O grande golpe

Por Márcio Sotelo Felippe, no Justificando

Quais as semelhanças entre 1950, 1954, 1961, 1964 e 2016? As ameaças à eleição de Getúlio Vargas, em 1950, a sua deposição em 1954, a tentativa de impedir a posse de Jango em 1961, a sua derrubada em 1964, o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016?

Bons historiadores do futuro não deverão contar esses episódios como fatos desconectados. São desdobramentos de um só fato: o permanente golpe da direita contra o que podíamos ou pudemos ter de uma incipiente  democracia e de justiça social. O grande golpe tem sua gênese em 1945, no pós-guerra, quando a configuração de forças político-sociais (de caráter global) sob a qual ainda vivemos se estabelece. Aqui, o polo à direita pode se chamar UDN ou PSDB.

Os personagens mudam de nome, mas o roteiro é o mesmo. Sugiro ao leitor que assista “Getúlio” (disponível no Netflix), que retrata fielmente o que ocorreu entre 5 e 24 de agosto de 1954, o dia em que Getúlio se suicidou. Troque-se Getúlio por Lula (PT). Tanto faz. Mar de lama/mensalão. Filho de Getúlio/filho de Lula. Bolsa-família/aumento de 100% no salário-mínimo. Criação da Petrobrás/pré-sal.

Ou podemos ver como o espectro de Lacerda surge na noite de 3 de outubro de 2014. Em 1950, Getúlio despontando como candidato, Lacerda diz: “Getúlio não pode ser candidato. Se for candidato, não pode ser eleito. Se for eleito, não pode governar”. Traçou então o roteiro que se cumpriu em agosto de 1954. Apurado o resultado da eleição de Dilma, naquela mesma noite começou a conspiração do impeachment: eleita, não vai governar. Lacerda vive.

Ou podemos ver como, em 2013 e em 1964, hordas de classe média tomaram as ruas “contra a corrupção” e “contra o comunismo”. Nos dois momentos é a base social do golpe que em seguida vem.

É um só golpe. Uma só guerra e várias batalhas. O grande golpe de uma elite selvagem e antipopular, além de ser entreguista, contra qualquer governo que se apresente com um mínimo de viés popular e seja um obstáculo à sua sanha acumuladora e ao seu desenfreado egoísmo social. É essencialmente antidemocrática. Desta forma, o jogo democrático somente vale se ela ganha a eleição. Ocorre que ela tem uma enorme dificuldade para ganhar eleições e então vem o golpe ou a tentativa de golpe.

A UDN perde em 1946, e depois em 1950 e 1955. O PSDB perde em 2002, 2006, 2010 e 2014. A direita somente  ganha cavalgando aventureiros, em 1960 com Jânio e em 1989, com Collor, ambos governos praticamente natimortos. Em 1994, a contingência do Plano Real propiciou a eleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que ainda estava fazendo a travessia de intelectual de esquerda para político de direita.

O grande golpe tem agora mais um episódio: 2018

Lula pode ser condenado em um processo “tosco” e acabará impedido de disputar a eleição. Como isso não garante desde logo uma vitória para a direita, já há balões de ensaio para o plano B, que é não fazer a eleição: “o cenário político conturbado pode não atrapalhar muito o desempenho da economia este ano, mas as eleições de 2018 representam risco real à agenda de reformas necessárias para o país voltar a crescer” (Valor Econômico, Eleição de 2018 ameaça reformas, edição de 21.6.2017). O mercado decide. Se as eleições garantem seu programa, somos uma democracia. Se não, é só seguir o roteiro estabelecido desde 1950 e dar mais um golpe dentro do grande golpe – que também pode ser estabelecer o parlamentarismo, que, nesta semana, apareceu igualmente como balão de ensaio.

A grande tragédia brasileira é que 2018 pode não significar nada na trajetória perversa desse grande golpe. Ele em seu desdobrar foi deitando raízes profundas na estrutura política e social. O PT no poder não foi além de um governo de centro com algum viés popular. Ficou aquém da social-democracia europeia no pós-guerra, que investiu em bens sociais, saúde, educação, habitação, benefícios sociais. Limitou-se aumentar o poder de consumo das classes C e D, e isso facilitado por um momento econômico favorável.

Cada vez que a direita golpeia, mais e mais molda a estrutura perversa da sociedade a um ponto em que não se retorna. Nem liquidamos a ditadura militar de verdade e nunca houve uma real ruptura. Nunca foram punidos os crimes contra a humanidade por ela praticados. Nunca se mexeu na tributação regressiva, que protege os de cima e confisca a parca renda dos debaixo. A taxação das grandes fortunas é letra morta na Constituição. O aparato violento do Estado contra os excluídos não sofreu um arranhão. O “rentismo”, pelo mecanismo da dívida pública, suga a riqueza produzida pelos trabalhadores.

Não se trata só de garantir e ganhar as eleições de 2018, derrotar Alckmin, Doria ou Bolsonaro. E se fosse esse o “problema”, pelo o que a história ensina, não será tão difícil. Trata-se de enfrentar de verdade o grande e histórico golpe da direita, que vem moldando a estrutura perversa da sociedade e  ganhar essas eleições com um programa que signifique uma efetiva ruptura política e social. A começar por reverter as reformas de Temer: restaurar os direitos dos trabalhadores, garantir aposentadoria digna, revogar o infame limite dos gastos públicos.

Neste momento do processo histórico brasileiro, corremos o risco de uma farsa: a de fazer das eleições de 2018 mais um episódio do grande golpe e da grande tragédia brasileira.

Márcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.

 

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