Negros na cidade de São Paulo: presença invisível ou incômoda?

No blog da Raquel Rolnik

A sociologia urbana no Brasil historicamente trata da questão da segregação socioespacial, mas, com frequência, não considera sua dimensão racial. Ao afirmar que em nosso país não existem guetos, como nos Estados Unidos, deixa de apontar a presença negra em nosso território, tanto no que diz respeito às afrobrasilianidades presentes em nossa vida urbana, quanto em relação às dimensões mais cruas do nosso racismo: a segregação racial que marca a formação e o desenvolvimento de nossas cidades.

Em um dos capítulos do meu novo livro, Territórios em conflito: São Paulo, história e política, lançado pela Editora 3 Estrelas, conto a história de uma São Paulo com forte presença negra, do final do século 19, quando cerca de um terço dos seus moradores era preto ou pardo. Depois, no início do século 20, a cidade embranqueceu com a chegada massiva de imigrantes europeus, mas voltou a se enegrecer a partir dos anos 1940 e 1950, com a intensa migração proveniente do interior do próprio estado e também de Minas Gerais e do Nordeste.

Nos anos 1980, a quantidade de negros em São Paulo era equivalente a 23% do total. Mas esse dado revela pouco sobre a questão: embora na cidade como um todo a proporção de negros fosse inferior a um quarto da população, essa presença jamais foi uniformemente distribuída. Por exemplo, há 30 anos, na Brasilândia, na Zona Norte, 49% da população era formada por pessoas pretas ou pardas. Naquela época, esse distrito era considerado a África paulistana. (Clique e assista documentário sobre o assnto).

A forte presença negra naquela localidade não era arbitrária: um eixo de expansão além-Tietê, com início na Casa Verde/Limão, se expandiu na direção dos morros periféricos, conformando uma rede de lugares de cultura, religião e socialização afro-brasileiras. Se, de um lado, isso marca a existência de um território negro, marca também a ausência dessas pessoas em outros bairros da cidade, numa clara segregação étnico-racial.

Nos últimos 30 anos, essa segregação se intensificou ainda mais. Segundo o último censo, realizado em 2010, 37% da população da cidade é negra. Ou seja, houve um aumento da população que se autodeclara preta ou parda, ao mesmo tempo em que a desigualdade em relação à presença negra por distrito também se agravou. De acordo com o mesmo censo, atualmente, 50% dos moradores da Brasilândia são negros.

Considerando todos os distritos, porém, a Brasilândia ocupa apenas a 14ª posição na escala que mede a presença negra no território, agora liderada pelo Jardim Ângela, com 60% de população afro-descendente, seguido pelo Grajaú (56,8%). Esses bairros se localizam na periferia da Zona Sul, mas os negros são  mais de 50% em todas as periferias da cidade, especialmente na Zona Norte e Leste. Por outro lado, em Moema, um dos bairros nobres da cidade, a presença negra não chega a 6%, proporção muito próxima às do Itaim Bibi e do Alto de Pinheiros.

As diferenças entre estes bairros são conhecidas: são predominantemente brancos os bairros servidos de urbanidade, enquanto são majoritariamente negros aqueles autoproduzidos por seus próprios habitantes e que recebem investimentos governamentais em menor quantidade e de pior qualidade.

Neste  Mês da Consciência Negra, falar sobre segregação étnico-racial na cidade é não apenas apontar para uma das faces da pobreza ou e da exclusão, mas reconhecer uma presença constantemente invisibilizada e certamente incômoda para uma sociedade tão racista como a nossa, que não admite que se fale em racismo como um dos componentes centrais de nossas desigualdades socioterritoriais.

Também falei sobre esse assunto na minha coluna desta quinta-feira (16) na Rádio USP. Ouça aqui.

Foto: Anna Carolina Vieira Santos/ Flickr.

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