Spoilers para quem faz Direito nesse Onze de Agosto

Por Maíra Zapater, no Justificando

Tinha começado este texto colocando o título “Carta aos calouros”. Mais que depressa corrigi a flexão de gênero e acrescentei: “Carta às calouras e aos calouros”. Aí o título imediatamente me remeteu à imagem de um papel meio amarelado, com uma mão (emoldurada pelo punho cinza de um paletó sobre uma camisa branca impecável – e a mão era branca também) a escrever com caligrafia bonita em bico-de-pena, e então me ocorreu: quem é que ainda escreve cartas, afinal de contas?

Até lamento que não mais se escrevam cartas, acho que as missivas em papel tem um charme insuperável, assim como os discos de vinil e as vídeo-locadoras – sou uma moça do século XX, fazer o que?

Enfim, não me agradou em nada esse jeitão de “Oração aos moços” do Rui Barbosa – que, de saída, já exclui as moças.

Não vou dizer nada do tipo “aproveite, serão os melhores anos da sua vida”: é claro que faço votos de que sejam bons anos, mas te juro que manter esse sentimento diante do Regulamento do Imposto de Renda na aula de Direito Tributário é por demais desafiador. E pode ser que, por diversas razões, não sejam os melhores anos da sua vida (o que talvez não seja de todo mau, porque, convenhamos, a conclusão inescapável do desejo de que aqueles sejam “os melhores anos” é que, dali em diante, só piora).

O que eu queria, na verdade, era dar alguns spoilers do que acho que você vai ver no seu curso de Direito. Algo como “Coisas que você precisa saber”(beijo, Igor Leone!). Ou, por outra, coisas que eu hoje, formada em Direito há 16 anos, gostaria que alguém tivesse me falado quando estava no  1º ano, vinte anos (VINTE ANOS, uau) atrás.

Queria que alguém tivesse me dito que a tal da “função da pena” é só um mito fundador do Direito Penal moderno. Que aquelas penas previstas para os crimes no Código Penal não são resultado de estudos exaustivos sobre quantos anos de privação de liberdade deve conter, precisamente, a ameaça de prisão para que o cidadão desista de delinquir, mas sim são resultado de disputas e discussões que passam muito longe de qualquer estudo criminológico.

Queria que alguém tivesse chamado minha atenção para o fato de que estudamos Direito Civil pelos 5 anos da graduação, e Direito Penal por 2 anos (ou no máximo 3 anos, tive essa sorte) porque desenvolvemos mais as normas de proteção ao patrimônio do que quaisquer outras. Aliás, aproveite para conferir quantos tipos penais contra o patrimônio e a propriedade privada temos no Código Penal, e depois contabilize quantos tipos penais contra a vida ou a liberdade individual. Na sequência, volte ao parágrafo anterior (em que falo sobre função da pena) e pense a respeito.

Queria que algum professor tivesse observado, lá em 1997, o quanto era recente nossa Constituição, o que explica que o texto esteja em mau estado em nosso mau Estado. Aliás, gostaria de ter ouvido que tivemos muitos golpes de Estado, e golpes dentro dos golpes. E que muitas das leis atualmente em vigor foram produzidas pelos seres humanos que articulavam e protagonizavam esses golpes (falo sobre isso na série de textos “A herança legal das ditaduras: nossas cicatrizes jurídicas”.)

Queria que alguém tivesse constatado que o direito de família é pensado para um modelo de família estatisticamente minoritário, mas poderoso em termos socioeconômicos e culturais.

E não se espante: tributário é chato mesmo e vai te fazer querer largar a faculdade. Quando você se conformar e aceitar o fato de que vai ter que ler o tal Regulamento do Imposto de Renda, virá o Direito Previdenciário e suas fontes de custeio e alíquotas de benefícios. Quando estudei, ainda era moda todo tipo de norma regulatória – cursei minha graduação ao longo do 2º mandato do FHC, privatização era um “must” (aliás, era um “must” falar “must”, tipo “top”) – então balançar a gravata ou afundar o salto-agulha nos carpetes de um escritório especializado em Direito Administrativo era sonho de consumo de muito estagiário-wannabe.

Isso é importante para ver o quanto o momento político afeta profundamente o estudo do Direito: saí da faculdade sem estudar o Estatuto da Criança e do Adolescente, nem a Lei de Execução Penal (“não tem mercado”, afirmava-se, e ouço o mesmo até hoje de coordenações de cursos de graduação, argumento difícil de engolir quando temos a 4ª população carcerária do mundo, mas fácil de entender quando nos damos conta da seleção do público do sistema penal, que, aliás, é outro tema que você provavelmente não vai ver na sua faculdade). Também não fiz sequer uma inicial de alimentos, ou de separação de corpos. Em compensação, sabia de cor e salteado como fazer um mandado de injunção (chique!), e regulamentações do CADE (mentira, esse eu só estudei pra passar).

Mas, se puder dizer algo pra você, que faz Direito: fique atento aos contextos políticos. São eles que nos dão pistas sobre como as leis foram e são produzidas, e sobre qual conteúdo será ministrado nas escolas que formam boa parte dos profissionais responsáveis por uma parcela considerável do exercício do poder – é isso que fazem juízes, promotores, delegados, defensores e advogados. Normas jurídicas são feitas e aplicadas por seres humanos. E mostram mentes que já mudaram. Não têm o efeito inverso.

Por fim, saiba que a cerveja no bar será tão ou mais importante que a aula sobre, sei lá, a lei de locação. Mas você vai se arrepender de ter saído pra tomar café na aula de Introdução ao Estudo do Direito em que foi ensinada a diferença entre lei e princípio, ou as espécies de justiça, e que você achou que não ia usar pra nada depois. É dessa aula que você vai sentir muito mais falta do que saber as minúcias da lei de locação – aquela que fez miar a sua cerveja. E antes de fazer um pindura – inventada nos tempos e modos daquela “Oração aos moços” que citei lá em cima – permita minha arrogância de veterana de sugerir a leitura desse textinho meu, de um outro Onze de Agosto.

E, se quiser, fica aqui meu convite: guarde esse escrito modesto e releia quando concluir seu curso. Se puder, me conte se acertei.

Sucesso!

Maíra Zapater é Doutora em Direito pela USP e graduada em Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Professora e pesquisadora. Autora do blog deunatv.

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