Por Tyler Strobl, no Rio on Watch
“Vocês fizeram uma escolha péssima. Nós vamos incansavelmente cassar vocês. Essa palavra, não tenho medo de usar. Não tenho medo de direitos humanos. Não vai parar. Nós vamos entrar sempre. Sexta-feira foi um cartão de visitas. Aquele ali vai ser nosso cotidiano.”
Essas foram as palavras que os moradores do Jacarezinho, na Zona Norte, receberam, aterrorizados, dias adentro de uma longa operação policial em sua comunidade. O delegado Marcus Vinicius Amim Fernandes mandava essa mensagem para os traficantes do Comando Vermelho supostamente responsáveis por matarem o policial Bruno Guimarães Buhler, durante uma troca de tiros ocorrida em meio a uma operação de apreensão de drogas. Onze dias após a ocupação pela polícia e pelas Forças Armadas, a comunidade do Jacarezinho foi deixada em desordem, com ao menos sete mortos e muitos outros feridos; moradores de comunidades vizinhas também se sentiram desamparados durante a enorme operação que piorou na sexta-feira, 11 de agosto.
Com as forças da Polícia Civil se vangloriando da apreensão de 40 suspeitos e aproximadamente R$1 milhão em mercadoria contrabandeada, a operação foi aclamada por políticos e policiais de todo o país. Porém, apenas dias após o fim da operação, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro enviou um ofício demandando informação sobre possíveis quebras de protocolo e ações ilegais por parte da Polícia Militar e das Forças Armadas. A operação, que já acontecia quando o policial Guimarães Buhler foi atingido fatalmente no peito, tornou-se notadamente mais violenta nos onze dias seguintes, com vários moradores da região declarando ser aquela uma operação de ‘vingança’.
À luz das fortes palavras do Delegado da Polícia Militar, Amim Fernandes, a declaração parece pontuar a natureza dos assassinatos policiais ocorridos no Jacarezinho. Tudo isso enquanto a operação ocorria em outras comunidades da região sem fatalidades. Após pouco mais de uma semana de ocupação policial, moradores da região fizeram uma passeata pela paz no domingo, 20 de agosto, pelas ruas de Manguinhos. No dia seguinte, a situação piorou. “Às 4 horas da manhã, a gente começou a receber, principalmente, relatos de vizinhos e amigos. As mulheres tinham sido violadas, mulheres que tiverem que botar os filhos no chão para botar as mãos no tanque de guerra para serem revistadas. As escolas não funcionaram, os postos de saúde não funcionaram. Tinha cerca de onze tanques de guerra. Tinha jipes e caminhões. Estou falando só de uma rua. Num dia a gente pede paz, no dia seguinte a gente tem o exército declarando guerra”, relatou Patrícia Evangelista, presidente da Organização Mulheres de Atitude, de Manguinhos.
É fácil chamar isso de “guerra”, dizer que é uma perigosa operação de apreensão de drogas que naturalmente teria vítimas. Fazê-lo, porém, é ignorar os fatos, esquecer a responsabilidade institucional que o governo municipal e estadual têm de proteger todas as pessoas e promover um discurso que torna fácil a recorrência de massacres como esse. Ao invés disso, essa situação precisa ser minuciosamente escrutinada, não apenas por moradores de favela, mas por todos os cidadãos brasileiros. Permitir que operações como essas, que aterrorizam moradores de favela todos os dias, sigam sem fortes críticas de todas as parcelas da sociedade não apenas cria um perigoso precedente para todos os cidadãos do Rio de Janeiro, mas também envia uma forte mensagem para o governo e as forças policiais estaduais de que eles encontrarão complacência quando cometerem violações de direitos humanos e atrocidades como as ocorridas no Jacarezinho.
Problemas com a Legalidade da Operação
A polícia iniciou sua operação com um mandado de busca e apreensão coletivo que em teoria parece normal, mas que na prática não o é. Antes da grande operação policial, a Polícia Militar divulgou na internet cartazes de procurados, pedindo cooperação para a busca de traficantes. Na teoria, a investigação feita previamente seria completa o bastante para tornar possível o pedido de mandados de busca precisos. Foi pedido, porém, um mandado de busca coletivo, que permite que a polícia entre em qualquer casa da comunidade; o Jacarezinho tem 90.000 moradores. Como é de se imaginar, o resultado não é muito eficiente.
“O mandado de busca, ele deve ser específico, certo, determinado. Isso é o que expõe a lei. Entretanto, nas comunidades a prática do mandado coletivo é de certa maneira uma autorização para o policial poder entrar na casa de cada pessoa. Ele é genérico”, declara Djefferson Amadeus, advogado atualmente trabalhando na Fiocruz, instituição vizinha à comunidade, bastante ativo em defesa da comunidade durante a operação. “As portas foram arrombadas, os garotos foram xingados e violados, mulheres foram brutalmente revistadas. Eram moradores da favela”, lembra Patrícia Evangelista.
Embora a polícia tenha encontrado cinco armas, 300kg de maconha e 10kg de cocaína, é necessário se perguntar se o mandado de busca coletivo era necessário ou se valeu a pena. De fato, apenas dois suspeitos da lista original eram do Jacarezinho, e durante a operação um terceiro suspeito foi encontrando, não no Rio de Janeiro, mas no estado de Goiás, de onde comandava o tráfico da comunidade à distância. Djefferson Amadeus acrescentou: “Como deveria ser feito, se eles querem buscar o fulano de tal, que eles já [sabem quem é]? Então eles devem fazer um trabalho de investigação e ir determinado. Não sair entrando na casa de qualquer pessoa”.
Essa questão se soma, como atestam regularmente moradores de favela, à realidade de que policiais raramente encontram coisa alguma. Nesses casos, se moradores acreditam que foram tratados de forma injusta ou violenta, eles têm o direito de reclamar através dos canais apropriados. “Eles entram primeiro na casa da pessoa, e aí surge um problema, porque se eles entrarem na casa da pessoa e não acharem armas nem drogas, vão precisar justificar a entrada. O que eles fazem? Acabam plantando drogas”, acrescentou Djefferson Amadeus.
A situação é complicada, mas ignorar a lei ou tratar essas operações como circunstâncias especiais deixa moradores de favela vulneráveis ao abuso físico e mental diário por parte das autoridades. Embora traficantes de drogas possam de fato ter armas e drogas escondidas em casas em algumas comunidades, o mandado de busca e apreensão coletivo na realidade retira o direito de moradores de favela à proteção por lei. “Você jamais imaginaria uma situação dessa, por exemplo, em Ipanema. Você não consegue imaginar a polícia entrando em Ipanema com um mandado de busca coletivo, então por quê isso acontece nas comunidades?”, pergunta Djefferson.
Djefferson também estava lá quando a polícia levou preso um jovem jornalista cobrindo a situação para o jornal comunitário Fala Manguinhos. “Ele foi levado preso para a delegacia. Eu estava lá defendo outra pessoa que havia sido também violada. E é interessante porque ele primeiro chegou lá, de acordo com o depoimento do pessoal do exército, como participante no crime de homicídio. O exército não tem preparação para lidar com esse tipo de situação. Está preparado para guerra”.
Embora a polícia se vanglorie por ter capturado cerca de 40 suspeitos, depois de investigar os detalhes da situação mais a fundo, a verdade vem à tona: muitos, se não a maioria, não tinham qualquer envolvimento com o tráfico ou crimes violentos. A comunidade tem sido atacada sem tréguas por quase duas semanas com poucos resultados. “Quando a gente foi ver, a maioria das pessoas eram pessoas com questões de pensão alimentícia, não eram pessoas responsáveis pelo tráfico na região. E as pessoas que estão pagando são as mulheres de bem, os homens de bem, os jovens de bem, que não estão envolvidos com o tráfico”, lamentou Patrícia.
Como mencionado por Djefferson, são nessas cordas bambas legais em que se caminha quando as Forças Armadas são chamadas para entrar em comunidades em todo o Rio de Janeiro. Não temos apenas o excesso de força e armamento levando a excessos de violência e a um cenário parecido a um set de filmagem, mas também limites legais sendo esticados e até ultrapassados sem muito recurso. Djefferson continuou, “existe uma situação grave no Brasil que é a seguinte: se um policial ou agente público prende uma pessoa, cria-se uma orientação nos tribunais que a palavra do policial possui uma presunção de veracidade. Por exemplo, é possível um policial nos abordar aqui e dizer que há drogas conosco e nós sejamos preso apenas com base no depoimento desse policial. Existe uma orientação [ou] texto normativo que legitima essa conduta do policial. Nas comunidades, pessoas vêm sendo diariamente condenadas com base nessas questões”.
Retórica de “Guerra”
Vários dias após o início da operação no Jacarezinho, o jornal Extra, ligado ao mega-conglomerado midiático O Globo, alterou sua cobertura usual de crimes no Rio para falar de guerra; não guerra no Oriente Médio, mas guerra no Rio. De fato, eles decidiram, no calor do momento, tornarem-se o único jornal nacional cobrindo uma “guerra” fora de uma área oficial de guerra, com a criação da linha editorial “Guerra no Rio”. Essa escolha foi rapidamente apoiada no Twitter pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. É comum ouvir moradores do Rio de Janeiro se referirem à violência ocorrida na cidade como “guerra”, moradores de favela também frequentemente se referem à violência em suas comunidades como “guerra” e especialmente como “genocídio”. Porém, embora o discurso diário sobre a violência utilize um tom similar a de uma guerra oficial, muitos rapidamente condenaram o Extra.
“O próprio delegado responsável pela operação veio a público e falou que a guerra que iria ocorrer no Jacarezinho só cessaria quando acharem os autores do crime que decorreu na morte do policial. A partir do momento que um delegado vem a público dizer que haverá uma guerra, e que ela só cessará quando acharem os autores do suposto crime, primeiramente nós temos um problema pois um policial não pode vir a declarar uma guerra. Isso só é possível por intermédio do Presidente com autorização do Congresso Nacional. Então esse delegado usurpou a competência do Presidente da República ao vir a público e declarar “uma guerra”, comentou Djefferson.
É aqui que o uso da palavra pelo Extra se tornou um território perigoso. The Intercept rapidamente publicou um editorial declarando que chamar as operações de guerra “endossa política de segurança fracassada do estado”. André Fernandes, fundador da Agência de Notícias das Favelas, teve isso a dizer: “Criar uma editoria que afirme que estamos em guerra só ajuda a justificar o que a polícia sempre fez, porém, com o aval da própria imprensa: atira primeiro, pergunta depois. É assim em uma guerra, existe permissão para matar –mesmo que tácita, porque, em uma guerra, todas as piores atrocidades se tornam justificáveis por um ‘bem maior’, para que a tal ‘guerra’ seja vencida”.
O jornal Extra não está sozinho. Fontes jornalísticas internacionais bastante conhecidas como BBC News também têm feito uso da retórica de guerra. Com o aumento do uso do termo guerra, Robert Muggah, do Instituto Igarapé, incentivou meses atrás a reflexão sobre a adequação do uso dessa palavra. Em seu artigo de abril de 2017, intitulado “Rio de Janeiro: A War by Any Other Name” (Rio de Janeiro: Uma Guerra por Qualquer Outro Nome), ele explicitou as implicações de chamar um conflito de guerra, dizendo “que isso pode precipitar respostas militarizadas, incluindo o envio das Forças Armadas. Pode levar à declaração de estado de emergência e à suspensão de liberdades civis”.
Basicamente, chamar algo de guerra por tempo o suficiente, e no caso do Rio, não somente pela mídia mas por políticos e policiais, pode influenciar drasticamente como se travam conflitos armados. Isso é facilmente observado na operação que ocorreu no Jacarezinho. As Forças Armadas foram enviadas dias após o início das operações com pouco efeito aparente para além do aumento da letalidade da operação. Declarou-se estado de emergência e milhares de alunos ficaram sem aulas por dias e dias. Pode se dizer que liberdades civis foram suspensas com prisões ilegais e o mandado de busca e apreensão coletivo. Embora o Extra tenha recebido um aumento no seu ibope por alguns dias, as vítimas da violência sancionada pelo Estado no Jacarezinho agora estarão perdidas entre a enxurrada de matérias a serem arquivadas na seção de “Guerra”.
Política e Política de Segurança
“Quero parabenizar a Força Nacional de Segurança, Exército, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Civil e a Polícia Militar, que estão … fazendo uma operação de larga escala nas comunidades, mas sem dar um tiro. É aquilo que a gente pediu na semana passada, para que as operações fossem feitas com inteligência. Estão recolhendo armamentos, munições, pessoas, mas sem colocar em risco a vida das pessoas que vivem nas comunidades, sobretudo as crianças que frequentam as escolas no local”, disse o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, em um post no Facebook durante a operação. Sete pessoas foram mortas, diversas outras feridas, e milhares de crianças ficaram sem aula devido à insegurança perto de suas escolas. O sucesso está nos olhos de quem vê.
A simples verdade é que essas situações são confusas e, no fim do dia, os políticos acabam tendo que responder por elas. Infelizmente, aparentar sucesso, agir duramente sobre o crime organizado e erradicar as drogas da cidade têm prioridade sobre a vida e as necessidades de moradores de favela. “Me entristece quando uma autoridade pública como prefeito vem ao público parabenizar uma operação a qual houve, de início, um mandado de busca coletivo que foi expedido na madrugada, possibilitando que policiais entrassem nas residências das pessoas. Sobretudo, não faz sentido, por exemplo, dizer que uma operação que por dia gasta em torno de um milhão de reais, aprendeu, se não me engano, sete armas, nem um fuzil, quarenta pessoas presas –dentre elas eu poderia citar aqui três que, um era um jornalista, outra era uma senhora com deficiência física, e outra era um menino que estava com um celular. Fico me perguntando quem são as outras pessoas. O gasto que foi feito ali, eu não gosto desse discurso da economia, mas não faz sentido”, refletiu Djefferson Amadeus, que no passado foi inclusive advogado do próprio Crivella.
Em meio à operação do Jacarezinho, foi publicado um pequeno artigo com uma manchete importante: a era da UPP está chegando ao fim e a “força bruta” retornará. O ex-comandante das UPPs, Robson Rodrigues, admitiu que, com uma mudança de política, milhares de policiais da UPP seriam remanejados, sem qualquer declaração pública. “Essa medida é bem significativa. Vamos abandonar um dos programas mais revolucionários de segurança pública no mundo, uma alternativa clara à guerra às drogas, para voltarmos à força bruta”, constatou.
Com essa declaração, a necessidade de examinar minuciosamente a próxima fase da política de segurança pública se torna maior ainda. Talvez a operação no Jacarezinho, como em outras comunidades frequentemente afetadas por essas incursões violentas, sirva como uma assustadora previsão do futuro do policiamento no estado do Rio de Janeiro. Há muitos “novos” riscos em jogo: as Forças Armadas estão programadas para ficarem no Rio até o fim de 2018 e o Estado do Rio está sofrendo devido aos gastos Olímpicos e as propinas de políticos corruptos. Por outro lado, talvez as coisas estejam apenas saindo das sombras, sem o olhar atento da comunidade Olímpica internacional e os recursos para mascarar a situação. De qualquer forma, será importante acompanhar a política de segurança da cidade e do estado e seu cabo-de-guerra com a lei. Algumas das comunidades mais vulneráveis do Rio estão em jogo.
Infelizmente, para muitos moradores de favela, essa operação foi como outra qualquer. A polícia chegou vingativa e violenta. Os direitos de vizinhos, amigos e familiares foram violados sem hesitação. A comunidade ficou em luto e o frenesi da mídia se foi tão rápido quanto veio. Porém, a luta não terminou. Em uma audiência pública ocorrida no dia 25 de agosto, chamados de lideranças comunitárias por organização e união foram ouvidos claramente. A Caminhada da Paz em Manguinhos, ocorrida no domingo durante a operação, foi uma clara demonstração. Como lembrado por Patrícia, “[É] um evento que a gente faz reafirmando que a favela não é só violência, não é só tiroteio, não é só tráfico. A favela tem cultura, tem esporte, tem serviços, tem pessoas do bem”.
–
Foto: Rio On Watch