chegando em um caixão. Não temos acesso aos canteiros de obras, não sabemos se acontece muita violência ou não. No entanto, não foram poucos os que morreram assassinados aqui em Altamira”.

Ainda de acordo com o pesquisador Assis da Costa, “os dados divulgados agora são de 2015, quando ainda não tinham sido demitidos 20 mil pessoas da Norte Energia, em quatro meses, na região do município”. Para ele, diminuiria a violência se o “Estado criasse um plano de ação pautado na inteligência. Não temos uma equipe especializada, para evitar, principalmente, a impunidade”.

Enquanto o impasse continua, Carlos Calaça vai acumulando espectadores para a violência por que passa Altamira. Ele tem 36.849 mil seguidores em sua página no Facebook. A cada assassinato, ele vai aguçando a curiosidade de quem não pode fazer nada, apenas curtir e compartilhar.

Sem respostas

A Ponte procurou a Secretaria de Estado de Segurança Pública do Pará (Segup), e obteve uma nota, emitida pelo porta-voz, Sérgio Chêne:

De acordo com o estudo do Instituto de Pesquisa e Estatística Aplicada (Ipea), divulgado na segunda-feira (5), o Pará foi um dos doze Estados que reduziu o índice de homicídios entre 2010 e 2015, com queda de 3,2%. A média nacional do mesmo período foi de crescimento em 4%, sendo que o maior índice de aumento (77,7%) foi registrado no Estado de Sergipe.

No entanto, o Pará detém a quinta maior taxa de homicídios registrados, segundo a metodologia do órgão, com 45 homicídios a cada grupo de 100 mil habitantes, atrás de Sergipe (58,1), Alagoas (52,3), Ceará (46,7) e Goiás (45,3).

Em relação aos municípios com maior número de homicídios, Altamira figura no topo da lista, com taxa de 105,2 homicídios a cada grupo de 100 mil habitantes. Ainda figuram na lista dois municípios que estão na região metropolitana, caso de Marituba (76,5) e Ananindeua (69,6).

Embora considere um estudo importante para avaliação da criminalidade, o Governo do Estado chama atenção para a metodologia utilizada pela pesquisa Atlas da Violência. Enquanto a Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) tem o Sistema Integrado de Segurança Pública (SISP) como recurso metodológico a partir de um banco de dados, o Atlas é subsidiado pelo Sistema Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.

Com a utilização dos dados do SIM, o trabalho do IPEA leva em consideração os homicídios dolosos e culposos, mortes pelo uso de drogas e em decorrência de doenças pré-existentes registrados em hospitais e demais unidades de saúde. Isso mostra a clara diferença entre a base metodológica do SISP e do Atlas da Violência.

O aumento nos índices de Altamira tem forte relação com a implantação de grandes empreendimentos de forma desordenada na Amazônia, como foi o caso da construção da Hidrelétrica Belo Monte. A constatação é do próprio IPEA, que afirma, na página 19 do documento, que: “A forma e a velocidade como o crescimento econômico afeta o território é outro aspecto relevante. Por exemplo, um crescimento rápido e desordenado das cidades (como aconteceu em Altamira, no rastro da construção da UHE Belo Monte) pode ter sérias implicações sobre o nível de criminalidade local”.

Ainda sobre a realidade daquela cidade do sudoeste paraense, a análise técnica da Secretaria Adjunta de Inteligência e Análise Criminal (Siac) da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social aponta que, entre 2008 e 2016, foram registrados 52 homicídios com uma taxa de 50,12 homicídios para uma população de 100 mil habitantes, menor que a taxa apresentada pelo estudo do Atlas da Violência 2017, que quantificou 105,2 homicídios para uma população de 100 mil habitantes.

Outra distorção: em Altamira, também em 2015, o estudo registrou 115 homicídios, enquanto que os dados do SISP enumeram 63 casos. Ou seja, uma diferença de 51 vítimas. Outra constatação disto é que o município de Cametá, cuja população (130 mil habitantes) é até maior que a atual de Altamira (110 mil) está entre os trinta municípios menos violentos do país, com taxa de homicídio registrada em 9,9 a cada cem mil habitantes.

* colaborou Maria Elisa Muntaner.

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