No blog do Sakamoto
A discussão mais importante envolvendo a regulamentação do Uber e de outros aplicativos de transporte não deveria ser a que estamos travando neste momento, ou seja, se eles deveriam seguir as mesmas normas que os táxis.
Esse debate está fadado ao fracasso porque a existência dessas interfaces são favas contadas e a proibição levaria apenas ao surgimento de alternativas. Afinal, se há demanda, haverá oferta. E, dado o péssimo sistema de transporte coletivo e público em grandes cidades, há demanda. E muita.
Que se regulamente as regras para o serviço e a arrecadação de impostos, desenvolva-se cursos especiais para os motoristas, garanta-se normas para a segurança de passageiros, enfim, traga a novidade para dentro do sistema.
Deveríamos, contudo, estar travando um debate a respeito das condições dos trabalhadores que dependem desses aplicativos. É notório que, para conseguir um mínimo de remuneração mensal que garanta qualidade de vida a suas famílias, motoristas vinculados aos apps precisam trabalhar por longos períodos. Não só porque o valor das corridas é baixo, mas porque as empresas comem uma parte considerável do pagamento – um quarto de todo o dinheiro.
Tribunais ao redor do mundo têm analisado processos que demandam o reconhecimento de que essas empresas são, na verdade, empregadoras dos motoristas, dada a quantidade de obrigações e interferências e o tamanho do valor retido. No Brasil, há quem veja nas relações entre condutores e apps os critérios básicos que caracterizam o vínculo empregatício: pessoalidade, periodicidade, subordinação e onerosidade.
O debate sobre esse tema é longo e não pode ser esgotado em um post. O fato é que, independentemente de vínculo ou não, o valor de cada corrida entregue aos motorista poderia e deveria ser maior – sem que isso significasse aumento de custo para os passageiros. Sei que falar disso é pecado no Brasil, mas estou tratando de redução da margem de lucro mesmo.
A resposta-padrão dos defensores do aplicativos é o famigerado ”trabalha quem quer, ninguém está obrigando”, normalmente proferido por quem acha que a sociedade é um lugar sem regras em que vale apenas o ”salve-se quem puder”.
Ledo engano. A Constituição Federal deixa claro que é função do Estado evitar que a exploração do trabalho atente contra a dignidade humana. Isso não é comunismo, como alguns paranoicos conspiracionistas acreditam, mas regulação decente do mercado do trabalho para o bom funcionamento do sistema.
Em algumas cidades pobres do interior do país, lideranças locais me explicaram que o desemprego e a falta de oportunidades eram tão graves que, se alguém passasse com um carro de som oferecendo serviço em troca de comida e teto, uma multidão se formaria atrás.
Aumentar o repasse aos motoristas segue a mesma lógica da solução defendida para melhorar a vida de pessoas que trabalham em oficinas de costura em São Paulo, Pernambuco ou Rio Grande do Norte. Boa parte delas produz para grandes marcas do varejo. Se quem encomenda pagasse melhor às oficinas, garantindo que a remuneração não fosse por peça produzida, mas por um salário fixo mensal, por exemplo, o sistema poderia mudar. Pois, hoje, as pessoas não se oferecem voluntariamente para o sacrifício de sua dignidade diante da possibilidade de juntar alguma coisa e mudar de vida. Só que essa mudanças raramente acontecem.
Estamos maravilhados com o mundo novo, digital, conectado. Se por um lado ele facilita a nossa vida, por outro, ele também inventa novas maneiras de explorar o trabalho. Imaginamos, inicialmente, que a economia compartilhada fosse empoderar cidadãos e reduzir o peso das grandes corporações na vida cotidiana. Mas não foi bem assim.
Esquecemos que o capitalismo é inigualável em sua capacidade de absorver boas intenções, ressignificá-las e lucrar muito com elas. Ou seja, o sonho de uma sociedade em que quem tivesse um serviço (um carro que possa transportar pessoas) poderia se conectar a quem tivesse uma demanda (pessoas a serem transportadas por um carro) acabou esbarrando na intermediação (alguém que realiza a conexão entre oferta e demanda), que opera, não raro, muito além do socialmente justo.
A solução de regular o tamanho do repasse aos motoristas pode parecer interferência em um negócio alheio, mas isso tornaria a vida uma pouco mais civilizada. Resta saber se queremos uma vida mais civilizada por aqui ou se nos contentamos com corridas baratas em que a conta é paga com a dignidade de terceiros.
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Protestos de taxistas no Rio de Janeiro contra o Uber em 2015. Foto: Ricardo Borges/Folhapress.