Defensoria MS firma compromisso com indígenas para garantir direito à convivência familiar de crianças e adolescentes

A Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, por meio do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança (Nudeca), participou de reuniões com lideranças indígenas na semana passada para pensar em estratégias que garantam o direito à convivência familiar de crianças e adolescentes das aldeias do Estado.

Na quinta-feira, 30, as defensoras públicas de segunda instância Neyla Ferreira Mendes e Marisa Nunes dos Santos Rodrigues, coordenadora do Nudeca, estiveram em Bela Vista, na comunidade Tekoha Pirakuá e se encontraram com representantes do Conselho Aty Guassu, maior representação política dos indígenas Guarani Kaiowá.

O objetivo foi firmar um compromisso de proteção à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes indígenas, visando prevenir e erradicar o abrigamento. Segundo as defensoras públicas, foi apontado que o Conselho Tutelar tem retirado as crianças sem falar com as lideranças, os pais não são ouvidos no processo, não são disponibilizados intérpretes e, via de regra, as famílias ficam sem defesa.

Recentemente, um mapeamento de casos de crianças e adolescentes indígenas em situação de acolhimento institucional realizado pela coordenação regional da Fundação Nacional do Índio de Dourados, após divulgação de Carta Denúncia Pública contra retiradas de crianças e jovens de suas famílias, apontou dados graves.

Em novembro deste ano, existia um total de 65 crianças e adolescentes indígenas em situação de acolhimento institucional, 50 apenas em Dourados. Conforme a pesquisa, na principal cidade da região Sul, são quatro instituições distintas e não integradas que prestam o serviço. Nos locais foram apontadas violações aos princípios do Serviço de Acolhimento de Crianças e Adolescentes, orientado pelo Ministério do Desenvolvimento Social.

Devido à organização das casas por idade e sexo, existe um relevante histórico de separação de grupos de irmãos. Também há relatos de atitudes de discriminação e de alienação parental e étnica. “Alguns profissionais ligados às instituições não demonstravam qualquer cuidado em verbalizar na frente das crianças suas impressões preconceituosas contra os povos indígenas e seus modos de viver, em especial àquelas relacionadas a notícias negativas veiculadas na mídia e de senso comum”, aponta o documento.

De acordo com a defensora pública Neyla Ferreira Mendes, quando a criança indígena é retirada de sua família, há um enorme impacto. “Primeiro, ela é levada a um abrigo onde não se reconhece, já que não falam sua língua, tem outros costumes e via de regra, ainda sofre alienação étnica, e, depois, ao ser devolvida a sua comunidade, onde não existem as facilidades materiais das casas abrigo, ela sofre diante da  necessidade de nova adaptação à realidade da sua comunidade”.

A coordenadora do Nudeca pontua que a retirada de uma criança de sua comunidade deve ser uma medida extrema. “Lugar de criança indígena é com seu povo e a retirada só pode ser adotada em casos excepcionais. Para mudar esta realidade é fundamental a implementação de políticas públicas visando o empoderamento da cultura dos povos indígenas, bem como a outorga de condições básicas de saúde, educação, alimentação,  habitação, entre outros direitos fundamentais que viabilizem a dignidade da pessoa humana na sua máxima efetividade”.

Direitos estabelecidos

O artigo 19 do ECA define que é direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral .

Esgotadas todas as possibilidades de permanência com a família de origem e comprovada a necessidade de colocação em família substituta, o art. 28 do ECA esclarece:

Em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, é ainda obrigatório:

I – que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta Lei e pela Constituição Federal;

II – que a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros da mesma etnia;

III – a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista, no caso de crianças e adolescentes indígenas, e de antropólogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso.

O relatório da Funai explica que “de acordo com o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária – PNCFC (2006), a definição legal não supre a necessidade de se compreender a complexidade e riqueza dos vínculos familiares e comunitários que podem ser mobilizados nas diversas frentes de defesa dos direitos de crianças e jovens. Para tal, torna-se necessária uma definição mais ampla de família, com base sócio-antropológica. (…) A família pode ser pensada como um grupo de pessoas que são unidas por laços de consanguinidade, de aliança e de afinidade”.

Nos casos analisados, as denúncias de negligência familiar estão geralmente relacionadas ao uso de álcool e outras drogas e pobreza. Mas o art. 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente afirma que a pobreza não pode ser motivo para a retirada: “A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar”.

“Ouvimos denúncias de retiradas sem qualquer explicação: retirar sem aviso, sem apresentar motivação, sem tempo para despedidas, sem falar com a criança na língua materna. Levar uma criança indígena para um lugar totalmente desconhecido dela, onde não tem ninguém de seu grupo de referência, ninguém parecido com ela, que fale e entenda seu idioma, que oferte os mesmos cuidados de higiene e alimentação de seu povo é apontado pelas famílias com as quais conversamos como uma violência gigantesca. Nos chama a atenção as denúncias categorizadas como negligência familiar, que impõem à família o rótulo de incompetente na criação dos filhos e não questionam os reais fatores de risco da família ou mesmo se se trata de adultos em condições físicas, psicológicas e sociais de cuidar e proteger crianças ou de uma família inteira em situação de violência e negligência estatal, que precisa primeiro ser cuidada e protegida. Não considera, sobretudo, a dívida histórica do Estado para com os povos indígenas e as consequências coletivas da violação de seus direitos”, aponta o documento.

Grande Assembleia Terena

No sábado (02), representando o Nudeca, a defensora pública Neyla Ferreira Mendes esteve na Grande Assembleia Terena, realizada na aldeia Água Branca, em Aquidauana, e estabeleceu o mesmo compromisso com as lideranças Terenas e Kinikinau.

Em ambos os locais, a Defensoria Pública apontou a necessidade do fortalecimento da rede interna das comunidades indígenas e afirmou que os conselheiros tutelares devem buscar auxílio das lideranças indígenas, com o objetivo de sempre fazer o possível para que a criança ou o adolescente permaneçam em suas comunidades. Foram distribuídas, ainda, cartilhas com orientações básicas de acesso a direitos, informando os telefones e endereços de todas as Defensorias Públicas e dos Centros de Referência da Assistência Social (CRASS) das regiões onde existem comunidades indígenas.

“Nas ocasiões, ficou estabelecido que sempre que houver uma criança ou adolescente indígena em situação de vulnerabilidade, a rede interna será acionada para buscar meios de proteção e fará a comunicação do fato à Funai e à Defensoria Pública Estadual, que acionará, caso necessário, a rede de proteção externa”, explicou a defensora Neyla Mendes.

Conscientização interna

Além de reunir-se com as lideranças indígenas, a Defensoria Pública realizou um evento interno para pensar e propor soluções para o problema. O encontro aconteceu na  Universidade Federal da Grande Dourados com todos os defensores públicos das regionais de Dourados, Naviraí, Ponta Porã e Nova Andradina, com a 2ª subdefensora pública-geral Angela Rosseti Chamorro Belli, além das coordenadoras cível e criminal da 2ª instância, Maria Rita Barbato Meneghelli e Christiane Maria dos Santos Pereira Jucá Interlando e da coordenadora do Nudeca, Marisa Nunes dos Santos Rodrigues.

Organizado pela defensora pública Neyla Ferreira Mendes, o evento contou com discussões, no período matutino, buscando diagnosticar a situação da infância e adolescência em situação de abrigamento, o acesso a documentos básicos, bem como delimitar a situação carcerária de jovens e adultos indígenas na região.

Na ocasião, os defensores assistiram palestras do professores Levi Marques Pereira, da Faculdade Intercultural Indígena da UFGD e Georg Grünberg, da Universidade de Viena e especialista nas relações culturais das populações Guarani Kaiowá da América Latina. Estavam presentes também os representantes da Funai, Ruth Alves Gomes e Crizantho Alves Fialho Neto.

Pela tarde, os defensores públicos abordaram formas de atuação e meios para efetivar o acesso à justiça da população indígena da Região Sul e Cone Sul, visando, principalmente, implementar a efetiva proteção das crianças que estão sendo retiradas de suas comunidades e colocadas em adoção para famílias não indígenas.

Segundo Neyla Mendes, Mato Grosso do Sul é o Estado recordista em abrigamentos de crianças indígenas no Brasil, principalmente na Região do Sul e Cone Sul do Estado. “Essas 65 crianças indígenas abrigadas representam um percentual de 68% do total de crianças acolhidas em toda a região do mapeamento. O desequilíbrio é muito grande quando se considera que a população indígena do Estado não chega a 1%”.

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