A política do comum e do protótipo. Duas alternativas ao mal-estar contemporâneo. Entrevista especial com Henrique Parra

Patricia Fachin – IHU On-Line

O mal-estar do sistema político, sentido em diversos países, é consequência do “modo de existência contemporâneo”, que “é dependente de grandes arranjos sócio-técnicos cuja possibilidade de governo nos escapa”, especialmente em áreas que são fundamentais, como a produção de energia, o abastecimento de água, o sistema de saúde, o sistema financeiro, diz o sociólogo Henrique Parra à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.

Outros fatores que geram esse mal-estar, diz, são a “corporatização e financeirização do Estado”, que é um “vetor de subordinação da política e erosão da dimensão pública e comum das instituições democráticas aos imperativos das finanças internacionais e ao controle das grandes corporações”, e o fato de que as “nossas instituições se tornaram incapazes de produzir canais de mediação e tradução dos conflitos complexos que temos”.

Para superar a crise do sistema político, sugere, “precisamos experimentar e inventar formas de governo à altura dos problemas que temos diante de nós”. Como alternativa, o sociólogo aposta em um modelo político que seja fundamentado numa “política do comum” e numa “política do protótipo”. O comum, explica, “oferece uma ética e uma prática que se contrapõem à expansão do modo de existência neoliberal. Onde a ordem neoliberal diz: mais competição, o comum é cooperação; mais independência, o comum é interdependência; mais autorregulação do mercado, o comum é o autogoverno pelos cidadãos; mais propriedade exclusiva, o comum reivindica mais bens comuns de posse e uso coletivo; onde o neoliberalismo diz mais investimento de si, o comum é cuidado e corresponsabilidade…”.

Nesse sentido, explicita, o comum, “como relação, é o ‘entre’, é aquilo que produzimos entre todos, o que é de todos e ao mesmo tempo não é de ninguém. É outro regime de participação e de partilha. O comum é parte da produção e sustentação da vida (a linguagem, o cuidado, mas também o ar, a água, o conhecimento…)”. A atual dificuldade acerca de uma política do comum, diz, é como torná-la institucional. “Agora, outro problema é como a ‘política do comum’ se traduz em termos institucionais. Neste sentido, se tomarmos os exemplos acima, a política do comum pode se manifestar como a luta para inscrever nas instituições existentes os marcos regulatórios e protetivos deste comum ameaçado. Mas, o que são as ‘instituições do comum’, é um ótimo problema teórico e político que estamos todos investigando”.

Parra também tem trabalhado com a noção de “protótipo”, a partir de suas recentes pesquisas junto aos “laboratórios cidadãos”, que atuam na Espanha. Partindo dessa ideia, avalia, seria possível buscar uma alternativa à crise política e um outro tipo de participação social, baseada em processos e não mais em ações reivindicativas que seguem um único modelo. “Os ativistas de movimentos e centros sociais a partir de um certo momento (seria interessante investigar essa genealogia) passam a falar de suas ações em termos de ‘hipóteses’. Ao invés de afirmar um grande plano estratégico, eles lançam hipóteses (hipótese 15M, hipótese ocupa…), as quais precisam ser examinadas, investigadas na prática. Muitas vezes, a maneira de verificar, testar essa hipótese é através de um protótipo. Ou seja, em vez de uma ação apenas reivindicativa, os movimentos passam a criar protótipos de soluções para os problemas que querem denunciar. No caso das iniciativas dos laboratórios cidadãos, a noção de protótipo tem outro contorno. O foco está mais no processo do que no resultado; o protótipo está mais orientado para a aprendizagem e para a produção de comunidades. Em certo sentido isso também acontece nos coletivos ativistas, porém neste último o protótipo tem um caráter mais instrumental, pois será desenvolvido visando um determinado impacto”.

Na entrevista a seguir, Henrique Parra também comenta a atual situação política da Catalunha e o seu processo separatista da Espanha. “Até agora, quem está colhendo os melhores resultados na Catalunha, mas principalmente no governo Espanhol, são os partidos e grupos mais conservadores. As inovações políticas do ciclo 15M e suas novas institucionalidades experimentadas (iniciativas municipalistas, redes de participação local e direta, as confluências…) são, a meu ver, o principal alvo de ataque deste conflito”, resume.

Henrique Z. Parra é graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Sociologia pela mesma universidade e doutor em Educação pela Universidade de Campinas – Unicamp. É professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp e atualmente realiza pós-doutorado no Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, no Rio de Janeiro, e no Instituto de História do Conselho Superior de Investigações Científicas – CSIC, em Madrid, Espanha [1].

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Hoje fala-se muito, em todas as partes do mundo, da crise política. Como você compreende essa crise? Quais diria que são as razões da atual crise política que se manifesta em vários países?

Henrique Parra – O atual sistema político está fazendo água por todos os lados. Sentimos este mal-estar em diversos países. Dentre os vetores desta crise destacaria:

1) Nosso modo de existência contemporâneo é dependente de grandes arranjos sócio-técnicos cuja possibilidade de governo nos escapa (produção de energia, abastecimento de água, sistemas de saúde, finanças, produção científica e tecnológica etc). São grandes máquinas que atravessam desde os mínimos detalhes da vida cotidiana e que se conectam com dinâmicas transnacionais. Como democratizar aquilo que se apresenta como infraestrutura da nossa existência?

2) Corporatização e financeirização do Estado é outro vetor de subordinação da política e erosão da dimensão pública e comum das instituições democráticas aos imperativos das finanças internacionais e ao controle das grandes corporações. Como desprivatizar o público e submetê-lo ao autogoverno dos cidadãos?

3) Nossas instituições tornaram-se incapazes de produzir canais de mediação e tradução dos conflitos complexos que temos; há sérios problemas de participação e deliberação. Diante da multiplicidade das forças em jogo, o modelo atual de governo opera pela extrema redução a conflitos binários que só favorecem quem controla o tabuleiro, esvaziando ainda mais o campo da política.

Em alguns lugares observamos, ainda que de forma pontual, experimentos interessantes de inovação institucional: democracia por sorteio, mecanismos de democracia direta, jurados cidadãos para controvérsias de grande impacto social, processos legislativos abertos e colaborativos, entre outros. Precisamos experimentar e inventar formas de governo à altura dos problemas que temos diante de nós.

IHU On-Line – Como você percebe a crise política desde Madrid, onde reside atualmente? Pode nos falar um pouco sobre a atual situação política no país, especialmente sobre o processo de independência da Catalunha? Quais diria que são as vantagens e as desvantagens da separação?

Henrique Parra – Estamos diante de um desastre. Até agora, quem está colhendo os melhores resultados na Catalunha, mas principalmente no governo Espanhol, são os partidos e grupos mais conservadores. As inovações políticas do ciclo 15M e suas novas institucionalidades experimentadas (iniciativas municipalistas, redes de participação local e direta, as confluências…) são, a meu ver, o principal alvo de ataque deste conflito. Seja pelo independentismo de alguns setores da Catalunha, seja pelo nacionalismo mobilizado pelo governo Espanhol, vemos como a imagem da soberania se transforma numa armadilha para a experiência política que emergia do 15M. O mundo atual exige que pensemos em termos de interdependência, como vamos viver juntos? Como fazer para que a experimentação municipalista e as formas de participação popular abram outros horizontes de governo e democracia no interior e para além do estado nacional, sem reproduzirmos a forma-Estado noutras escalas?

IHU On-Line – Especificamente na Catalunha, parte da população é favorável à separação, mas parte não. Como, por via da política, seria possível resolver esse tipo de conflito?

Henrique Parra – Com Política, ou seja, enfrentando a questão de como vamos coletivamente decidir sobre os assuntos que dizem respeito a todas e todos que habitam um mundo comum. As nações, já sabemos, são sempre imaginadas e fabricadas. O crescimento do independentismo Catalão e o fortalecimento do nacionalismo Espanhol são simétricos neste percurso recente. Neste conflito, o esforço de produzir maiorias submetidas ao cálculo de governo sob uma lógica eleitoral cria, na realidade, grandes minorias excluídas. Os mecanismos identitários se fortalecem, a base conservadora se expande com maior velocidade e o conflito social se dicotomiza. A lógica amigo-inimigo destrói o tecido social e esvazia a possibilidade de construção política. Neste cenário, quem tem levado a melhor são os setores mais reacionários, em toda parte. Esta fórmula é explosiva, por isso estamos à beira do abismo.

IHU On-Line – Em suas análises sobre política, você recorre com frequência ao conceito de “comum”. Por que esse conceito é importante na análise política e que autores são referência para você pensar sobre o comum?

Henrique Parra – O comum oferece uma ética e uma prática que se contrapõem à expansão do modo de existência neoliberal. Onde a ordem neoliberal diz: mais competição, o comum é cooperação; mais independência, o comum é interdependência; mais autorregulação do mercado, o comum é o autogoverno pelos cidadãos; mais propriedade exclusiva, o comum reivindica mais bens comuns de posse e uso coletivo; onde o neoliberalismo diz mais investimento de si, o comum é cuidado e corresponsabilidade… É o caminho do “entre-todos” (diversamente do “para todos” público-estatal), é prático e cotidiano; é corpóreo, afetivo e também maquínico. Em suma, é uma cosmopolítica: alimenta outro imaginário social, atravessa práticas concretas e depende da existência de uma comunidade que seja corresponsável pela sua produção e manutenção.

O Comum como relação

Esta noção é, todavia, vaga e adquire contornos distintos conforme a filiação teórica. Meu primeiro contato foi através da produção da Elinor Ostrom e no debate sobre economia política informacional (Yochai Benkler, James Boyle e outros). Neste caso, o comum é “commons“, “bem comum”, um recurso que pertence a uma comunidade e cujo usufruto é coletivo. Mas quem fisgou minha atenção para a força desta noção foi mesmo Antonio Lafuente, físico e historiador da ciência, que aborda o assunto na tradição do “procomún“. O prefixo “pro” denota a necessária existência de uma comunidade que promova e sustente o comum, sem a qual ele não existe. Nesta direção, o comum é sempre relacional, recusando sua reificação (enquanto bem, recurso ou coisa comum). Em Lafuente, assim como na filósofa Marina Garcés, o comum também se manifesta como a ligação intercorpórea, prática, anônima, para além do sujeito individual; o comum que produzimos em relação uns aos outros e que sustenta nossas vidas (o cuidado, os afetos, o sensível…).

Mas também o comum que dá forma ao ambiente e às infraestruturas da vida ordinária. Pode parecer intangível, mas é na realidade muito material, pois resulta do trabalho de nossos corpos. Neste caminho, encontramos ressonâncias nas reflexões de Antonio Negri, Michel Hardt, Paolo Virno e Maurizio Lazzarato sobre o capitalismo cognitivo. Negri e Hardt referem-se à “produção do comum” para indicar a interdependência nas relações de (co)produção e também o comum em sua forma substantiva. Tal percurso é importante, pois permite visibilizar e politizar o “comum”, destacando os mecanismos contemporâneos de produção e extração de valor nas relações capitalistas. Mais recentemente, o “Comum” de C. Laval e P. Dardot é talvez a obra que alinhava de maneira mais completa as diversas abordagens teóricas sobre o Comum. Acho que a principal contribuição de Laval e Dardot, em sua análise histórica do comum, é estabelecer uma narrativa capaz de dar forma a um horizonte político alternativo.

Em resumo, sinto-me implicado em pensar o “comum” como relação, é o “entre”, é aquilo que produzimos entre todos, o que é de todos e ao mesmo tempo não é de ninguém. É outro regime de participação e de partilha. O comum é parte da produção e sustentação da vida (a linguagem, o cuidado, mas também o ar, a água, o conhecimento…); sua produção anuncia o trabalho de uma dimensão infraindividual e supraindividual, e por isso permite que pensemos a noção de agência em outros termos. Por um outro caminho, o autor que nada fala deste “comum”, mas muito me inspira a pensar essas questões sob uma outra perspectiva, é Gilbert Simondon.

IHU On-Line – Hoje, uma das suas áreas de pesquisa é o que você denomina de tecnopolíticas, que relaciona tecnologia, política e conhecimento. Por que a inter-relação entre essas três áreas é importante?

Henrique Parra – Tecnopolítica, de forma ampliada, significa reconhecer a indissociabilidade prática entre técnica e política, meios e fins, técnica e cultura. No rastro de Foucault (e outros) e com os estudos sociais em ciência e tecnologia, analiso como a emergência de novas formas de saber relaciona-se a novas formas de exercício do poder no contexto das relações tecnicamente mediadas, principalmente das tecnologias digitais. Nesta trama tenho adicionado as reflexões sobre o comum, pois é sobre ele que os novos saberes e poderes adquirem contornos específicos e pouco conhecidos. Neste cenário, parte do problema que temos é que as grandes corporações souberam se antecipar e agora estão em situação de grande vantagem ao controlarem as principais infraestruturas que servem de apoio à nossa vida cotidiana.

Graças à crescente digitalização e mediação das tecnologias cibernéticas, a expansão do codificável infiltra-se nos ínfimos interstícios da vida individual e coletiva. Com a indicialidade e rastreabilidade da interação digital, surgem novos modos de conhecer: as ciberciências, o conhecimento simulacional, a estatística preditiva, a modulação existencial. Foucault descreveu o surgimento dos saberes populacionais e a biopolítica; Deleuze anunciou a sociedade de controle. É sobre essas camadas que Antoinette Rouvroy descreve a nova governamentalidade algorítmica. No Brasil, Fernanda Bruno, Sergio Amadeu e outros pesquisadores da LAVITS examinam o mesmo problema em termos dos regimes de visibilidade, controle e economia da vigilância.

No terreno da economia, o capitalismo informacional cria formas de extração e converte a livre interação e colaboração em rica fonte de valor. Os novos saberes e sua economia desenvolvem-se sobre o comum que produzimos de forma transindividual: simultaneamente na dimensão infraindividual (os rastros e índices da expressão pré-individual) e supraindividual (dados agregados, os perfis potenciais). Por isso, é um saber e um poder que está para além do indivíduo e da população. O conhecimento simulacional gera técnicas de modulação do ambiente de forma a alterar o horizonte dos possíveis, modificando o campo probabilístico para a ação futura, e tudo de maneira doce e imperceptível (ou sem fricção, nos termos da tecnofilia do Vale do Silício).

Imagino, portanto, uma política do transindividual como prática de resistência e criação, onde o comum é tanto o modo de existência onde as lutas se reconfiguram, como o próprio elemento sob disputa. Minha hipótese é que parte da política do comum desenvolve-se junto ao transindividual. A contribuição da noção de “transindividual“, neste caso, é destacar os aspectos pré-individuais e supraindividuais, dimensão maquínica da ação humana e da nossa interação com o não humano, ampliando, portanto, a noção de agência (é um exercício de tramar com Latour,  SimondonStengersLazaratto e outros).

IHU On-Line – O que significa falar em construção de uma política do comum? Essa seria uma via alternativa à política nas democracias atuais? Por quê?

Henrique Parra – O comum está aí há muito tempo. Sua política refere-se às configurações de mundo e lutas em torno da produção e manutenção do comum de uma determinada comunidade. Quando dizemos “política do comum” afirmamos a existência de algo comum que está sob disputa. Não há comum sem uma comunidade que lhe dê existência (difere, portanto, das comunidades identitárias). Nesta perspectiva, a água, por exemplo, só é comum quando surge um campo de relações entre diferentes atores (podendo incluir agentes não humanos) para regular o uso coletivo deste comum. Nesta interpretação mais relacional, o “comum” difere de uma acepção essencialista de “coisa comum“, “bem comum“, “recurso comum” ou mesmo “commons” para alguns autores.

Temos também, por exemplo, uma política do comum em torno do cuidado. O cuidado acontece em todas nossas relações interpessoais. É algo aparentemente intangível, porém ele se manifesta sempre de forma muito concreta, é fruto de um trabalho emocional e material de nossos corpos. As lutas feministas afirmam com muita clareza a dimensão corpórea e física deste trabalho (Alana Moraes me apresentou este debate). Este comum pode tanto ser apropriado sob um vetor capitalista que coloca o cuidado para funcionar numa direção que beneficie a produção e a extração de valor, como pode ser um campo de lutas de resistência, quando o cuidado é utilizado para gerar maior autonomia para aqueles que o coproduzem. Neste sentido, a política do comum implica também no fortalecimento dos laços de interdependência, de corresponsabilidade, de coprodução.

Neste momento em que estou tentando delinear a relação entre esses conceitos (comum e o transindividual), tenho a impressão de que o transindividual só se aplica a alguns casos do “comum”, como, no exemplo do “cuidado”. Não estou seguro. Quando observamos as relações mediadas pelas tecnologias digitais, terreno em que me sinto mais confortável, os casos de sobreposição entre o comum e o transindividual abundam. Por exemplo, minha disposição de comunicar e tecer redes de amizade, numa plataforma corporativa, converte-se imediatamente em capital informacional para quem controla a rede. O chamado capitalismo de plataforma ou capitalismo de vigilância, apropria-se do comum gerado pela nossa vida cibermediada. A luta contra a apropriação, extração e cercamento deste comum são formas da política do comum.

Empresas como Airbnb convertem a confiança social em ativo monetizável, corroendo em alguns cenários a livre colaboração e a economia da dádiva. Não à toa, em algumas cidades, comunidades de vizinhos estão se organizando contra os abusos dessas empresas que ameaçam as relações de convivência existentes num certo território. De repente, os habitantes se dão conta de que a qualidade de sua vida num edifício é um “comum” importante, ou as relações de vizinhança, o tipo de comércio, os vínculos de apoio mútuo no território só acontecem porque há algo comum que torna possível seu modo de vida.

Política do comum traduzida em termos institucionais

Agora, outro problema é como a “política do comum” se traduz em termos institucionais. Neste sentido, se tomarmos os exemplos acima, a política do comum pode se manifestar como a luta para inscrever nas instituições existentes os marcos regulatórios e protetivos deste comum ameaçado. Mas, o que são as “instituições do comum“, é um ótimo problema teórico e político que estamos todos investigando. Laval e Dardot propõem que essas instituições são formas de autogoverno do comum. Trata-se de modificar a própria arquitetura e os elementos que ordenam o modelo de contrato social existente. Em termos de participação e deliberação, isso significa que todos os implicados ou afetados por uma decisão devem participar em sua deliberação.

Outra característica institucional seria o arranjo capaz de incluir no “cálculo” político e econômico todas as externalidades, ampliando o reconhecimento daquilo que participa da produção do mundo, mas que é tratado como externalidade: a qualidade do ar que respiramos; o trabalho invisível da reprodução da vida doméstica; o direito aos comuns urbanos… Neste caso, podemos compreender como a noção de “comum” transborda a dicotomia público-privado. Que instituições necessitamos para “comunalizar” o público-estatal e o privado? Quais são os princípios, práticas, tecnologias, protocolos, cultura que dão suporte ao comum?

IHU On-Line – O que é a política do protótipo? Como essa ideia de política do protótipo pode contribuir para repensar a política e as manifestações sociais?

Henrique Parra – Comecei a trabalhar com a noção de protótipo há pouco tempo, mais especificamente a partir da análise dos chamados “laboratórios cidadãos” na Espanha. É aqui que cruzo novamente com as contribuições de Antonio Lafuente, que fora responsável pela concepção do Laboratório do Procomún no Medialab-Prado. Em diversas iniciativas aqui na Espanha, mas também noutros países, o termo “protótipo” está presente nos discursos e intervenções de coletivos ativistas e também no vocabulário de pesquisadores e cientistas que atuam no campo dos estudos urbanos, ciência aberta e estudos sociais em ciência e tecnologia.

Os ativistas de movimentos e centros sociais a partir de um certo momento (seria interessante investigar essa genealogia) passam a falar de suas ações em termos de “hipóteses”. Ao invés de afirmar um grande plano estratégico, eles lançam hipóteses (hipótese 15M, hipótese ocupa…), as quais precisam ser examinadas, investigadas na prática. Muitas vezes, a maneira de verificar, testar essa hipótese é através de um protótipo. Ou seja, ao invés de uma ação apenas reivindicativa, os movimentos passam a criar protótipos de soluções para os problemas que querem denunciar. No caso das iniciativas dos laboratórios cidadãos, a noção de protótipo tem outro contorno. O foco está mais no processo do que no resultado; o protótipo está mais orientado para a aprendizagem e para a produção de comunidades. Em certo sentido isso também acontece nos coletivos ativistas, porém neste último o protótipo tem um caráter mais instrumental, pois será desenvolvido visando um determinado impacto.

Política do protótipo

Apesar das diferenças, há elementos que podemos conectar entre ambos os campos (científico e ativista) e que a meu ver dão forma a esta “política do protótipo“, simultaneamente como formas de conhecer (dimensão epistêmica-cognitiva) e formas de produzir o mundo (dimensão política).

Em primeiro lugar, o destaque para uma dimensão experimental e pragmática. O desafio de realização de um protótipo implica em fazer, em criar coisas, criar relações. Ela é tentativa, não tem a pretensão de ser a resposta verdadeira ou a melhor resposta. Ao invés de investir muita energia na definição de fronteiras e categorias políticas abstratas para conceber um programa de ação, ao prototiparmos somos obrigados a compreender como as coisas funcionam no mundo aqui-agora. É uma ação menos orientada ideologicamente (evidentemente há sempre valores envolvidos) e mais prática.

Ao realizarmos o protótipo, novos problemas emergem, a realidade se torna mais complexa, colocamos o protótipo em movimento e aí já podemos experimentar as dificuldades para sua existência no mundo, e assim tornamos mais visível as forças e conflitos em jogo. Ao mesmo tempo, para fazer um protótipo temos que criar uma comunidade, e ao fazer isso aprendemos a caminhar juntos. Pode parecer banal, mas essa habilidade (fazer junto) é um recurso escasso em muitos locais.

No centro da produção do protótipo está a experiência. E digo experiência no sentido forte do termo, “sofrer uma experiência”, “ter uma experiência”, como nos ensina Jorge Larrosa. Ao fazer um protótipo colocamos nossos corpos em ação, e ao fazer isso outros saberes, afetos e poderes entram em cena. O protótipo reforça um sentido de abertura, indeterminação, sujeito à continua transformação. Em resumo, uma política do protótipo é também a passagem de um movimento reivindicativo para um movimento propositivo e pré-figurativo, que experimenta no presente a criação de outros modos de relação e outros mundos possíveis.

No contexto de fortalecimento da sociedade de controle e da governamentalidade algorítmica, o saber que lhes dá sustentação é o conhecimento simulacional. A capacidade de análise e de produção de cenários futuros é um dos principais campos de disputa: Como o mercado vai reagir? Como os eleitores vão se comportar? Como o governo irá modificar uma política? A política do protótipo intervém aí numa dupla direção: em primeiro lugar um protótipo é um novo artefato, uma nova relação ou arranjo sócio-técnico, e assim ele produz imagens, cenários que modificam o horizonte dos possíveis, interrogando as imagens disponíveis sobre o futuro; em segundo lugar, ao dar centralidade à noção de experiência, ele ativa uma potência corpórea como um importante território de disputa face aos modos atuais de sujeição social e servidão maquínica.

IHU On-Line – Muitos dizem que a esquerda política — os partidos — é incapaz de impulsionar um novo programa para a esquerda mundial e que essa tarefa caberá à esquerda social, ou seja, aos movimentos sociais. De outro lado, fala-se que os movimentos sociais não têm força política para fazer mudanças. Como você vê esse quadro entre a política tradicional e os movimentos? Também aposta na força dos movimentos? Por quê?

Henrique Parra – Não resta dúvida de que os que controlam nossas instituições governamentais não farão as mudanças que colocam em risco sua posição. Mas isso não significa que bastaria trocar o grupo que está “no poder” das instituições. Já experimentamos isso, não? É claro que atuar no campo da disputa eleitoral é relevante, mas não é suficiente. Sabemos das limitações concretas enfrentadas por todos aqueles que tentam implementar uma ação de governo que promova a justiça social. Imediatamente, nos damos conta das inúmeras determinações jurídicas, materiais, culturais, financeiras, logísticas etc, que fazem com que a mudança social seja praticamente bloqueada.

Voltamos à sua primeira pergunta. De repente nos damos conta de que nossa dependência dos grandes arranjos sócio-técnicos, que servem de infraestrutura para a vida comum, também determina nosso modo de existência. Não basta ganhar eleições, é preciso democratizar a produção científica e tecnológica, a geração de energia, democratizar a economia… mas para isso também precisamos ter experiências sobre o que pode ser colocado no lugar.

Cultura tecnopolítica

Num post recente, discorro sobre a importância da tessitura de uma cultura tecnopolítica. Por exemplo, como podemos expandir o acesso de todos à energia elétrica como um direito básico sem depender do modelo das grandes hidrelétricas, que colocam em movimento uma série de agenciamentos: grandes empreiteiras, destruição do meio ambiente, remoção das populações, financiamento de campanhas eleitorais etc. Neste sentido os movimentos sociais ocupam um lugar importante para propor e pressionar por outras políticas. Porém, tradicionalmente, os movimentos sociais são principalmente reivindicativos. Isso é importante e necessário, porém, compreendemos que isso não é suficiente. É fundamental a luta pela ampliação e conquista de direitos. Sem os movimentos sociais, muito (e pouco) do que temos como direitos não existiria. Veja o exemplo dos movimentos por moradia urbana. A maior parte deles não consegue manter a disposição organizativa uma vez que os moradores estejam instalados nos apartamentos de um edifício: a arquitetura do prédio, a gestão do condomínio, a distribuição das cozinhas etc, tudo isso participa da produção de um modo de vida.

Neste sentido, acho importante reconhecer a existência de uma multiplicidade de novas formas associativas que também se constituem como agentes políticos. Há muita disposição entre as pessoas para se engajarem em atividades políticas (para o bem e para o mal). Para além de uma renovação de nossas instituições políticas, também devemos imaginar uma transformação nos movimentos sociais existentes e apostar na constituição de novos atores políticos que estão para além da arquitetura estadocêntrica, para além dos partidos, para além dos movimentos sociais reivindicativos, das ONGs de lobby etc.

Assim, a própria palavra “programa”, expressa na pergunta, torna-se controversa e com ela a noção unitária de estratégia. São muitas as frentes e campos de ação política relevantes. Voltando à questão sobre “minha aposta”: estou interessado em praticar e investigar os modos de associação e as tecnologias de produção do comum. Mais especificamente, os arranjos (sociais e técnicos) que alguns coletivos, organizações e movimentos já praticam em alguma esfera da reprodução do seu cotidiano, para sustentar o comum que eles julgam ameaçado e, portanto, necessário para um certo aspecto de sua existência. Isso significa que eles inventam soluções práticas (com valores, protocolos, tecnologias, infraestruturas…) que são suficientemente eficientes para existir no mundo atual.

Essa passagem do protesto para a proposta (Lafuente e outros autores usam esta expressão) também estava presente como política pré-figurativa em movimentos sociais e contraculturais do século passado. Também encontramos isso em alguns movimentos feministas e ecologistas, em algumas iniciativas presentes no início do Fórum Social Mundial e, mais recentemente, em coletivos hackers para autonomia tecnológica, comunidades de práticas de grupos afetados, redes de agroecologia ou de economia social/solidária, moedas sociais… Essas iniciativas são importantes porque produzem formas associativas que sustentam este “comum” (o que por si só é de grande valia num mundo em que o tecido social é destruído pela governamentalidade neoliberal). E para isso elas também criam os arranjos de modo que suas práticas “funcionam” no presente, promovendo outros critérios de eficiência. Porém, isoladamente, essas experiências também têm os seus limites.

Contexto espanhol

Voltando às questões sobre o contexto espanhol, muitos dos que participaram das inúmeras iniciativas que foram produzindo o caldo de práticas e cultura política em que o 15M eclodiu, estão muito apreensivos com o atual cenário político. Há uma certa sensação de que as invenções e os modos de subjetivação política que ali emergiram não lograram criar formas políticas capazes de enfrentar o atual conflito. É certo que houve muito aprendizado democrático, que inúmeras redes se formaram e que muitas delas seguem ativas e outros num estado de latência. As novas experiências municipalistas, as confluências, as mareas, são evidentes desdobramentos daquele momento.

A mesma pergunta que lançam sobre o 15M pode ser aplicada ao Junho de 2013 brasileiro (guardadas suas diferenças e seu contexto): quais são as formas políticas e institucionais desses movimentos? Essa é uma pergunta grande demais e muitos estão investigando este problema. Em certo sentido, a política do protótipo e do comum que imagino não pretende responder a essa pergunta, mas sim investigar e praticar uma ética, uma cultura, as tecnologias, as infraestruturas que contribuem para a produção e manutenção do comum. Imagino um caminho de ação política que não é exclusivo e que não está em oposição às outras formas de luta. Gosto de pensar a política do comum como uma luta “menor”, mais anônima e impessoal, porém imanente à vida. Ao invés dos grandes sujeitos políticos, a criação de um comum entre os quaisquer (na expressão do Agamben). Sempre de maneira prática e experimental, ela seria capaz de fomentar uma cultura e as infraestruturas que a sustentam, podendo atravessar e reforçar as outras formas de ação política. O importante, parece-me, é que sejamos capazes de manter a coexistência dessas várias formas.

Nota:

[1] O pós-doutorado tem apoio da CAPES (88881.119261/2016-01). (Nota do entrevistado)

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