Mulheres indígenas kaingang denunciam abuso sexual

Polícia Federal de Passo Fundo (RS) abre inquérito de assédio praticado por chefes a funcionárias do serviço de atenção à saúde indígena. Ministério das Saúde avalia afastar os acusados imediatamente

Por Ary Filgueira, na IstoÉ

“Ele ameaçou me tirar do emprego se eu não saísse com ele. Tenho meus filhos para dar de comer. Então, eu disse: ‘Já que é assim, eu fico contigo’. Depois disso, saímos mais outras vezes. Foi horrível. Só parou quando ele foi transferido.” O relato é narrado por A.R., 30 anos, mulher pertencente à comunidade indígena Kaingang, no Rio Grande do Sul, perto de Passo Fundo. Ela é auxiliar de dentista e trabalha no posto de saúde dentro da área indígena no município de Ronda Alta (RS). Foi ali, na unidade vinculada ao Ministério da Saúde, que ocorreu a sequência de assédios que culminaram em um ato sexual contra a vontade da vítima. O mais pavoroso dessa história contada com detalhes sórdidos é que os ataques partiram de ninguém menos que um servidor responsável por zelar pela saúde da população indígena da região. O nome dele é Ilírio Roque Portela. Ironicamente, sua função é a de assessor de Saúde Indígena.

Ilírio é casado com a tia da vítima. A mulher dele é enfermeira do posto de Ronda Alta, onde sua sobrinha também trabalha. O assédio sexual contra A.R. começou com uma proposta financeira. “Ele enfiou a mão no bolso e tirou R$ 3 mil. Disse que ia me pagar para eu sair com ele. Eu disse que não queria”, afirmou ela. Ilírio, segundo A.R., resolveu endurecer a abordagem, ameaçando a vítima de demissão. Com certa dificuldade de falar sobre o caso, ela relembra as palavras usadas na coação: “Já que tu não me deu por dinheiro (sic) vou tirar seu emprego”. Amedrontada, a vítima cedeu, curvando-se à violência sexual praticada por seu colega de instituição pública.

Lamentavelmente, o fato está longe de ser um episódio isolado ocorrido num posto vinculado ao Ministério da Saúde daquela região. A Polícia Federal de Passo Fundo abriu inquérito e apura, pelo menos, mais três denúncias de assédio sexual e moral praticados contra prestadoras de serviços de atenção à saúde das comunidades indígenas daquela região. A pedido das vítimas, que têm medo de represálias, a reportagem revela apenas as iniciais de seus nomes. O Ministério informou à revista que avalia afastar imediatamente os acusados de agressão. Além de Ilírio, são investigados pela PF o chefe substituto dele, Lauro Vieira de Lima, e Nelson Costa. Os três são lotados na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), um um posto avançado do Ministério. A função do órgão é levar atendimento médico especializado à população indígena daquela região.

Os três servidores têm em comum a mesma prática criminosa cometida contra as vítimas indígenas: usar o cargo para coagir as mulheres que não aceitam se submeter aos atos sexuais propostos. Eles são suspeitos de assediar sexualmente as funcionárias terceirizadas L.R.P.S., 36, A.M.M., 26, e M.N., que trabalham para eles no Sesai. Elas também são índias da comunidade Kaingang. A aldeia é chefiada pela cacique Ângela Inácio Braga, a primeira mulher a atingir o posto mais alto na hierarquia entre as comunidades Kaingang da região. Foi nessa posição que Ângela procurou a delegacia da Polícia Federal de Passo Fundo, em 7 de junho, e denunciou os crimes. Ela separou os relatos ligando cada vítima ao respectivo agressor. No termo de depoimento, ela descreveu: “Que os assédios teriam sido praticados por Lauro (Vieira de Lima, chefe substituto) e Nelson (Costa, servidor) contra L. e por Lauro contra A. . Sendo M. assediada por Ilírio Portela”.

Ângela detalhou o tipo de investida sofrida por cada uma das vítimas. A primeira a procurar a cacique foi L.R.P.S.. A mulher disse à líder indígena que não aguentava mais os assédios de Lauro, que usava termos chulos para demonstrar sua intenção. “Lauro insistentemente a perseguia, com as seguintes perguntas: ‘E esses peitos aí’ e ‘E essas pernas aí’, ‘Até o fim do ano vou te pegar’’’, descreveu Ângela. Ela contou que Lauro já seguiu L. até a cozinha da Sesai e teria tentado beijá-la à força. O servidor também é investigado por atentar contra outra mulher: A.M.M., 26, que pediu para não informar sua função na Sesai. E repetiu o que está escrito no boletim de ocorrência da polícia: “O Lauro se referia a mim dessa forma: ‘E essas pernas aí?’. Às vezes, chegava com insinuações corporais. Eu tinha medo de ficar perto dele”.

Por telefone, o delegado da Polícia Federal em Passo Fundo, Mário Luiz Vieira, disse que abriu inquérito para apurar as denúncias. Segundo ele, estão sendo tomados os depoimentos das vítimas. O Ministério da Saúde informa que estuda fazer o “afastamento imediato” dos funcionários acusados. A Corregedoria abriu um processo administrativo disciplinar para investigar a denúncia dos indígenas. Uma comissão definirá as eventuais punições. “Desde que tomou conhecimento da denúncia de assédio moral no DSEI [Distrito Sanitário Especial Indígena] Interior Sul, tem tratado o tema como prioridade”, garantiu a assessoria do órgão em nota. “Uma equipe esteve no DSEI para averiguar os fatos e reuniu-se com indígenas da região, profissionais de saúde, Polícia Federal e a procuradora do Ministério Público, além das pessoas envolvidas diretamente nas denúncias”.

Demitida

Embora o alvo preferencial dos três servidores sejam funcionárias de origem indígena, há relato de uma vítima de outro perfil. Elizete Kurtz Brizola, 37, enfermeira, trabalhou na Sesai de janeiro de 2015 a maio de 2016. “Um dia, Lauro chegou para mim e disse: ‘Fala com fulana para ela ficar comigo, que uma mão ajuda a outra’.’’ Ela não aceitou. “Eu não fiz minha faculdade numa esquina. Não me sujeitei a isso”, disse. Diante da recusa, Elizete passou a ser vítima do assediador. “Um dia, o Lauro encontrou comigo no corredor e tentou pegar no meu seio. Eu disse que iria denunciá-lo. Ele me ameaçou, dizendo que eu amanheceria com a boca cheia de formiga. Uns seis meses depois, fui demitida sumariamente. Sem qualquer motivação”, afirma Elizete. Lamentavelmente, os motivos parecem óbvios.

A Narrativa dos horrores

Em depoimento à PF, a cacique Ângela Inácio Braga, do povo Kaigang de Água Santa (RS), relatou que foi procurada pelas vítimas do assédio cometido por servidores do Sesai. Ela descreveu a situação de L.R.P.S., 36 anos, nutricionista; A.M.M., 26, psicóloga; e M.N., fisioterapeuta. Eis os trechos do depoimento:

“Que os assédios teriam sido praticados por Lauro (Vieira de Lima, chefe substituto) e Nelson (Costa, servidor) contra L. e por Lauro contra A., sendo M. assediada por Ilírio Portela.”

“Esses peitos aí?”

“Que L. informou para a depoente que Lauro insistentemente a perseguia, com as seguintes perguntas: ‘E esses peitos aí?’ e ‘E essas pernas aí?’, ‘Até o fim do ano e vou te pegar’. ’’

“Insinuações corporais”

“A. informou à depoente que Lauro também a teria assediado com insinuações corporais”. ‘Eu tinha medo de ficar perto dele’, disse a vítima”

Chefe tentou agarrar na cozinha

“L. comunicou à depoente que todas as vezes que ia na cozinha, Lauro ia atrás e, ao menos em uma ocasião, teria tentado agarrar L..”

ABUSADA A.R., 30 anos, diz que cedeu às investidas para preservar o emprego (Crédito: Divulgação)

 

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