Arte e artesanato indígena: muito além da simples beleza estética…

Por: Jairo Lima – Crônicas Indigenistas

Não escrevi nenhum texto semana passada. Não foi por preguiça, por excesso de trabalho ou por desapontamento ‘cármico’. Nada disso. O que impediu a pena de traçar minhas percepções semanais foram outros compromissos bastantes interessantes: revisão final do livro “Viagem Pelos Rios do Interior”, da amiga Dedê Maia e; continuidade da organização do meu acervo particular.

Estas duas semanas também foram marcadas por uma série de conversas com visitantes, que retornavam de alguns dos muitos festivais indígenas, neste ciclo de seis meses de festividades do Juruá Indígena. Todos estes visitantes buscavam saber mais sobre os povos indígenas da região e, em alguns casos, buscavam também informações de como adquirir artesanatos e artes indígenas.

Esse movimento todo me fez refletir bastante sobre as peças do meu acervo e, também, sobre um ponto já abordado tanto por mim quanto pela Raial em outros textos: a arte e o artesanato indígena como expressões estéticas e epistemologia dos povos indígenas.
Eu gosto muito da arte indígena. Sei que soa suspeito, afinal, não sou a pessoa mais neutra em relação a cultura indígena. Em minha casa, espalhada por todos os lados tenho vários objetos de origem indígena: cerâmicas, colares, esculturas, etc… E, para mim em alguns casos, são verdadeiras obras de arte.

Eu entendo perfeitamente as pessoas que colecionam quadros de grandes pintores, que apreciam esculturas e peças antigas. Sou assim também, mas, o que aprecio, é a arte indígena: uma escultura Noke Koi, um vaso de cerâmica adornado de pinturas usando casca de pau-brasil, um colar Marubo, um desenho de Ibã Huni Kuin, um quadro de Rosi Araújo…

Ultimamente tenho buscado adquirir e entender mais a arte do Povo Marubo. Faz uns meses que venho adquirindo diferentes peças, através de uma mestra artesã deste Povo, de nome Amélia Marubo, que, apesar de sua juventude, possui um conhecimento e maestria incríveis. Nesta semana, ela me mostrou um colar enorme, feito a partir da concha de aruá (uma espécie de caramujo). Fiquei maravilhado com a peça e a adquiri na hora, deixando-a, como de costume, sobre minha mesa, no escritório, dando beleza ao caos de papéis e burocracias cotidianas.

Em um texto passado, ao falar sobre as línguas indígenas, comentei que estas expressam todo um sentido de mundo. A arte e o artesanato indígena também é assim: expressa todo um sentido de mundo.

Particularmente aprecio peças feitas com materiais naturais como sementes, madeira, barro, algodão (no caso da tecelagem). Apesar de apreciar a beleza e a expressão artística e cultural de peças feitas com miçangas, e sempre divulgar os artesãos que as produzem, não as vejo no mesmo patamar das demais, mesmo reconhecendo o valor das mesmas. É uma opinião pessoal. Sei que duram mais, tem mais opções de cores e possibilidades diversas de uso mas… bem, não sei bem descrever a sensação que sinto quando tenho às mãos uma peça feita de madeira; ou pulseiras e colares feitos com sementes de tucumã, concha de aruá; ou objetos e utensílios tradicionais (não mais em uso) como facas feitas de taboca, cerâmicas diversas, etc. Juro que quando as toco, chego a sentir a energia humana usada para fazê-las.

Acho o trabalho de tecelagem algo extremamente lindo e expressivo. Uma rede Huni Kuin, feita totalmente ‘dentro da tradição’, utilizando o algodão plantado na comunidade e usando todas as técnicas tradicionais de fabricação, certamente não tem rival, se comparada às demais feitas a partir de fios de linha comprados nos armarinhos urbanos. Custa caro? Sim, custa, mas digo: vale cada centavo. E o que dizer de uma rede Marubo feita com fibra de pupunha e pintada com corante produzido da casca do pau-brasil? Inigualável. Ainda na tecelagem, tenho uma verdadeira obsessão por panos com motivos tradicionais, principalmente de origem Huni Kuin. Alguns móveis da minha casa ostentam orgulhosamente alguns destes.

Ainda falando sobre ‘minha casa’ (desculpem a breguice), uma escultura de madeira pesada na varanda, representando uma divindade do Povo Noke Koi e uma faca tradicional Yawanawá sob o batente da porta dá boas vindas para os visitantes que conseguem romper minha reclusão social (voluntária, por sinal) energizando-os, ao passo que avisa a todos que a casa ‘tem quem a vigie e guarde’ no plano etéreo. Um pequeno pássaro de madeira, presente da ‘cacique’ Eni Carla Shanenawa, olha despreocupadamente para o visitante, enquanto este depara-se após cruzar o batente, com quadros de autoria indígena, ostentando e espalhando beleza pelo ambiente.

Quando perguntado sobre estes quadros, não me esquivo de explicar, tal qual um curador de museu, sobre seu autor, destacando, claro, o tanto que este é apreciado mundo afora e poucos no Brasil o conhecem (no caso do Acre, menos ainda), como o grande txana (cantor de cipó), professor e artista Ibã Huni Kuin, que teve suas obras expostas no MASP (Museu de Arte de Sao Paulo), e que recentemente pintou a fachada de uma universidade no Chile, tendo, ainda suas obras expostas em Paris e EUA. Mostro detalhes do quadro, explicando o significado das imagens, as cores, etc.

Ainda em minha sala, no canto da parede, mostro um enorme vaso, que aqui na região chamam de ‘tibungo’ (em alusão ao barulho da caneca quando a mergulhamos na água contida no vaso). Explico que esta peça não é algo tão em uso, pois, em muitas aldeias com acesso a energia elétrica, os ‘parentes’ preferem a geladeira. Sem dúvidas, água gelada é sempre boa. Confesso que uma de minhas alegrias ao sentar-me no sofá da sala é apreciar sua beleza rústica, o que me remete ao meu próprio passado, no tempo que peças do tipo não eram exóticas em Rio Branco, capital do Aquiry, onde era comum eu beber água na casa de minha avó, retirando-a de um vaso parecido. Este também me traz lembranças das muitas aldeias por onde passei e convivi em boa parte de minha vida adulta.

Tenho minhas restrições quanto à aquisição de peças, sejam estas ‘arte’ ou ‘artesanato’: evito as que usem como matéria prima pele ou dente de animais; bem como as que usem plumas de aves em risco de extinção.

Possuo alguns cocares, dados a mim em ocasiões muito especiais. Alguns destes já há muitos anos atrás, quando as aldeias daqui eram pouco visitadas. Hoje, eu me recusaria prontamente de comprá-los ou até mesmo aceitá-los como presente, caso fossem feitos de penas de aves raras ou na lista de animais em extinção, como, por exemplo, o gavião real (harpia). Estas peças ficam devidamente protegidas e, em alguns casos, para minha tristeza, são peças raras pois não são mais usados, desde que espalhou-se, por estas bandas, o uso extensivo de grandes cocares. Ok! Tudo bem! Os povos indígenas podem e tem esse direito de usarem seus enfeites como bem quiserem, e do tamanho que quiserem. Não concordo é com a produção voltada para o mercado, onde se utilizem penas de aves ameaçadas de extinção.

O que venho buscando, ainda infrutiferamente, são as máscaras indígenas. Ví poucas nos últimos anos. É algo que vem sendo relegado ao baú do esquecimento, infelizmente.

Voltando ao ponto inicial do texto, sobre as conversas com os visitantes, empreendedores e empresários que vieram para os festivais, em busca de adquirir peças e artesanatos diretamente das comunidades, evitando os atravessadores que pagam pouco pelas peças e as revendem por preços exorbitantes. Mostrei a estes algumas das peças que tenho, bem com colares, pulseiras, redes, bolsas e outros objetos que ficam em minha sala (pois é, acreditem, ficam mesmo). Expliquei a origem, a matéria-prima utilizada, os fiz observar detalhes como as de cunho cultural e de gênero (é válido explicar aqui que, em algumas culturas indígenas da região, a arte tradicional de certas peças como pulseiras e colares são considerados ‘verdadeiras’ se forem feitas por mulheres, as guardiãs da sabedoria dos kene [grafia indígena]).

Alertei para estes visitantes da necessidade de buscarem adquirir e incentivar as comunidades a produzirem, também, peças artesanais utilizando estritamente as técnicas de fabricação tradicional, como parte do incremento de valor à peça, pois, assim como eu, há pessoas que pagam até um pouco mais por peças feitas estritamente dentro destas regras.

Faço um contraponto: manter aceso o conhecimento tradicional não impede de se adequar aos ‘novos tempos’, onde a cultura indígena também, em certos nichos, constitui um mercado próprio. Não se pode desvalorizar o rústico, assim como não se pode supervalorizar ‘artesanatos’ indígenas ‘made in china’ ou seja, copiados por artesãos de rua e vendidos aos montes por preços mais acessíveis até que peças originais. Não tem nem comparação, pois ao contrário das originais, estas não trazem o componente ‘tradição’ em sua essência. Creio ser necessário valorizar, fomentar e difundir cada vez mais a arte indígena, buscando compreendê-la, explicando-a de maneira que seja acessível a todos os yura (não-índio), para que estes a entendam e as apreciem.

Também é preciso valorizar o artesanato tradicional, mesmo que sejam feitos com matéria prima menos durável. Nesse ponto até vejo uma certa ‘mística’ na coisa, afinal a dissolução é parte do ciclo da natureza. A ‘arte’ e o artesanato indígena carece de mais estudo, mais interessados e entusiastas que façam um movimento, seja a partir do mecenato, seja com projetos, de maneira que esta chama não se apague.

Nos últimos tempos temos visto surgir uma nova maneira de expressão da cultura indígena: pinturas, desenhos e esculturas feitas por artistas que se dedicam e aprofundam o estudo e expressão de suas culturas, através de obras únicas.

Sou sim, um entusiasta, apreciador deste novo movimento e, para os que acham que exagero, ou que complico algo que não precisa de tanto significado e significância de ‘branco’, sobre a cultura indígena, afirmo: só quem não entende ou não tem sensibilidade, se emociona ou acha mais valioso um ‘Banksy’ – e sua volatilidade urbana -, do que com um ‘Ibã’ e seus ‘sonhos do Nixi Pae’.

Em minha opinião, a importância das duas artes estão em pé de igualdade.

Não concorda? Ok! O que posso dizer é que, daqui uns anos, assim como me arrependi de não ter adquirido a escultura feita pelo Benky Ashaninka, quando esta era mais acessível, no início dos anos 2000, certamente me arrependerei grandemente se não aproveitar a chance de aumentar meu acervo, com peças lindas feitas por Amélia Marubo, Edna Shanenawa, Moisés Ashaninka, José Huni Kuin, Marli Huni Kuin. Ou ainda, as obras de arte de Ibã Sales, Edilene Sales, Jaider Esbell Macuxi, Denilson Baniwa, Rosi Araújo, entre outros.

Então, cuida, cara pálida. Busque enquanto ainda são acessíveis e estes mestres ainda iluminam em vida este mundo.

Boa semana a tod@s,

Jairo Lima é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, no Acre.

Mulher Ashaninka- Foto: Alessandra Melo

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