Por Roberto Tardelli, no Justificando
“Ainda me lembro da gente sentado ali/ Na grama do Aterro, sob o sol/ Ob-observando hipócritas/ Disfarçados, rondando ao redor/ Amigos presos, amigos sumindo assim/ Pra nunca mais/ Tais recordações/ Retratos do mal em si/ Melhor é deixar pra trás”…
Vinha pelo carro, ouvindo essa canção maravilhosa de Gil, sua tradução de Bob Marley (com todo respeito ao músico caribenho, a versão é superior ao original), enquanto pensava em algumas coisas que tenho lido, nas redes sociais, de pessoas – muitas delas, honestíssimas, fina flor da sociedade – saudosas da ditadura.
Pensava nelas, em boa parte gente lutadora, que suou sangue para ter seu carro financiado, seus filhos em escolas particulares, sua varanda gourmet e sua viagem anual para a Disney. Muitos estão no serviço público ou, quando na iniciativa privada, sofrendo os revezes deste nosso capitalismo periférico e subalterno, desimportante. Lamentam o fato de serem latino-americanos e buscam desesperadamente uma dupla cidadania e que um bisavô alemão ou italiano ou espanhol pudesse salvar da tragédia de serem brasileiros, terceiro-mundistas. Um passaporte da Comunidade Europeia os salvaria de tudo isso que está aí. Possuem um pet, um cãozinho ou um gato, que diverte a família. São cristãos, rezam ou oram para que seus filhos não se tornem gays ou saiam por aí, envoltos em bandeiras vermelhas. Todos se amam e desejam a volta da ditadura militar. Alguém lhes disse e eles acreditaram que existe uma certa intervenção militar constitucional, algo de que sequer fazem ideia do que se trata, mas que lhes parece bom.
O que leva alguém a ser saudoso de uma época de supressão de liberdades públicas, de censura aos meios de comunicação e às formas de expressão artística, de prisões (mais prisões) arbitrárias, de pensamento oficial, de ausência de críticas, de glorificação de bajuladores vulgares e dedos-duros, de poder burocrático infinito, de portas fechadas, de janelas fechadas, o que os levaria a querer para si a desgraça, como se a desgraça fosse a salvação de todos nós?
É óbvio o discurso do medo. A indústria do medo nos tornou paranoicos. Queremos vigilantes, cães ferozes, cercas elétricas, muros altos, armas de fogo, que nos protejam dos bandidos. Queremos que os Direitos Humanos sejam desmoralizados e desapareçam da face da Terra, para que possamos quebrar na porrada esses vermes malditos que nos roubam, que invadem terras, que invadem prédios, que desafiam a ordem pública; queremos bons genros e boas noras. Queremos todos respeitando a lei, respeitando os mais velhos, respeitando as classes sociais estamentadas desde a Primeira Missa.
Na ditadura, é preciso que haja valores morais absolutamente medievais para que se possa manter as reses resignadas, esperando pela Salvação. Os valores morais são impostos na porrada, na criação de toques de recolher, na dissolução de rodas de amigos, na arapongagem amadora de eventos, palestras, cursos, reuniões. Qualquer transgressão somente é possível com voz baixa, em sussurros, com medo, qualquer transgressão é conluio, qualquer transgressão é uma conspiração e tudo fica onde estava, no dia em que o mundo parou.
Ter saudade da ditadura é ter saudade dos bajuladores, dos jornalistas que aprumam o microfone do general e depois se arvoram a analistas do próprio puxa-saquismo.
É ter saudade de pilantras, de malandros, que se engravatam para elogiar o ditador de plantão; o cão do ditador de plantão é elogiado por eles, é fotografado por eles, para emprestar ao ditador uma aura de magnanimidade, o Ditador e seu Labrador.
Os saudosos da ditadura não pensam nos porões que a ditadura abre, lacra e enterra vivos os que dela discordarem. Não pensam nas crianças educadas feito robôs, para que jamais adquiram sentido de cidadãs. Os saudosistas imaginam-se sempre do lado de dentro do balcão das autoridades, nunca do lado de fora, onde a imensa maioria desses bucéfalos estará.
Minha geração errou. Errou gravemente. Não transmitimos aos que nos sucedem que a liberdade é o bem maior, que é ela que nos garante a vida, mas vida com dignidade. Não soubemos transmitir que é a liberdade que nos faz crescer, evoluir, tolerar, compreender, seguir em frente. Erramos por não termos aprendido que a História é feita de liberdades, que são as liberdades que nos levam a estágios mais avançados de civilização.
Não transmitimos às novas gerações que a liberdade é ouro, prata e diamante, enquanto a ditadura é um feixe de galhos retorcidos que se prendem apenas a deter o fluxo das águas do tempo.
Erramos e os fizemos saudosos de algo que sequer viveram.
A culpa é nossa. Inteiramente nossa, esses néscios sonham com a ditadura porque efetivamente nós não soubemos valorizar a democracia.
Quando o ensino público naufragou, migramos, nós, brancos, classe-média, burocratas bem pagos, para a escola privada; quando a saúde pública naufragou, migramos para as medicinas de grupo; quando a segurança pública naufragou, criamos exércitos privados, em condomínios fechados. Nunca fomos republicanos, nunca lutamos pela coisa; faz tempo que privatizamos o Estado.
Nesse apartheid criado no Brasil, a consequência imediata é que nunca mais houve convívio vertical, a diversidade nunca mais foi reconhecida e todos nossos amados filhotes burgueses aprenderam a viver em condomínios, jamais em sociedade. A liberdade é algo que jamais experimentaram; não é surpresa que não a valorizem.
Sonegamos os impostos porque o Estado não mais nos diz respeito, porque nada que é público é por nós compartilhado. Não há sentido de cidadania e nossos impostos não são para nós, mas para aqueles a quem nunca reconhecemos direitos civis.
Na nefasta opção que fizemos, a república se perdeu e as liberdades públicas também diluíram, perderam o sentido, tornaram-se um problema, antes de se tornarem solução. A História se perdeu. Torcer pela volta da ditadura parece natural, parece a esses pobres de espírito apenas uma forma de garantir as vantagens que sempre tiveram.
Erramos muito. Merecemos ouvir que muitos sentem essa saudade de merda.
Merecido.
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Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway.