Hidrelétrica de São Manoel. Um empreendimento construído à revelia da lei. Entrevista especial com integrantes do Fórum Teles Pires

Patricia Fachin – IHU On-Line

A recomendação do Ministério Público Federal de Mato Grosso – MPF/MT ao Ibama para invalidar a Licença de Operação – LO da Usina Hidrelétrica de São Manoel, uma das seis que fazem parte do Complexo Teles Pires, é “mais um exemplo do trabalho comprometido do Ministério Público Federal junto aos povos indígenas e outras populações tradicionais da região, conferindo efetividade ao seu dever institucional previsto no artigo 129 da CF”, dizem os membros do Fórum Teles Pires à IHU On-Line. Segundo eles, “tecnicamente não há dúvida que a LO de São Manoel deve ser invalidada pelo Ibama, pois existem inúmeras irregularidades, detectadas pelas próprias equipes técnicas do Ibama e da Funai, que demonstraram que não havia qualquer condição para a licença ser emitida”.

Apesar de os pareceres técnicos evidenciarem as irregularidades da hidrelétrica de São Manoel, os integrantes do Fórum Teles Pires afirmam que “as autoridades políticas do Ibama e da Funai simplesmente desconsideraram os pareceres de suas equipes técnicas na hora de decidir acerca da emissão sobre a Licença de Operação de São Manoel, certamente sob forte pressão do Ministério de Minas e Energia – MME e dos empreendedores Furnas, EDP e a chinesa CTGC (Três Gargantas)”.

O não cumprimento das condicionantes estabelecidas para a construção da hidrelétrica também é razão suficiente para suspender a licença de operação da hidrelétrica. “Passaram-se quatro anos desde a emissão da primeira licença e ainda não foram cumpridas todas as condicionantes, ou seja, o MPF, a Funai e o Ibama têm evidências suficientes para o cancelamento desta LO”, relatam. Na avaliação deles, a hidrelétrica de São Manoel repete as mesmas irregularidades já constatadas em outros empreendimentos como Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, “que têm sido construídos à revelia das leis, num estado de exceção, e claramente motivados por esquemas de corrupção financiados com dinheiro público, como as investigações da Operação Lava Jato comprovam, de forma contundente”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, os membros do Fórum Teles Pires comentam as implicações dessa hidrelétrica para o meio ambiente e para as comunidades indígenas e o projeto de lei que propõe o fim do licenciamento ambiental para empreendimentos desse tipo. Sobre isso, eles são enfáticos: “As decisões dos processos de licenciamento ambiental no Brasil, quando se trata de empreendimentos hidrelétricos, que é a agenda que acompanhamos, são decisões políticas. Nem conhecimento técnico, nem mesmo denúncias de irregularidades dos impactos subdimensionados, nada afeta o trator do licenciamento”.

O Fórum Teles Pires – FTP é uma rede coletiva que atua desde 2010 na defesa dos direitos dos atingidos e ameaçados por hidrelétricas e outros grandes empreendimentos no rio Teles Pires. O Fórum agrega movimentos nacionais, como o Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, organizações locais representativas dos assentados da reforma agrária, povos indígenas, ribeirinhos e pescadores, entidades parceiras da sociedade civil, como a Comissão Pastoral da Terra – CPT, o Instituto Centro de Vida – ICV, o Centro Popular do Audiovisual – CPA e a International Rivers – Brasil – IR, além de pesquisadores vinculados a instituições públicas de pesquisa e ensino, como a Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, a Universidade do Estado do Mato Grosso – Unemat, a Universidade Estadual de São Paulo – UNESP e pesquisadores autônomos. Confira o Medium do Fórum Teles Pires.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como vocês receberam a notícia de que o MPF/MT expediu Recomendação ao Ibama, solicitando que invalide a Licença de Operação concedida em favor da Empresa de Energia São Manoel – EESM para o empreendimento da Usina Hidrelétrica de São Manoel?

Fórum Teles Pires – Acreditamos que seja um caminho fundamental a responsabilização de órgãos governamentais e empresas privadas por violações dos direitos indígenas e da legislação ambiental, cometidas no planejamento e licenciamento de hidrelétricas no rio Teles Pires e outros lugares na Amazônia. Enxergamos a Recomendação como mais um exemplo do trabalho comprometido do Ministério Público Federal junto aos povos indígenas e outras populações tradicionais da região, conferindo efetividade ao seu dever institucional previsto no artigo 129 da Constituição Federal.

MPF já ajuizou nada menos que sete Ações Civis Públicas – ACPs sobre diversas ilegalidades no licenciamento da hidrelétrica de São Manoel, inclusive uma iniciada em setembro de 2013 — antes da concessão da Licença Prévia pelo Ibama — sobre a falta de consulta prévia junto aos povos indígenas do rio Teles Pires. Outras ações do MPF apontaram graves falhas nos estudos de impacto ambiental — inclusive sobre impactos cumulativos de São Manoel com três barragens a montante no Teles Pires —, riscos para populações indígenas isoladas e descumprimento de condicionantes de licenças ambientais já concedidas pelo Ibama, entre outras ilegalidades.

Em todos esses casos, foi utilizada a manobra conhecida como Suspensão de Segurança, artefato da ditadura militar, que permite que decisões judiciais sejam inviabilizadas unilateralmente por presidentes de tribunais, a pedido do governo, invocando uma suposta ameaça à “ordem social e econômica” do país, algo que nunca é explicitado. A mesma manobra foi utilizada para suspender ações do Ministério Público Federal sobre ilegalidades da Usina Hidrelétrica – UHE Teles Pires, que fica logo rio acima da barragem de São Manoel [1].

Recomendação do MPF sobre a Licença de Operação – LO de São Manoelreflete também o trabalho de longo prazo do Fórum Teles Pires, que conta com a participação de povos indígenas e outras populações diretamente atingidas pelos empreendimentos hidrelétricos instalados no rio Teles Pires (UHE SinopUHE ColíderUHE Teles PiresUHE São Manoel). O Fórum tem denunciado repetidas falhas nos processos de planejamento, licenciamento e implantação de grandes empreendimentos no rio Teles Pires e suas graves consequências socioambientais. Por exemplo, um dos documentos citados na Recomendação contra a LO de São Manoel é o dossiê “Barragens e Povos Indígenas no Rio Teles Pires: Características e Consequências de Atropelos no Planejamento, Licenciamento e Implantação das UHEs Teles Pires e São Manoel”, que lançamos em junho deste ano e que trata de violações de direitos indígenas relacionados à destruição de lugares sagrados e do comprometimento da qualidade da água, da integridade de ecossistemas de água doce, dos peixes e das atividades de pesca, que são a base de subsistência dos povos indígenas do rio Teles Pires.

IHU On-Line – Quais são as chances de a Licença de Operação ser invalidada?

Fórum Teles Pires – Tecnicamente não há dúvida que a LO de São Manoel deve ser invalidada pelo Ibama, pois existem inúmeras irregularidades detectadas pelas próprias equipes técnicas do Ibama e da Funai, que demonstraram que não havia qualquer condição para a licença ser emitida. O parecer técnico do Ibama nº 93 de 25/8/2017, com mais de 100 páginas, concluiu que havia tantos problemas com a falta de mitigação de impactos existentes das barragens, provocados pelas UHEs Teles Pires e São Manoel, sem falar das outras barragens rio acima, e incertezas sobre as consequências do fechamento da barragem de São Manoel, que não havia sequer como falar em quais devem ser as condicionantes de uma Licença de Operação. O parecer técnico da Funai (Informação técnica da Funai nº 89 de 1/8/2017) concluiu pela inconformidade do processo de licenciamento, demonstrando como as obras da barragem têm avançado de forma acelerada, enquanto medidas efetivas de mitigação e compensação de impactos sobre os povos indígenas e seus territórios não têm sido minimamente implementadas.

Os pareceres técnicos do Ibama e da Funai corroboraram análises apresentadas no dossiê do Fórum Teles Pires, cuja elaboração contou com a participação de cientistas independentes. Os argumentos dos pareceres técnicos são semelhantes, destacando o não cumprimento de condicionantes das licenças anteriores (Licença Prévia – LP, emitida em 12/12/2013; e Licença de Instalação – LI, emitida em 14/8/2014), inclusive o não cumprimento de programas previstos no Projeto Básico Ambiental – Componente Indígena – PBA-CI. E ambos chegaram à mesma conclusão, de que não havia condições para ser emitida a Licença de Operação para São Manoel.

Acontece que autoridades políticas do Ibama e da Funai simplesmente desconsideraram os pareceres de suas equipes técnicas na hora de decidir acerca da emissão sobre a Licença de Operação de São Manoel, certamente sob forte pressão do Ministério de Minas e Energia – MME e dos empreendedores FurnasEDP e a chinesa CTGC (Três Gargantas).

Condicionantes

Segundo a Funai, entre as seis condicionantes da Licença de Instalaçãorelacionadas a povos indígenas, apenas duas foram atendidas; as demais foram classificadas, de forma ambígua, como “parcialmente atendidas”. Nenhuma condicionante cumpriu com o prazo estabelecido, e apenas os programas de comunicação social e ‘apresentação de equipe gestora’, previstos no PBA-CI, foram cumpridos no tempo determinado. Passaram-se quatro anos desde a emissão da primeira licença e ainda não foram cumpridas todas as condicionantes, ou seja, o MPF, a Funai e o Ibama têm evidências suficientes para o cancelamento desta LO.

Assim que foi tomada a decisão política pela Presidência do Ibama de emitir a Licença de Operação para São Manoel, o Fórum Teles Pires soltou a matéria intitulada: “Os 13 Porquês de São Manoel”. Na mesma época, houve uma série de manifestações dos povos indígenas do Teles Pires, especialmente dos Munduruku e Apiaká, contra a Licença de Operação, que contrariou acordos feitos com os indígenas desde a época da ocupação dos canteiros da usina em julho passado. Assim, esperamos que a Presidente do Ibama reconsidere a sua decisão sobre a LO de São Manoel, acatando a Recomendação do MPF de revogá-la.

De forma mais geral, esperamos que os órgãos ambientais e juízes levem em consideração a gravidade das consequências socioambientais de empreendimentos como Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, Teles Pires e São Manoel, que têm sido construídas à revelia das leis, num estado de exceção, e claramente motivados por esquemas de corrupção financiados com dinheiro público, como as investigações da Operação Lava Jato comprovam, de forma contundente.

Se tudo continuar no mesmo rumo, os conflitos entre impactados e empreendedores certamente vão aumentar, e a conta dos prejuízos socioambientais fica sempre para o lado mais fraco da corda.

IHU On-Line – Que aspectos do Projeto Básico Ambiental – Componente Indígena – PBA-CI e do licenciamento ambiental não foram realizados?

Fórum Teles Pires – O parecer da Funai é categórico quanto às inconformidades do PBA-CI. Consta, neste parecer, que a primeira versão do PBA-CI, seis meses após a emissão da Licença Prévia – LP, foi construída em escritório; portanto, sem cumprir a condicionante elencada pelo componente indígena da LP — de ser construído de forma participativa com os povos indígenas atingidos. E, ainda, que o PBA-CI foi réplica do PBA-CI da UHE Teles Pires, demonstrando a falta de seriedade e cuidado do empreendedor para com o componente indígena.

A própria Funai aponta que, durante esses quatro anos, apenas dois programas, de um total de 12, foram satisfatoriamente cumpridos. As manifestações de mudança no Projeto Básico Ambiental Indígena – PBAI só foram satisfatórias na 4º versão do PBA-CI. Como o PBA-CI não está pronto, a Funai não poderia “assinar o termo de compromisso com a EESM para a execução das atividades do PBA-CI”.

IHU On-Line – O MP alega ainda que a Empresa Energia São Manoel também não cumpriu com sua obrigação solidária de compensação e mitigação dos impactos socioambientais causados pela UHE Teles Pires. O que estava previsto nesse sentido?

Fórum Teles Pires – Uma vez que as duas usinas, UHE Teles Pires e UHE São Manoel, estão a 40km de distância, e afetam os mesmos povos indígenas (etnias Kayabi, Munduruku e Apiakás), a Funai sugeriu a interligação entre o processo de licenciamento destas duas usinas. Seguindo este caminho, muitas das atividades previstas no PBA-CI da Teles Pires estão previstas também no PBA-CI da São Manoel, com o intuito de dar continuidade ao processo de mitigação e compensação dos impactos destas usinas. No entanto, o processo de licenciamento e o próprio Projeto Básico Ambiental-Componente Indígena da Teles Pires passa pelos mesmos problemas do PBA-CI da São Manoel, como o desrespeito ao direito de consulta e consentimento livre, prévio e informado, o não cumprimento de programas e a ausência de medidas de compensação ou mitigação dos impactos, como apresentado nos relatos dos povos atingidos e nas manifestações pacíficas do povo em julho e outubro de 2017. Contudo, essa proximidade e similaridade entre as atividades desses empreendimentos prejudica o monitoramento e acompanhamento, por parte das comunidades, do cumprimento das atividades. E tanto para a usina Teles Pires quanto para a São Manoel é interessante a não distinção entre suas atividades.

Obrigação solidária

Quando o MPF afirma que a EESM não cumpriu com a obrigação solidária de compensação e mitigação dos impactos socioambientais causados pela UHE Teles Pires, ele está dizendo que: (1) ambas estão no mesmo rio (40km de distância), (2) ambas são responsáveis pelos impactos socioambientais gerados neste mesmo rio e para as mesmas populações, (3) uma vez que a UHE São Manoel se beneficia com um PBAI complementar, é também obrigada a mitigar e compensar os impactos produzidos pela UHE Teles Pires. Com esta medida, o MPF busca fazer respeitar o direito dos povos atingidos à manutenção de sua forma própria de vida, o que passa por sua soberania alimentar, pois as usinas afetam diretamente a disponibilidade de recursos naturais (pesca, caça, água etc.) essenciais para os usos e modos de vida tradicionais dos povos indígenas.

Em julho passado, foi realizada uma reunião na Procuradoria Geral da República em Brasília, com representantes dos povos indígenas do Teles PiresIbama e Funai, para tratar das reivindicações do dossiê do Fórum Teles Pires. Um dos encaminhamentos da reunião trata da necessidade de monitoramento independente dos impactos das quatro barragens no rio Teles Pires, envolvendo o MPF e universidades públicas, povos indígenas e outras populações locais. O MPF ficou de estudar, junto com os procuradores do Ibama, como se poderia colocar essa exigência de monitoramento independente, custeado pelas empresas, dentro das condicionantes das licenças ambientais.

IHU On-Line – Quais diria que são os impactos causados pela Usina São Manoel na bacia hidrográfica de São Manoel?

Fórum Teles Pires – São muitos os impactos sinérgicos, pois São Manoel é a usina mais a jusante de uma sequência de quatro no rio Teles Pires. Existem os impactos diretamente mensuráveis relacionados à diminuição da disponibilidade hídrica e da qualidade da água, como também a redução do recurso pesqueiro. Existem os impactos ecossistêmicos, relacionadas aos distúrbios da homeostase ecossistêmica, ou seja, empreendimentos como estes causam danos não apenas momentâneos aos recursos naturais, mas também problemas sistêmicos, que afetam a estrutura ecossistêmica. Além dos impactos a recursos intangíveis, como a estrutura social dos povos indígenas afetados, o impacto cultural, como a perda de lugares sagrados, como as Sete Quedas(Karobixexe) e o morro dos Macacos (Dekoka’a), para o povo Munduruku.

IHU On-Line – Qual é a atual situação da hidrelétrica de São Manoel neste momento?

Fórum Teles Pires – Antes da liberação dalicença de operação, a EESM estava fazendo testes de enchimento do reservatório, sem nem mesmo avisar os povos que vivem a jusante. De repente eles (os povos) viam a vazão do rio Teles Pires baixar drasticamente, e logo ligaram os pontos. A usina enviou um comunicado e afixou uma faixa na cidade de Alta Floresta, indicando que entre agosto e outubro deste ano encheria o reservatório, isso mesmo antes de ter recebido a aprovação da LO. Este fato foi alvo também de uma recomendação do MPF, como também foi documentado pelo FTP.

Trata-se de um fato curioso, para dizer o mínimo. Como uma usina, licenciada por órgão federal, anuncia o enchimento do reservatório sem nem mesmo ter recebido a LO? Retrata o completo descaso e descompromisso com a legalidade dos processos de licenciamento e completo desrespeito aos direitos humanos e socioambientais.

O que aconteceu? Como já relatamos, mesmo frente aos pareceres técnicos contrários do Ibama e da Funai, a presidente Suely Araújo assinou, no dia 5 de setembro de 2017, a licença de operação para a usina de São Manoel.

Recebemos notícias informais de que o enchimento do reservatório da São Manoel já está bastante avançado, mas esta informação precisa ser verificada in loco e tomadas as providências, no caso de novas irregularidades.

IHU On-Line – Quais vocês destacariam como sendo os pontos mais importantes a serem comentados, quando se trata de avaliar o desenvolvimento da hidrelétrica de São Manoel?

Fórum Teles Pires – Em primeiro lugar, como o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado nunca foi observado no processo de planejamento e licenciamento desta e das demais obras, as demais etapas do processo estão viciadas pela ilegalidade. Além desse vício, as obras se arrastaram com outras ilegalidades, vistas pelo descumprimento constante das condicionantes para a emissão de licenças. O mais grave é ver que esses vícios de legalidade já estão causando sérios impactos aos povos indígenas que dependem de seus territórios e dos rios saudáveis para também poderem viver com saúde e poderem manter seus modos tradicionais de vida. Os peixes e animais, base da alimentação desses povos, estão acabando e estão doentes. As águas dos rios estão poluídas e causando doenças. Destruíram locais sagrados desses povos, trazendo abalos irreversíveis a sua cultura. A insensibilidade para esses fatos por parte do poder público e dos empreendedores demonstra que o valor da vida humana e do equilíbrio ambiental são pouco considerados nesta conta, com a balança pendente para interesses privados.

IHU On-Line – Hoje há uma série de projetos de lei que sugerem a flexibilização na lei de licenciamento ambiental, porque há uma crítica de que as exigências do licenciamento ambiental atrapalham o desenvolvimento de uma série de empreendimentos no país. Como vocês avaliam esse tipo de proposta e argumentação? Ainda nesse sentido, o que seria uma lei de licenciamento ambiental adequada?

Fórum Teles Pires – As decisões dos processos de licenciamento ambiental no Brasil, quando se trata de empreendimentos hidrelétricos, que é a agenda que acompanhamos, são decisões políticas. Nem conhecimento técnico, nem mesmo denúncias de irregularidades dos impactos subdimensionados, nada afeta o trator do licenciamento. Quando falamos em licenciamento “flex”, esta é uma realidade que já ocorre na prática, pela inobservância à legislação vigente. Então os projetos legislativos apenas estão vindo para legitimar o já irresponsável, mas corriqueiro descaso com os impactos sociais e ambientais dos empreendimentos hidrelétricos, hoje ocorrendo na ilegalidade. As regras do processo de licenciamento não estão sendo cumpridas, o que predomina é a articulação e o lobby das grandes empreiteiras, como vimos nos escândalos de corrupção.

O cenário de desmonte da legislação ambiental vem, como todos sabem, para legalizar irregularidades que já estão há muito tempo acontecendo. O licenciamento é apenas a ponta do iceberg, os processos de construção de grandes empreendimentos precisam ser modificados desde sua origem, no momento de planejamento. O planejamento segue a lógica muito distante da realidade dos territórios em que estes empreendimentos serão instalados. Como planejar o que irá acontecer, por exemplo, no Rio Teles Pires sem conhecer as particularidades locais?

Um licenciamento ambiental adequado deve observar os processos de participação das comunidades atingidas, desde o processo de planejamento até a implementação, mas processos de participação de fato, não protocolares, como vemos acontecer nas audiências públicas dos empreendimentos hidrelétricos. Tendo isso em vista, os processos de construção de empreendimentos deste tipo passariam a considerar as particularidades e necessidades locais de desenvolvimento. Já há normativas nacionais e internacionais que vinculam os empreendimentos a contemplarem essa participação, o que falta é parar de vez com o desrespeito a esses direitos já conquistados com base em muita luta social e conferir-lhes efetividade. O território amazônico precisa deixar de ser visto como fonte de riqueza a ser explorada para manter os níveis de desenvolvimento econômico do país, e sim ser compreendido como organismo vivo que é, e discutido com as pessoas que lá vivem seus próprios projetos de desenvolvimento. Sabemos que é necessária muita mobilização e articulação política para conseguir avanços neste sentido.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Fórum Teles Pires – Queremos um ponto final neste modus operandi de planejamento e licenciamento de UHEs na Amazônia. Não é possível o Brasil seguir instalando infraestrutura na Amazônia na base de violações de direitos, conflitos socioambientais e injustiças. Queremos uma infraestrutura que promova a inclusão e o desenvolvimento dos que sempre viveram aqui, garantindo qualidade de vida. Uma infraestrutura para os que vivem da Amazônia, e não o atual modelo centralizado de planejamento que trabalha de forma autoritária e cega com a ótica de Infraestrutura na Amazônia.

Nota:

[1] Veja, por exemplo, o relato sobre a UHE Teles Pires no relatório produzido por entidades da sociedade civil para audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre a Suspensão de Segurança. (Nota dos entrevistados).

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