A Evasão da Participação Popular e Favelada no Plano Estratégico da Prefeitura do Rio

“O debate participativo é como remédio: se houver demais, mata” – Aspásia Camargo

Luisa Fenizola – RioOnWatch

A Lei Orgânica do Rio de Janeiro exige que a gestão municipal formule um Plano Estratégico para o mandato e, ainda, que promova um processo de consulta que permita a participação da população na validação das metas propostas–que se encerra amanhã, dia 29 de setembro. Analisamos anteriormente as metas que diziam respeito às favelas–e as que não eram territorializadas nesses espaços, mas que acreditamos que deveriam ser, por conta da especificidade desses territórios.

Além disso, a Casa Fluminense juntamente a outras 32 organizações diversas, como Meu Rio, Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU), Redes da Maré, Observatório de Favelas, Comunidades Catalisadoras (ComCat), Igarapé, Verdejar, e IBASE, promoveram encontros e debates em diversas partes do Rio, para além dos organizados pela prefeitura, ao longo desses três meses, visando fazer propostas que reflitam os anseios e necessidades dos cidadãos. Por conta da ausência de um processo participativo efetivo da Prefeitura do Rio, este processo da sociedade civil acabou também servindo como garantia de um espaço de escuta e repercussão das propostas levantadas dos cidadãos. O documento síntese desses encontros foi encaminhado à prefeitura.

A prefeitura, por sua vez, organizou encontros para discutir o Plano com a população, mas devido à baixa divulgação, o público desses eventos consistiu principalmente de funcionários da prefeitura, que foram convocados e liberados do expediente para comparecerem. Além disso, mudanças nos locais do evento não foram amplamente divulgadas, levando muitos moradores a comparecerem ao local errado, onde não havia informação de redirecionamento, prejudicando assim o processo participativo. As audiências ocorreram no Centro, Tijuca, Bonsucesso, Freguesia e Del Castilho, dentre outros. “Aconselho que façam audiências públicas nas favelas, porque vários companheiros não estão nem sabendo dessas audiências”, disse Emília Souza, moradora e líder da Associação de Moradores do Horto, durante a audiência na Tijuca.

“As favelas têm que ser respeitadas e os projetos têm que ser discutidos com aqueles que são afetados por eles–de preferência dentro das favelas. Não é possível que o benefício chegue somente a 21 de todas as favelas do Rio de Janeiro”, disse outro morador, fazendo alusão à meta de urbanizar 21 favelas (meta No. 73) de uma cidade que conta, segundo a narrativa oficial, com mais de 800 favelas. “Nós queremos participar efetivamente da construção do Plano e não somente vir a uma audiência para legitimar o que já foi colocado previamente”, colocou um terceiro morador.

Espectadores reclamaram, ainda, que a exposição do Plano ocupou quase duas das três horas previstas para o evento, reduzindo o tempo de participação e debate. “As pessoas só colocavam a sua opinião e não havia debate”, disse uma defensora do Núcleo de Terras e Habitação (NUTH) da Defensoria Pública. “Ainda assim, várias coisas estão saindo do papel mesmo antes do fim do processo participativo. Veja o caso de Rio das Pedras–parecia algo etéreo, mas realmente pode vir a ocorrer”, completou ela, referindo-se ao fato que os funcionários da prefeitura vêm realizando cadastramento de moradores na comunidade, fazendo perguntas acerca da renda e número de cômodos e andares de suas casas.

O Plano prevê a conclusão de um estudo de requalificação urbana (meta No. 74 do Plano), que pode vir a permitir a alteração do gabarito da região, de um limite de dois para doze andares. As ações da prefeitura indicam que o processo de reassentamento dos moradores para os novos edifícios planejados já foi iniciado mesmo antes da conclusão do estudo. “É tudo feito de forma muito obscura, sem critérios. Descobrimos o que estava acontecendo através da mídia, juntando peças. Um dia acordamos nesse pesadelo”, disse uma moradora de Rio das Pedras sobre a situação, durante uma reunião promovida pelo NUTH e a Pastoral das Favelas para debater as consequências do Plano.

Os moradores de Rio das Pedras já estão se organizando contra as eminentes remoções. “Esse plano não é para a gente, é para os nossos vizinhos. Eles só usam a gente de maquiagem. Eles querem construir um prédio com elevador para uma população que não tem condição de pagar R$400 em um aluguel, que dirá em conta de luz pra manter o elevador, condomínio…”, disse Mário, uma das lideranças do movimento.

“Uma dor das pessoas que moram em favela é de simplesmente quererem morar onde estão. Quererem uma praça popular, uma moradia tranquila, quererem urbanização. A Secretaria Municipal de Habitação não pode ser uma Secretaria Municipal de Remoção. As secretarias precisam entrar nas favelas e trabalhar. Quem sabe do que a favela precisa são os moradores, então ouçam eles, ouçam as dores dos moradores, subam os morros”, clamou uma moradora de favela no evento na Tijuca. “É uma hipocrisia olhar para a favela como segundo plano. Temos que cuidar da área verde, da segurança e da infraestrutura em geral. Quem mora lá faz parte do contexto social, somos as pessoas que trabalham para a cidade acontecer. Nós favelados temos direito ao melhor”, disse outro morador no mesmo evento.

Além dos encontros presenciais, a prefeitura prometeu uma plataforma online para recolher sugestões da população. Só foi ao ar a primeira fase das quatro prometidas pela prefeitura, e essa não contemplou o período inteiro de consulta. Teve a participação de apenas 354 pessoas, cuja maior parcela era de moradores da Zona Sul. Na plataforma era possível somente avaliar pontos fortes e fracos da cidade a partir de afirmações previamente dadas (e que reforçavam estereótipos), não havendo espaço para incluir pontos e, tampouco, avaliar as metas propostas, de forma que dificilmente poderia ser considerado um processo satisfatório de engajamento com o Plano em si.

“Eu ainda sonho com um plano que pense a favela como parte integrante e verdadeira da cidade. A favela aparece com timidez no Plano, e quando aparece questiona-se os números trazidos”, disse um morador durante um dos eventos promovidos por essa rede de organizações da sociedade civil, em parceria com a MobiRio e o Conselho de Arquitetos do Rio de Janeiro, no Instituto de Arquitetos do Brasil. No mesmo evento, Aspásia Camargo, subsecretária de Planejamento e responsável pelo Plano, comentou sobre o processo: “O debate participativo é como remédio: se houver demais, mata”, revelando a postura da prefeitura quanto a um engajamento participativo verdadeiro.

Outros debates promovidos pela sociedade civil incluíram o Encontro das favelas para debater o Plano Estratégico, feito no Complexo da Maré em parceria com a Redes da Maré, e um encontro da sociedade civil em Campo Grande para debater a agricultura urbana, ausente no Plano. O documento síntese destes encontros traz ainda a territorialização de metas que originalmente não levavam em conta a especificidade das favelas, como a que diz respeito à cobertura das equipes de Saúde da Família (meta No. 15), expandida para abarcar não só bairros com baixos índices de desenvolvimento, mas também favelas; a necessidade das metas de educação refletirem que, além de compartilhar os mesmos desafios que o resto da cidade, as escolas nas favelas ainda têm o desafio de cumprir os horários e quantidades de dias letivos (meta No. 31); a necessidade de ampliar a coleta seletiva para as favelas (meta No. 51); dar orientação técnica para construção sustentável especificamente em favelas (meta No. 60) e fomentar a mobilidade de bicicletas dentro e no entorno das favelas (meta No. 83).

Após a entrega do documento com as metas comentadas como resultado desse processo organizado pela sociedade civil, as organizações envolvidas elegeram as 12 metas prioritárias e organizaram uma petição com prazo até ontem (28 de setembro) para demandar da prefeitura que sejam incluídas no Plano. As 12 metas incluem a necessidade de transparência e diálogo acerca da urbanização de favelas e das áreas de risco geológico, de forma a tornar público o critério de seleção das 21 favelas escolhidas para receberem intervenções e a forma como a urbanização será feita (atual meta No. 73), e de forma a garantir que o discurso ambiental e um histórico de exageros na atribuição de riscos não sejam apropriados para justificar remoções (atual meta No. 76). “Esperamos que a prefeitura tenha mais sensibilidade com as questões voltadas para as favelas, devido aos resquícios dos governos anteriores. O que nós vivemos é uma distorção do direito ambiental na forma como são tratadas as comunidades que vivem nessas áreas e a forma como é beneficiada a elite que vive nessas áreas”, colocou nesse sentido Emília durante a audiência na Tijuca.

Os 12 pontos incluem também a expansão da coleta e tratamento de esgoto para toda a cidade, incluindo as favelas, e não só para a AP4 (Barra da Tijuca e Jacarepaguá), como propõe a atual meta No. 53. E também a expansão da meta de segurança para incluir as áreas com os piores indicadores, e não apenas na orla, como foi proposto no Plano original (meta No. 43). Incluem, ainda, a entrega das habitações de interesse social no Centro. Finalmente, é proposto um programa de fomento à cultura que vise à redução das desigualdades sociais na cidade e que reafirme a produção cultural nas favelas, como forma de reverter o discurso (e as práticas baseadas nele) da prefeitura de que não há cultura nessas áreas. “Com a cultura pode se resolver muitas questões, inclusive da violência, além de gerar empregabilidade para o jovem da favela”, sintetizou uma moradora durante o evento na Tijuca.

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