Tanto a eleição presidencial brasileira de 2014 quanto o pleito que escolheu Donald Trump presidente dos Estados Unidos, em 2016, podem ser vistos como momentos nos quais a frágil costura dos plurais e contraditórios retalhos sociais de ambos os países se rompeu. Traduzindo: deu chabu.
O ódio e a intolerância não foram criados nas eleições, mas fermentam, desde as fundações, dessas que ”foram” as duas maiores sociedades escravistas modernas. E que seguem seus genocídios de jovens pobres e negros pela ação direta do Estado ou por sua anuência. E tratando populações LGBT, migrantes e indígenas como cidadãos de segunda classe.
A incapacidade de colocar-se no lugar do outro e entender que ele ou ela merece a mesma dignidade que sonhamos pra nós mesmos esteve sempre presente. A diferença é que não era distribuída pela internet, conectada pelas redes sociais e amplificada pela popularização de smartphones. A rede trouxe maravilhas, mas também organizou a ignorância que estava dispersa.
Na última campanha presidencial, PSDB e PT quase levaram o país às vias de fato, incitando a população e municiando-a para o confronto digital. Esse conflito deflagrado e fermentado pelo rancor do resultado das urnas (um susto para muita gente por desmentir o que a bolha do algoritmo da rede social vendia na timeline) foi apenas o início. Na sequência, a escalada de violência durante o processo que levou ao impeachment levou pessoas a apanharem na rua por usarem bicicletas ou camisas da ”cor errada”.
E vermelho se tornou a cor errada por um longo tempo. Da mesma forma, a perseguição ideológica de um certo ”macarthismo à brasileira” se instalou, bem como um clima de caça às bruxas a toda ideologia que não fosse aquela que não se afirma como ideologia. E que, por isso, mais ideológica é. Desde então, debater História em algumas salas de aula tem se tornado delito passível de perseguição, assédio ou demissão no Brasil. O problema é que, quando as pessoas não aprendem História, ela cisma em se repetir.
Ao mesmo tempo, muito chorume circulou nas eleições norte-americanas, principalmente aquele incitado por seguidores do presidente e seus discursos. E a campanha de sua adversária, se não destilou preconceito e ódio na mesma monta, também não pode ser inocentada pelo clima de conflito estabelecido.
Após esses momentos eleitorais, o preconceito deflagrado não retornou para a caixinha. E gente que havia se sentido mais à vontade do que nunca para transformar seu medo em ódio, e espalhá-lo, seguiram em marcha. Claro que prefiro que a realidade sobre nós mesmos venha à tona. Manter tudo no armário tem a vantagem de oferecer aos cidadãos uma tranquilidade forjada suficientemente ampla para que cada um toque sua vida. Mas como todo processo que não é natural, uma hora esse represamento explode. E machuca.
Tanto o Brasil quanto os Estados Unidos deveriam olhar para suas entranhas e discutirem que tipo de sociedade querem ser após a era digital ter embaralhado as coisas. Devido à pluralidade de sua composição, não é possível imaginar que o melhor modelo não seja o de seguir a vontade da maioria, garantindo, contudo, o respeito à dignidade de todas as minorias. Ou seja, uma democracia real. A política existe para ser a instância de mediação dos conflitos na sociedade, então que ela seja fortalecida e não abandonada.
Por fim, o discurso violento e opressor – mais palatável e que mexe com nossos sentimentos mais primitivos e simples – ecoa e repercute. Esse discurso basta em si mesmo. Não precisa de nada mais do que si próprio para ser ouvido, entendido e absorvido. O problema é que para qualificar o debate público – única forma de combater esse discurso violento – precisamos de ações em grande escala. O que só é possível através do Estado, que regula os parâmetros educacionais. Ou seja, precisamos usar o ensino como forma de melhorar o debate público contra o ódio.
Como fazer isso em um tempo em que o Estado está tomado por quem não vê o esgarçamento do tecido social como um problema, mas que surfa nesse medo e nessa insegurança, e que acha que o modelo de educação pública está fadado ao fracasso, é um desafio que teremos que responder. O mais rápido possível, se quisermos ter um futuro.
“Vagabunda”, “Essa corja tem que morrer”, “Essa raça deve ser exterminada”, “Vadia”, “Tinha que esfolar viva”, “Quem vota neles devia ser preso”, “Bando de nordestino ignorante que votou errado”. Pela internet circulam casos de pais e mães orgulhosos de seus filhos que desenham, com o dedo, na tela de tablets, assassinatos de políticos. Ou de crianças que fizeram bullying em amiguinhos que usavam cores diferentes daquelas que são ”autorizadas” socialmente.
Durante as eleições de 2014, entrevistei Telma Vinha, professora da Faculdade de Educação da Unicamp, que ressaltou que a percepção sobre o coletivo, bem como o aprendizado sobre justiça, diversidade e tolerância ocorre na escola. E que esse é o ambiente onde devem conviver opiniões diferentes. Portanto, por mais que alunos e alunas tragam de casa uma visão intolerante, a escola deve transformar e ressignificar essa visão. Não para doutrinar ou censurar, mas garantir o respeito à divergência.
Na escola, aprendemos a lidar com a igualdade e a diferença. Se um pai diz para não andar com gays porque eles são ”sujos”, na escola a pessoa terá a oportunidade de aprender que, na verdade, as coisas não são assim e que as diferenças entre as pessoas representam uma vantagem e não uma desvantagem para a sociedade.
Uma possibilidade é a escola promover debates e reuniões para que todos entendam que tipo de mensagem estão passando para seus filhos durante as eleições, por exemplo. Dois pais ou duas mães que defendam o voto em um candidato X e dois pais ou duas mães que defendam o voto em um candidato Y podem ser convidados para apresentar seus pontos de vista para os alunos em uma turma, de forma respeitosa. Pois a discussão de valores e de respeito a ideias divergentes é tão importante quanto o do conhecimento técnico.
Com a popularização das redes sociais e a quantidade de tempo em que os mais jovens passam conectados, é de se esperar que a família não seja a sua única fonte de formação fora da escola, talvez nem a principal. Mas a escola tem que estar preparada para entender isso e convidá-los à reflexão sobre tudo. ”A escola sempre vai transmitir valores. Quando ela fecha os olhos, está transmitindo valores. A intolerância para com o outro é um valor”, lembra Telma.
Em outras palavras, o silêncio não é neutro.