“Marco Temporal levará à extinção de povos indígenas e regularizará grilagem”, diz professor da USP

Samuel Barbosa, da Faculdade de Direito, diz que tese coloca em xeque ideia de que povos têm direito a um futuro; “temos um governo agressivo e com lado definido”

De Olho nos Ruralistas

O Supremo Tribunal Federal (STF) discute nesta quarta-feira (16/08) a tese do Marco Temporal, que impacta diretamente as terras indígenas. Os ruralistas aproveitam a decisão de 2009, relativa à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, para defender que só as terras ocupadas exatamente em 1988 – ano da Constituição – podem ser demarcadas. Povos indígenas mobilizam-se pelo país para que os ministros não referendem o retrocesso.

De Olho nos Ruralistas ouviu o professor Samuel Barbosa, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), sobre essa teoria e sobre quais podem ser suas consequências. Ele não economizou palavras: “O Marco Temporal vai levar à extinção de povos e é quase uma anistia de grilagem de terras do passado. Um povo indígena que perdeu a terra no passado e que não estava na terra em 1988 está condenado a desaparecer”. O pesquisador vê uma uma agressividade no governo e no Congresso “poucas vezes vista”.

Confira o vídeo:

Aqui, um resumo da entrevista de Samuel Barbosa ao editor Alceu Luís Castilho:

De Olho – A tese do Marco Temporal é constitucional?

Samuel Barbosa – Se você ler o artigo 231 e 231 da Constituição não se fala em Marco Temporal. O que diz a Constituição? Os povos indígenas têm o direito à reprodução física e cultural. Para isso têm direito às terras que tradicionalmente ocupam. Como é definida essa ocupação tradicional? A Constituição diz que vai ser feito um trabalho com peritos, antropólogos, historiadores. Não diz qual a data. Ela garante direitos originários, que são históricos. A fixação dessa data é inconstitucional.

De Olho – Quais as consequências possíveis?

Samuel Barbosa – Se você aceita a tese do Marco Temporal significa o seguinte: um povo indígena que perdeu a terra no passado e que não estava na terra em 1988 está condenado a desaparecer, porque sem a terra não vai ter a reprodução física e cultural. Vai contra a própria ideia da Constituição, que é garantir o direito dos povos a um futuro. O índio tem direito a um futuro. Não é um resquício do passado, que vai desaparecer, que vai ser assimilado. Não é essa a ideia da Constituição. A tese do Marco Temporal coloca isso em xeque.

De Olho – A sociedade brasileira está ciente desse massacre? O que ela pode fazer?

Samuel Barbosa – Não está plenamente ciente. Por isso a mobilização de todos aqueles que trabalham, militam, estudam a temática é da maior importância, para informar o risco que é o Marco Temporal. Ele vai levar à extinção de povos, é quase uma anistia de grilagem de terras do passado, não é o melhor modo de interpretar a Constituição.

De Olho – O que acontece em Brasília que permite todos esses retrocessos?

Samuel Barbosa – Michel Temer governa com uma base de sustentação no Congresso composta por uma bancada ruralista. Ela tem apresentado uma série de projetos que colocam em risco direitos sagrados da Constituição. O momento em que estamos é o de uma coalizão conservadora muito agressiva. Fizeram uma CPI da Funai e do Incra que condenava o trabalho de antropólogos, de membros do Ministério Público, isso releva uma agressividade poucas vezes vista.

De Olho – Com velocidade.

Samuel Barbosa – Sim, muito rápido, não dá tempo de debater, de aprofundar as questões. O Estado, numa democracia, num Estado Democrático de Direito, tem de arbitrar os interesses, fazer respeitar, cumprir a Constituição. O que acontece é que temos um governo com um lado muito definido e muito agressivo, com relação aos direitos da Constituição.

O lado do agronegócio invoca o direito sagrado à propriedade privada.

A Constituição de 1988 não fala em sagrado direito de propriedade, não tem mais essa expressão. Fala em função social da propriedade. Falar em direito sagrado da propriedade, a propriedade individual, ilimitada, absoluta, faz parte de um quadro mental superado pela Constituição de 1988. A propriedade tem função social. Não é só um direito, cria deveres para quem tem propriedade, a propriedade obriga também o proprietário. É esse o marco da Constituição de 1988 que tem de estar no nosso horizonte. Se tivesse, não poderia ter desapropriação. Ela é justamente um limite à propriedade. O reconhecimento da propriedade coletiva tradicional também é um limite. A Constituição diz, literalmente: “Numa área de ocupação tradicional os títulos de propriedade são nulos”.

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O Supremo Tribunal Federal julga também na quarta-feira uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, movida pelo DEM, contra um decreto de 2003 que regulamenta a demarcação dos quilombos. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), o temor é que a pressão do governo Temer e da bancada ruralista torne o decreto inconstitucional, ou que haja restrição do direito das comunidades à terra.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e outras organizações, como o próprio ISA, lançaram uma campanha em defesa do decreto: O Brasil é Quilombola! Nenhum Quilombo a menos!. Os quilombolas também temem que se invoque a tese do Marco Temporal.

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