Assoreamento da privacidade: a nova ferramenta do whatsapp

Por Roberto Piccelli, no Justificando

A privacidade tem sido tratada no Brasil como uma mera conveniência individual e negociável. Como a decisão estratégica é deixada na mão do usuário, o seu suposto poder de escolha vem legitimando retrocessos generalizados em várias frentes. E assim, sob o pretexto de que apenas facultam ao próprio usuário expor dados pessoais, serviços eletrônicos têm conseguido circunscrever esse direito tão trivial a um conceito cada vez menor e mais restrito.

É o que se pode chamar de assoreamento da privacidade.

O serviço de localização em tempo real oferecido na última atualização do Whatsapp fornece um ótimo exemplo dessa dinâmica. Para quem ainda não teve acesso à ferramenta, o botão que tradicionalmente permite ao usuário compartilhar a própria localização agora concede a opção de fornecer ao destinatário o rastreamento do remetente por até oito horas.

Não é difícil perceber que o que é vendido como uma mera opção, no entanto, nem sempre estará de fato na esfera de escolha do usuário. Em várias situações, os indivíduos podem ser coagidos a ativar o serviço de rastreamento: relacionamentos abusivos, relações de emprego ou de subordinação política, eleições, abuso do poder familiar, entre outras. Basta que uma das partes da comunicação esteja em estado de sujeição à outra, que ela estará constrangida a optar.

Note-se que esse tipo de coação não necessariamente será exercido de forma direta: se um ou mais empregados de uma determinada empresa passarem a voluntariamente disponibilizar sua localização em tempo integral, a competição interna indiretamente obrigará à replicação do comportamento, sob pena de desconfiança sobre os mais reservados. A tendência é sempre o nivelamento por baixo dos níveis de reserva pessoal.

A privacidade converte-se, enfim, em uma espécie de bem do qual o indivíduo pode dispor, na falsa suposição de que essa escolha se dá sempre num ambiente de total liberdade. Na realidade, é razoável supor, ao contrário, que nenhuma pessoa livre, em condições normais, abriria mão do direito de não ser vigiado.

No que já é um clichê invocado em toda iniciativa atentatória à privacidade, por parte de governos ou grandes empresas, o apelo da nova ferramenta do Whatsapp está em supostamente promover a segurança do usuário. “Há quem tenha medo que o medo acabe”, disse uma vez o grande Mia Couto.

Os agentes interessados sabem que os indivíduos tendem a superestimar os riscos a que estão expostos e, do outro lado da equação, a desprezar os custos sociais das suas escolhas.

E assim a segurança pública tem sido usada para legitimar o encilhamento dos controles de tempos em tempos.[1]

No entanto, a ideia de que, com menos privacidade, faz-se mais segurança é uma ideia essencialmente falsa,[2] porque o indivíduo que se deixa vigiar, na melhor das hipóteses, fica à mercê daquele que o monitora.

No que diz respeito aos custos sociais, a importância da manutenção dos níveis de privacidade transcende o benefício individual do indivíduo que retém a sua esfera de resguardo. Não apenas por ser democraticamente saudável que a sociedade não seja rastreada; o principal é que, em um caminho possivelmente sem retorno, os parâmetros comunitários relativos à privacidade vão se deteriorando à medida em que milhões de decisões individuais trocam dignidade por conveniência ou segurança.

O serviço de rastreamento em tempo real disponibilizado pelo Whatsapp é apenas a ilustração mais recente de um fenômeno generalizado.

Os botões para renunciar à própria privacidade estão em todas as partes, e o que vem em troca nem sempre é a ilusão da segurança.

Ainda no exemplo dos serviços de acompanhamento da localização, o “Amigos nas Imediações”, do Facebook, oferece simplesmente a oportunidade de interagir com amigos próximos. É preciso mapear a situação da privacidade e pensar de forma coletiva a sua preservação.

Hoje, ao menos em tese, já não basta que o indivíduo queira desfazer-se da cobertura vegetal da sua propriedade. O interesse social em preservar o meio-ambiente levou a que se regulasse o desmatamento, mesmo em terras particulares. Da mesma forma, a manutenção de níveis mínimos de privacidade é relevante para a comunidade como um todo.

É a hora, no Brasil, de instituir um órgão independente para exercer esse controle tão estratégico.

Roberto Piccelli é advogado atuante em direito público, mestre em direito constitucional pela Universidade de São Paulo e sócio do Piccelli Advocacia.

[1]Bauman descreveu bem a situação: “(…) agora parece que todos nós, ou pelo menos a grande maioria, nos transformamos em viciados em segurança. Tendo ingerido e assimilado o Weltanshauung (= visão de mundo) da ubiquidade do perigo, da abrangência das bases para a desconfiança e a suspeita, da noção de convivência segura como algo concebível unicamente como produto da vigilância permanente, nós nos tornamos dependentes da vigilância permanente (…)”ZygmuntBauman. Vigilância Líquida: 1. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 99.

[2] Stefano Rodotà. Autorità GarantedellaPrivacy. Sicurezza e tutelladellaprivacy: Newsletter 17-23 de setembro. Roma, 2001

 

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