Terceira vivência de notório saber e Nheengatu na TI Maró, no baixo Tapajós, reuniu mais de 130 indígenas de diversos povos para trocar saberes e conectar educação com defesa do território
Por Barbara Dias e Gilberto Cesar Lopes Rodrigues*, no Cimi
Na semana em que muitos desfilavam para comemorar a independência do Brasil como colônia de Portugal, 137 pessoas – em sua grande maioria alunos e professores indígenas da Terra Indígena (TI) Maró, município de Santarém, oeste paraense, e de outros territórios da região – se reuniram para refletir criticamente sobre a semana da pátria e os desfiles de 7 de setembro, trocar experiências e fortalecer seus saberes tradicionais. Foi o que ocorreu entre os dias 2 a 10 de setembro, quando a TI Maró, habitada pelos povos indígenas Borari e Arapium, sediou o 3º Projeto de Vivência de Notório Saber e Nheengatu na Terra Indígena.
Em 2015, os indígenas reelaboraram as comemorações e a envolveram no fortalecimento cultural e territorial, eliminando a veneração dos símbolos da sociedade nacional e explicitando a contradição e o desconforto que a ideia de independência representava. Até então, alunos e professores da escola da comunidade sempre participavam das festividades oficiais, mas com sentimento de estranhamento e desconforto.
Questionavam-se, no sete de setembro: liberdade para quem? Qual o sentido em comemorar a independência em um contexto de violação de direitos, ocupação ilegal do território e expropriação cultural e material dos elementos que dão sentido ao modo de viver dos Borari e Arapium do Maró? Motivados por questões dessa natureza, realizaram em 2017 a terceira edição da vivência.
Para professores e lideranças da Terra Indígena Maró, o desfile e a semana da pátria são vazios de sentidos. A atividade cívica de que participaram durante anos nunca considerou que nem a exploração, tampouco a sujeição dos “Brasis”, tenham chegado ao fim com a proclamação da República. Esquecidos, ainda, estão os séculos de construção discursiva e falaciosa de uma pátria – Estado-nação – levantada sob sangue e vida indígena, camponesa e quilombola.
O discurso da criação de uma “pátria” e uma “nação brasileira” pressupõe a unificação de um território sob uma única jurisdição, em torno de uma única língua, de um povo homogeneizado que supostamente compartilharia uma cultura única, conformada pelo “povo brasileiro”. Um povo. Assim, a existência de diversos povos e suas nações, com estruturas sociais diversas, com territórios e com autonomia para gestão destes, sempre representou uma ameaça aos discursos nacionalistas.
Eram necessárias políticas de homogeneização cultural, responsáveis, inclusive, pela legitimação de atrocidades históricas, como as políticas de assimilação e integração de povos indígenas que resultaram em consequências graves, como genocídios de populações inteiras ou o apagamento de elementos da identidade destes povos, como, por exemplo, suas línguas nativas.
Por isso, um dos enfoques do projeto é a revitalização do Nheengatu, língua geral utilizada por diversos povos indígenas amazônicos, inclusive os do Baixo Tapajós, a partir da colonização, no século XVII. Inicialmente efetivado com a comunidade interna da TI Maró, tendo nos professores de língua indígena sua força motriz, nessa terceira edição a vivência contou com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Cimi, da Funai, da Ufopa e da Associação Vila Viva.
Reflorestando ideais
A semana da vivência aconteceu no centro de apoio da Terra Indígena Maró. A instalação, antes ocupada por madeireiros invasores da terra indígena, hoje é espaço para educação. A retomada deste espaço foi parte do processo de autodemarcação do território, iniciado em 2004.
Desde então, intercâmbios, vivências e outras atividades são realizadas nesse local, símbolo de resistência e de uma nova forma de educar. Foi na casa retomada que os saberes tradicionais dos professores indígenas, do pajé, dos antigos e das lideranças tomaram a vez das fardas da semana patriota.
No lugar de desfilar venerando símbolos erguidos sob desrespeitos e violações, a semana foi de outros saberes, menos colonizadores, de envolvimento da educação no reconhecimento e proteção do território, como afirma a gestora da escola São Francisco, Keila Colares. Hoje a educação na TI Maró segue no sentido de “reflorestar ideias”, diz Jailson Borari.
Oficinas e dinâmicas envolveram o grupo formado por mais de uma centena de indígenas, sempre na perspectiva de envolvimento – em contraposição ao “des-envolvimento” colonialista – ao território e à cultura dos Borari e Arapium. Histórias contadas pelos professores e pelo pajé Higino transportaram as crianças para o mundo da mãe da mata, Curupira, do encantado Patawí e de caçadores e pescadores.
Foram apresentadas as seivas das árvores do território e técnicas de caçada e sobrevivência na mata. As crianças encenaram peças teatrais com personagens, que no lugar de representarem os grandes heróis da história nacional, eram inspirados nos heróis e sujeitos da vida real de suas comunidades. Foi uma festa.
A partir do método de Paulo Freire, a oficina sobre alfabetização de Nheengatu envolveu professores da escola da TI Maró e de outros locais, como os povos Maytapu de Pinhel, Munduruku do médio Tapajós e Borari de Caranã.
Os participantes da vivência também puderam acompanhar oficinas de tessume – trançado tradicional feito com folhas de palmeira – e de edição vídeo, além de campeonatos de futebol e de arco e flecha. Para o reconhecimento territorial, a expedição na mata levou adultos e crianças a identificar plantas medicinais e árvores frutíferas.
O projeto de vivência em Nheengatu e notório saber tem representado uma importante estratégia para mobilizar as ações da escola em defesa do território, para fortalecer a preservação cultural e o intercâmbio com outros povos. É um significativo exemplo de reelaboração das atividades escolares em direção a uma educação escolar diferenciada.
A Terra Indígena Maró
A TI Maró tem muitos motivos para questionar e mudar as imposições do Estado brasileiro sobre os povos indígenas e suas estruturas de organização. Há sete anos, após um processo de muita luta frente à morosidade estatal, os 42.372 hectares da terra indígena foram reconhecidos aos povos Borari e Arapium.
Para obter a publicação do Relatório circunstanciado de identificação e delimitação (RCID), os indígenas tiveram que demonstrar grande capacidade de organização e resistência. Mobilizaram as comunidades para a autodemarcação do território, o que levou a Funai a criar o grupo de trabalho para dar início ao processo administrativo da demarcação da TI.
As dificuldades no âmbito institucional prosseguem. Atualmente, o território encontra-se entre os processos retrocedidos à Funai pelo governo Temer. A vivência, em sua terceira edição, aponta para a continuidade da mobilização e o fortalecimento da autonomia indígena na TI Maro.
“É desconstruir conceitos premeditados”, define Adenilson Borari, liderança da TI Maró. “A gente trabalha na vivência onde os velhos, os sábios ensinam como se caça, como entra e se comporta na floresta, como se vive em harmonia com a natureza, e são aulas e ensinamentos práticos do ponto de vista tradicional e cultural do povo. Nós temos uma força espiritual, então vamos aproveitar isso. Tudo sai da floresta, tudo é da mãe terra tudo é da natureza, se tem algo dando errado, a natureza ajuda a resolver. Nós não conseguimos desprender educação de território, porque não conseguimos imaginar viver sem floresta. Por isso, estamos trabalhando essa consciência para todo mundo defender o território”.
*Barbara Dias, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Norte II, e Gilberto Cesar Lopes Rodrigues, professor adjunto do programa de educação da Universidade Federal do Oeste Paraense (UFOPA).
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Fotos: Bárbara Dias / Cimi