Ou sobre palavras que não podem comportar a vida…
Por: Raial Orotu Puri – Crônicas Indigenistas
Para entender esse texto, gostaria de propor uma pequena analogia: se você tem em suas mãos apenas um filete de palha, você só consegue riscar o chão. Agora se você junta uma quantidade considerável de filetes, e o ata em um feixe, e depois junta outros mais em número adequado, e então faz uma vassoura, e com ela você pode varrer um terreiro. Pois bem, o processo dessa reflexão que aqui proponho é parecido com este, visto que com ele, tenho intenção de fazer uma pequena faxina na minha cabeça, limpando-a de certa quantidade de ideias que, no fim, podem ser atadas em um conjunto, visto que estão ligadas a uma mesma questão problemática para mim, qual seja, a impossibilidade de decodificação de certas coisas da vida em palavras, sobretudo em textos, mais ainda em textos acadêmicos.
Quero avisar de antemão que, dado que o tema é a dificuldade de expressão, não tenho muitas pretensões de que o texto chegue a ser um portento da escrita. E peço, também de antemão, desculpas sinceras a quem se engasgar com essa poeira toda e não entender nada.
Feixe 1 – os momentos sagrados que pedem silêncio: dia desses, Samman Poteh recomendou que eu assistisse um documentário. Assisti, é claro. No dia seguinte, conversamos um pouco a respeito – pouco… O mesmo vídeo inspirou o belíssimo texto por ele escrito e publicado na última semana de junho. E outra vez, eu fui bastante econômica ao compartilhar minhas impressões… Acontece que, tanto para a história retratada no documentário, quanto para o texto, eu tive o mesmo tipo de sentimento de silêncio iridescente, no qual até o respirar precisa ser contido para não obscurecer o momento.
Penso que na vida, acontecem vez ou outra esses momentos, que julgo Sagrados. Verdadeiros momentos de redenção, em que “os joelhos fraquejam um pouco”, como dito de forma magistral pela poetisa Matilde Campilho em uma entrevista, opinando sobre a função da arte (links no final do texto). Acredito, portanto, que esses momentos estão além da possibilidade descritiva. São, em si mesmo, e se bastam na emoção que eles provocam.
Cito tal coisa porque, recentemente, por ter cumprido à demanda antiga de um texto sobre o Sagrado, recebi uma mensagem que requeria que eu viesse a atender a outra solicitação, que também tem a ver com algo sacro, mas que está em um nível para além nessa escala: a pessoa me lembrava sobre a sua sugestão de que eu escreva sobre a ‘miração’ (aqui entre aspas, porque esta experiência não se fez mediante o uso de ayahuasca ou similares, então não creio que a designação seja totalmente correta) que me inspirou a ‘tatuar-me’.
Pois bem, embora eu já tenha escrito sobre parte da experiência que me conduziu a fazer essa ‘tatuagem’ (aqui entre aspas, porque Ela é bem mais que isso, portanto, a designação não é totalmente correta), escrever e publicizar sobre o que eu vi e o modo como eu vi me é de todo impossível. Por essa razão, respondendo publicamente à sugestão privada, eu quero pedir sinceras desculpas, mas esse é um texto que eu ficarei para sempre devendo.
Mesmo agora, rememorando apenas a visão, sinto o mesmo que outrora, essa sensação de arrepio que precede um choque, o pulso falhado, a percepção de que se está em outro mundo, onde as cores, os sons e tudo parece diferente, e então a quietude que te diz que algo de Sagrado está por acontecer. E então, Ela… E o silêncio, e as lágrimas. Nada há mais que eu possa dizer. Nada mais resta a ser dito.
Feixe 2 – A Academia e a sua deficiência em falar da realidade vivida: Há tempos atrás, quando estava ainda no Mestrado, lembro-me de ter lido um texto sobre a “evasão” do mundo acadêmico de um antropólogo indigenista após ‘ir a campo’. Não creio que teria condições de encontrar de novo esse texto, tampouco seria capaz de reproduzi-lo literalmente, mas recordo-o em linhas gerais e passo a reconta-lo agora: A narrativa tratava sobre o grande problema de se perder da Academia para se encontrar em uma experiência muito mais rica de vivido, que tornava a volta impossível.
E tornou-se impossível, não porque o pesquisador estivesse de alguma forma impedido de retornar fisicamente, tanto que ele o fez, no entanto, estava tão transformado que agora o retorno se fazia vazio de qualquer sentido. Assim, apesar de ter encontrado todas as respostas que inicialmente buscava para suas hipóteses, ele descobriu que elas eram totalmente diferentes do que ele esperava. A conclusão da Crônica dizia que a verdade que ele encontrou era por demais rica, e, como não podia ser transcrita, ele simplesmente não publicou nada.
Recordo que quando este texto foi lido em classe, ele foi recebido com alguma incompreensão, até com troça, visto que para alguns ela apenas revelava a história de algum fracassado que fora incapaz de executar o trabalho de pesquisa para o qual havia se proposto. Naquele tempo, estávamos ainda no começo do Mestrado, e ainda não tínhamos consciência da quantidade imensa de pessoas que acabam não conseguindo concluir suas pesquisas, por razões diversas, a maioria das quais sem qualquer relação com o fato da pessoa ser pessoalmente um fracassado…
Creio que poucos, no entanto, puderam encarar aquilo que se colocava em um nível mais profundo do conteúdo da história, que não fala de alguém que ‘não deu conta’, mas de alguém que talvez tenha dado conta até demais. Voltei a pensar sobre isso nos últimos tempos, seja do ponto de vista da vida, seja por me encontrar em um período de escrita-crise-percepção de necessidade de aprofundamento de algumas questões; crise-sensação de que está tudo por fazer; crise-checagem de dados já coletados; crise-definição de cronogramas-crise-fechamento de pesquisa-crise-crise-crise-crise-crise-e, claro, crise. Aliás, eu mencionei a crise, né?
Bem, mas que se entenda, eu não estou necessariamente aqui querendo tratar sobre a dura vida dos acadêmicos em crise… Nem sobre Antropólogos virados em gente depois de uma experiência junto de um povo indígena… (ok, talvez seja um pouco sobre isso sim). O que me motiva agora é exatamente a parte final daquela história há muito lida, isto é, sobre certas coisas que acabam sendo impossíveis de serem descritas ou decodificadas, sobretudo em termos acadêmicos.
E vejam, não quero aqui dizer que eu duvido do poder das palavras. Sei do seu poder de criar, de seu poder de dar forma à matéria, de nomear, de criar significantes e significados; de modular a paisagem e cadenciar sentimentos humanos. Sei de palavras de alegria e dor, sei das palavras que curam, e das que podem matar, e daquelas que trazem de volta da morte. Mas, ainda que eu reconheça esses dons da palavra falada, e saiba também do potencial que se lega à escrita enquanto registro das coisas do mundo, eu também não posso deixar de pensar na força que está para além daquilo que pode ser articulado, e daquilo que só pode ser comunicado na dimensão das imagens, dos sons, da música, e, notadamente, do silêncio. Sobretudo do silêncio – “o silêncio é o som dos sons”, dizem os Guarani, senhores absolutos da arte comunicativa do nada dizer, e dizer tanto.
Feixe 3 – Palavra e palavra escrita são coisas distintas: Há que se distinguir palavra e escrita, porque não se trata nunca da mesma coisa. E há que se entender que existe uma notável diferença entre culturas de tradição oral, e aquelas que se constituíram através da escrita. Trata-se daquilo que, de forma perfeita, foi resumido pelo Davi Kopenawa certa vez: “Nos guardamos as palavras dos nossos antepassados dentro de nós há muito tempo e continuamos passando-as para os nossos filhos. Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento”.
É algo bastante curioso de se pensar, mas de fato, me parece que construir registros escritos tornou a sociedade ocidental refém dessa memória, incapaz de lembrar-se por si mesma, justo pelo motivo de que, na dúvida, sempre há um arquivo para se recorrer e recordar. Enquanto que nas culturas orais, talvez por não contar com esses ‘recursos’, precisam manter mais vivos os seus arquivos, visto que, precisamente, os arquivos são seres viventes, que detém a história, e, para que ela se mantenha viva, precisam conta-la. E justo desse requisito, contar e manter vivo, que advém a necessidade e a beleza da arte dos Griôt, dos contadores de histórias, daqueles que se lembram.
Nesse sentido, cada vez me encontro mais convencida de que se a escrita tem um poder de dar forma às coisas, ela também tem um tem outro tipo de poder, que é o de eternizar certas coisas. No entanto, quero reportar que aqui a ‘eternidade’ não é necessariamente um atributo positivo, visto que, me parece, esse poder guarda algum perigo, já que ela é também em parte imóvel; isto é, muitas vezes, o registro, considerado tão precioso e necessário, pode acabar por cristalizar as coisas registradas, tornando estático o que seria movimento.
Feixe 4 – a escrita acadêmica e o excesso de gesso: E, precisamente neste ponto, volto-me à questão da escrita acadêmica, e das dificuldades que ela possui no processo de tentar capturar os temas que se propõe a tratar. Bom, capturar é, a propósito, uma palavra interessante. Ela pode aqui ser entendida como em sentido de caça, quanto da fotografia; nos dois casos, entendo que se trata de um processo de imobilizar o movimento, e então escrever sobre ele, produzindo uma teoria a respeito.
E aí, há a Antropologia… Já houve um momento em minha vida que acreditei que ela pudesse produzir algum tipo de redenção à minha frustração profissional. Cri que ela seria a única possível ciência para alguém que estava em busca de si mesma, e de suas raízes; para alguém que tentava encontrar algum ar e possibilidade para além de fórmulas, códigos, leis, casos-típicos, dosagem da pena e tudo o que faz o universo da profissão que um dia eu pretendi seguir, o Direito. A Antropologia não, acreditava eu. Lá eu poderia encontrar pessoas reais, com histórias reais, com muitos inteiros a revelar. E sim, eu encontrei… mas não exatamente na academia, e não só por causa dela. Porque, apesar de ser um ambiente efetivamente muito mais interessante do que muitos cursos por aí, ele ainda é acadêmico, miseravelmente acadêmico. E ainda precisa caminhar muito para chegar a ser de carne e osso.
Feixe 5/arremate e a vassoura: Ah, a teorias!…: eu confesso que sempre tive muitas dificuldades com teorias, e percebo que isso efetivamente piora com a idade. Notei isso de forma bastante peculiar ao ter recentemente me envolvido em algumas discussões envolvendo a inclusão das mulheres e das pautas indígenas no movimento feminista. Nessas conversas, fui convidada a escrever sobre o tema, mas ocorre que o convite se deu junto com a citação de um rol de autoras e teorias para seguir/orientar e embasar a discussão. E confesso que, miseravelmente falhei até mesmo na tentativa de ler a lista em questão.
Bom, me desculpem, mas se eu posso propor boas teorias sobre a luta e as pautas das mulheres indígenas, provavelmente desde 1500, elas seriam as seguintes: a primeira teoria da se resume toda em uma foto que retrata o momento em que uma parenta, com um bebê nos braços, tenta frear com os ombros o avanço do Choque em uma desocupação ocorrida em Manaus no ano de 2008. A foto contém o seu grito, o seu choro, a sua dor, e antecipa um golpe de porrete prestes a ser desferido sobre sua cabeça.
A segunda teoria está condensada entre a ponta do facão e a voz de Tuíra Kayapó, desde quando ela empunhou ambos pela primeira vez, aos 19 anos, contra o diretor da Eletronorte (1989). Aquele foi um dos primeiros embates contra a construção de Belo Monte, quando ainda o projeto de morte ainda possuía outro nome.
Ambas as teorias se encontram vigentes. E sei que são sim, também imagens que capturaram momentos… Mas elas não são ausentes de movimentos: A destruição que aquelas mulheres tentaram conter avançou, assim como também prossegue a luta do lado de cá. Como seguirá, enquanto for necessário haver luta.
É disto que a nossa teoria fala: do que representa ser indígena e mulher em um mundo que precisa ser defendido de constantes ataques; fala de força, de luta pela vida, e contra a morte; de segurar bebês com os mesmos braços que tentam conter uma força maior que nós; de vozes e facões contra tratores, dinheiro, empresários e um Estado inteiro; de corpos desprotegidos contra escudos, cassetetes, bombas e armas; dessa luta inglória e infinda contra algo que pode ser maior e mais poderoso, mas que nem por isso é capaz de esmorecer a força da Resistência.
Eis então, a minha necessidade de calar sobre certas coisas. De silenciar a certas curiosidades. De dizer não a certas demandas. Eis o problema que se inscreve em minhas crises de escrita acadêmica. Eis minha dificuldade com as teorias. Eis a minha vassoura, necessidade de varrer toda essa tralha, de limpar esse terreiro disso que nada diz sobre uma experiência de vida que está para além dessas palavras mortas.
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Link para o trecho da entrevista de Matilde Campilho em que ela narra sobre seu momento sagrado na infância com Pollock, e a maneira como ela entende a função que tem a arte: https://www.youtube.com/watch?v=zWYJ-drGO5Q
Link para a 1ª Teoria do Feminismo Indígena:
http://1.bp.blogspot.com/_R8LkKSvcN4c/TRts_ZmOvTI/AAAAAAAAZkA/PwbmdL2koYc/s1600/1%2Ba%2Ba%2Bmelhores%2Bfotos%2Bmanaus%2B2008.jpg
Link para a 2ª Teoria do Feminismo Indígena:
http://painel.portalamazonia.com/uploads/RTEmagicC_tuira-isa.jpg.jpg
* Todas as imagens utilizadas são artes a partir de fotografias: Foto 1: Divulgação documentário “História de una isla” – Youtube.
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).