Perspetivas de mundo, conversa com Daniel Lima, curador de “Agora somos todxs Negrxs”

Por Marta Lança, no Buala

A questão racial tem sido uma disputa permanente no debate público brasileiro, conquistando mais espaço e posicionamentos articulados. São várias as exposições de artistas negros pelo país que inscrevem na sua obra, entre outras coisas, uma antiga história de opressão e de resistência com continuidades no presente. A reflexão e produção negra há muito tempo que vem questionando as estruturas de poder, no entanto, considera-se haver agora uma espécie de boom no circuito da arte contemporânea. Mas para quem? “Boom da arte negra é uma narrativa que só faz sentido da perspectiva normalizada pelo mundo branco”, diz a artista Jota Mombaça. Cúmplice das hierarquias da visualidade e das estruturas da branquitude, a arte brasileira terá forçosamente que rever os seus padrões. Daniel Lima, curador de Agora somos todxs negrxs, exposição integrada no 20º Festival Videobrasil, que decorre em São Paulo, explica a dimensão deste debate. 

Como pode a arte contribuir para desconstruir uma enraizada mentalidade racista?

Você não muda um país só na macropolítica, as transformações são também culturais e cultura não se elimina por decreto, tem de atingir o outro campo da existência. Não perceber isso é um grande erro das esquerdas. A abordagem artística fala do campo da subjetividade, da micropolítica e toca um espaço de construção que as leis não alcançam. A arte consegue alcançar estes dois campos: um procedimento ético de construção e pensa o modo de organizar essa narrativa. Pensar como a gente produz discurso é uma questão fundamental na descolonização das mentes. O padrão de legitimação do conhecimento talvez seja a principal amarra colonizadora, e mesmo quando você ocupa esse lugar, tem de aplicar a mesma voz com um padrão historicamente construído no qual não constam outras formas de falar, no sentido da expressão.

A exposição é um catalisador deste momento no Brasil?

O mais valioso é o fato deste país – que teve a maior escravidão – começar a discutir num plano cultural e intelectual e, sobretudo, em trama. Não se trata de um grupo de artistas, mas de uma rede que vem sendo criada em décadas de trabalho. Quando se coloca todos juntos é óbvia a coerência entre os trabalhos, por exemplo na questão performática do corpo e da violência, na leitura da História, com o triplo trauma da colonização: escravidão, extermínio indígena e perseguição religiosa, e a sua atualização nos dias de hoje. Refletem sobre o modo como a sociedade racista, com a qual a gente aprendeu a conviver, criou dispositivos para manter o seu funcionamento. Assim, os nossos trabalhos juntos criam uma espécie de anti-dispositivos de inferiorização, são máquinas de contra-ataque a esse mundo normatizado. O movimento de resistência está criando um mundo quando se opõe àquele que existe. A exposição é feliz nesse sentido.

Estas questões surgem noutras frentes, fora de uma programação específica das alteridades, ou são ainda consideradas “temáticas”?

Ninguém pergunta a um curador de uma Bienal, quando a exposição apresenta uma esmagadora maioria de artistas brancos: “você está tematizando a branquitude?”. Ninguém pergunta mas na verdade está sendo sim colocado o mundo branco como eixo curatorial mas isso não evidenciado nem problematizado. A ideia da perspectiva branca é tomada erroneamente como universal e, sendo a perspectiva do dominante, apresenta-se como absoluta e invisível. Mas esta perspectiva tem cara e só vai ser evidenciada quando contraposta a outra perspectiva diferente. Ou seja, temático seria se todas as exposições se chamassem “Sempre fomos todos brancos” e o que se diferencia disso é considerado temático. Mas não é, são perspetivas de mundo.

É preciso fugir da categoria de “artista negro”? 

Deparo-me com este problema mesmo com quem produz nesse contexto: ao dizer “sou um artista negro” parece que está se categorizando. Mas não, está abrindo uma perspetiva nova. O feminismo fê-lo na arte de um modo radical, não se chama temático às artistas que trabalham questões das mulheres porque construíram essa perspetiva. Nós não trabalhamos num campo restrito, antes adotamos uma visão de mundo que afinal significa uma nova maneira de representar o passado, o futuro e o presente. Como toda a perspectiva poética, abre muito mais do que fecha. E quando mudamos radicalmente essa perspectiva apontamos para a mudança do próprio conceito de arte.

Detalhe de ‘A ferida colonial ainda dói’, Jota Mombaça

Acho que este movimento está lutando para não ser engolido nem esmagado pelo movimento branco, que tem historicamente dominado de forma totalitária os circuitos de produção e reprodução de arte e pensamento. (Jota Mombaça)

Há mais consciência da questão racial no Brasil?

Pela primeira vez o Brasil se auto reconheceu como maioritariamente afrodescendente desde que no Censos temos uma maioria de pardos e negros. Antes, a ideia de embranquecimento estava muito espalhada e as pessoas não tinham autodeterminação na questão racial. O debate está em curso há muito tempo, mas hoje a consciência do dado racial coloca-nos com uma população maioritariamente negra, isso implica uma transformação do olhar institucional, na cultura e educação.

E na arte contemporânea?

Talvez a arte contemporânea seja a mais segregada de todas as instituições culturais, e tem de repensar como lida com as questões raciais no Brasil, em seus acervos, em suas equipes de trabalho, a própria função do museu, a própria ideia de instituição e a sua relação com a sociedade. É esse o esforço que por exemplo o Videobrasil se coloca ao nos convidar a fazer esta exposição.

Quando pegou no acervo do Videobrasil constatou que quase havia poucos artistas negros, mesmo entre os artistas africanos. Houve uma tentativa de colmatar esta ausência e colaborar na potência que se vem gerando?

O Videobrasil trabalha com o tema afrobrasileiro há muitos anos. Pode-se fazer a crítica ao facto do assunto, aí sim tematizado, ser produzido não a partir da perspetiva negra. A própria constituição da exposição criou uma intervenção institucional que desconhecia quão pequena era a participação negra. Serviu também para perceber os mecanismos dentro da arte contemporânea, que dá menos reconhecimento à questão identitária de quem produz e mais à questão temática: arte brasileira, arte indígena, arte negra… O modernismo criou essa ideia de que a arte está descolada do contexto e, como nómada, pode migrar para vários contextos e que se deve contemplar a obra e não o contexto no qual foi produzida. Hoje assistimos a um volte-face desse tipo de pensamento para: “tudo importa a partir da perspetiva que se está construindo”.

Há menos desigualdade no acesso ao circuito artístico?

Nas últimas décadas uma parte da população pôde aceder aos meios universitários. Ora, a arte contemporânea é um campo para iniciados, você tem de compreender os códigos, não basta produzir. Então, está intimamente ligada à formação universitária e o fato de nova geração de artistas negros estudarem em universidades públicas fez essa inserção mais expressiva.

A figura do artista-pesquisador é cada vez mais comum…

Um dos campos de batalha é o campo teórico. Uma característica desta geração é precisamente a vontade de colmatar o lapso da produção teórica. Então, a construção não só acontece na obra mas no discurso que a acompanha, pretende-se ocupar esse espaço e fornecer os elementos teóricos reconhecidos pela arte contemporânea. As reflexões que aparecem nos painéis da exposição são fragmentos de textos já publicados pelos artistas.

Pensando na discussão sobre o lugar de fala, estes artistas têm a sua experiência de vida muito inscrita na obra. Como se houvesse uma maior urgência em dizer certas coisas…  

Lá está a nossa tese: não precisamos de fazer o recorte temático sobre a questão negra, a temática negra está no trabalho em si. Como curador não preciso de fazer ligação entre um trabalho e outro, não estou propondo uma colagem de várias partes que formam um todo. Elas já saem conjugadas dentro da sua maneira de existir, dentro desta perspectiva.

Merci beaucoup blanco, de Musa Michelle Mattuizzi

Porque é tão recorrente trabalhar sobre o corpo negro?

O trabalho mais antigo da exposição é do Zózimo Bulbul e o mais recente é o da Musa Michelle Mattiuzzi, ambos têm o corpo diante da câmara. O trabalho de Luíz de Abreu desconstrói os estereótipos enfatizando-os. A mão do Moisés Patrício nos espaços da cidade. O corpo que faz travessias no trabalho de Paulo Nazareth. O corpo da multidão da torcida de futebol. A suspeição sobre o negro na cidade em Dalton Paula. Ou seja, o corpo está num lugar de afirmação sem ser estereotipado.

Qual o lugar do artista curador?

Não disputar esse campo do profissionalismo curatorial de “arranjador” de obras que muitas vezes beira o maneirismo da arte contemporânea. Há um lado autoral na catalização dessas forças, de fazer ver os discursos quando as obras estão juntas.

Sem sobrepor uma leitura característica de um certo autoritarismo da figura do curador.

A autoria está em fazer uma proposição suficientemente aguda para mostrar uma perspetiva de mundo.

Da emancipação negra do Haiti até à distopia do mundo, a precarização da vida e perda de direitos mais alargados para a humanidade. Como se relaciona a Constituição Haitiana de 1805com o devir-negro do mundo de Achille Mbembe?

O Haiti é a perfeita combinação de resistência, precarização e aliança global. “De agora em diante todos serão denominados genericamente negros”, dizia o artigo 14 da Constituição do Haiti, ou seja, um mundo que se alia a partir da figura do negro, aquele que foi mais coisificado, mais conotado como inferior, como mercadoria é o ponto de ligação entre todos nós numa luta anti-colonial. No Haiti houve a primeira libertação de escravos da América, foram os primeiros a construir realmente a ideia republicana. Os haitianos já anunciavam o que se vive hoje: uma unificação da precarização da vida em torno da negritude como existência destinada ao lugar da resistência.

Proteção extrema contra dor e sofrimento, de Rosana Paulino

E o X traz a dimensão de género à reflexão?

O X coloca a discussão na questão de género, na luta transgénero, opondo-se a um mundo branco e patriarcal.

Há também uma dimensão histórica sobre a exploração?

Heidegger fala de que a característica do trabalho moderno é a exploração da natureza. Mas antes de se inventar máquinas para explorar a natureza, o homem foi coisificado, transformado em mercadoria e em força de trabalho. Não é uma casualidade a Inglaterra ter sido o primeiro país a se industrializar e a lucrar mais com o comércio de escravos. Temos a falência do progresso social pela precarização geral, com a última tacada da globalização tornando os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. A nossa pirâmide social está cada vez mais afunilada.

A modernidade funda uma falsa universalidade dos direitos. Que ideia de igualdade restou?

Nunca existiu uma visão real de igualdade, o mundo republicano nunca foi para todo o mundo, apenas para uma parte do mundo. Nas Américas isso acontece de uma maneira radical, a própria implantação da república nesses países acontece de supetão e nunca encarando que a sua população é cidadã, uma parcela fica de fora da cidadania. O Estado sempre foi o principal descumpridor e ilegal no terceiro mundo. Sabendo que o Estado não dá conta de todos, acaba por demonizar uma parte da população para excluí-la de seus direitos.

 

E qual a posição do Brasil nesse mundo distópico?

O Brasil é a ponta de lança desse mundo neoliberal distópico. Alguns dados: é o país com mais assassinatos, tem a polícia que mais mata e mais morre no mundo, sobretudo no contexto de guerra contra as drogas, de encarceramento em massa e de extermínio em massa. Tem um poder judicial muito caro e poderoso: um juiz ganha muitíssimo mais do que na Alemanha, Portugal, EUA. A Universidade de Direito foi a primeira faculdade criada no Brasil, onde as famílias ricas punham os filhos, criando a sua própria elite para defender determinada interpretação das leis. A classe jurídica tem características particulares, por exemplo, não são eleitos em nenhuma esfera, só o supremo do tribunal é escolhido pelo presidente, todos os outros são eleitos pelos próprios juízes. Ou seja, é um eterno sistema de compadrios. O polícia goza de uma impunidade declarada, mata e não vai a julgamento, tem a conivência do jurídico.

Como se rompe o ciclo vicioso da manutenção da injustiça?

A luta ativista no campo racial passa pelo campo institucional onde se dão as manutenções da desigualdade mas também como disse anteriormente na micropolítica de anúncio de mundos possíveis.

Por um lado uma imagem de um país muito violento, por outro de um povo alegre e sempre otimista.

O Brasil é o país que toma mais antidepressivos, sobretudo em São Paulo. Também é um dos países que mais faz cesarianas e cirurgias plásticas, especificamente rinoplastias. Portanto nessa transformação do próprio corpo, querer mudar o traço fenótipo, transparece a ideia de não estar afinado com o que você é. É um grande resquício colonial, a incapacidade de aceitar as nossas culturas. Há um plano de falência total do projeto de ser europeu, de ser uma metrópole no sentido urbanístico, falência do Estado Social. Temos o maior Carnaval e futebol do mundo (mais vitorioso nas copas do mundo) ou seja, mantém-se a perceção da nação sendo a falência sublimada por estas redenções. Apesar de termos a maior biodiversidade do planeta, desde a época colonial, as plantations sempre foram avessas a biodiversidade, tanto das espécies da natureza como a diversidade social. Estabelece-se a cultura dominante (monocultura) e é isso. Ou seja, o Estado nunca foi para todos.

Mas há resultados das políticas afirmativas e da forte resistência.

Tivemos um movimento quilombola muito forte, de criar áreas inteiras de resistência negra e indígena. O mais conhecido, o Quilombo dos Palmares, lutou contra o império português, o maior exército da época, por mais de um século. A visão quilombola é o que encontramos em todos os transbordamentos sociais muito fortes que o Brasil tem. As recentes ocupações nas escolas, o arrastão nas praias cariocas, na lógica de “vamos ocupar uma parte que antes era apenas destinada a uma parcela da população”. Os rolezinhos, quando os jovens de periferia ocuparam shoppingcenters, também geraram uma nova mobilidade dos jovens.

A tomada da rua em 2013…

Tomar a rua em 2013 é simbólico como manifestação política, e inserido numa onda mundial. Mas o Arrastão do Rio de Janeiro é o marco de uma multidão empoderada, uma massa que ocupa um lugar que não era supostamente para estar. E até hoje vemos o mesmo o embate diante deste transbordamento: ou se considera legítimo ou se criminaliza. Então, tudo isso é uma continuidade dessa dimensão quilombola. Este processo de multidão empoderada e racializada que acontece no Brasil nas últimas décadas vai ser fundamental para transformar o país. Os sistemas políticos têm dificuldade em encarar isso. E a esquerda partidária brasileira sempre teve o viés marxista de não olhar para a questão racial como fundante no mundo colonizado, e não o conflito de classe, e sempre vai ignorar esse fenómeno que constrói a dimensão quilombola.

O samba do crioulo doidi, por Luiz de Abreu

AGORA SOMOS TODXS NEGRXS 

Sim, agora somos todxs negrxs! Artigo 14 da Constituição Haitiana de 1805, escrita a partir da única rebelião negra a tomar o poder na América, aponta para uma situação política em que lutamos pela expressão de uma voz historicamente silenciada. Aqui, essa voz canta a luta do quilombo urbano a atravessar todxs que foram e são excluídxs pelos poderes hegemônicos.

Não, agora não somos todxs negrxs! As instituições entenderam agora que os traumas da colonização existem? Entenderam agora a falácia do discurso da democracia racial? Não! Não somos todxs negrxs! Nós, negrxs, continuamos a viver como alvo de violência, silenciamento e exclusão. Não, não somos todxs negrxs. Esta é uma luta contínua por sobrevivência em que precisamos reconhecer as especificidades de uma trajetória afro-americana.

Sim, agora somos todxs negrxs! Poderíamos dizer que, na história da arte contemporânea brasileira, quase todas as exposições tacitamente se autonomearam “Sempre fomos todos brancos” — porque a presença negra no ambiente de arte contemporânea aqui sempre foi uma exceção. A exposição AGORA SOMOS TODXS NEGRXS? reúne parte da nova geração de artistas visuais negrxs brasileirxs. Uma geração marcada pelo amadurecimento da discussão sobre as questões raciais no Brasil e na América, e também pelo cruzamento com discussões sobre identidade de gênero e transgêneras.

Não, agora não somos todxs negrxs! Uma arte contemporânea produzida a partir da perspectiva da negritude que desafia as perspectivas de descolonização da América. Uma geração que se propõe a desconstrução do tríplice trauma da colonização (extermínio das populações nativas, escravidão e perseguição religiosa) por meio do poder micropolítico da arte, ao desabrigar estereótipos numa batalha por forças da vida contra forças de extermínio. Uma disputa para reconstruir nossa história e nosso mundo do nosso jeito.

X como atualização. X como afirmação histórica do não capturável. X como trama.

Daniel Lima

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Da série ‘Aceita?’, de Moisés Patrício

Destaque: Bandeiras, Frente 3 de Fevereiro

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