O primeiro memorial a escravos de Lisboa e o racismo em Portugal

Projeto foi aprovado por moradores em orçamento participativo; pesquisas mostram persistência do racismo no país

Luiza Bandeira, no NEXO

Os moradores de Lisboa aprovaram, por meio do orçamento participativo da cidade, a construção de um memorial às vítimas da escravidão. O projeto tem como objetivo “homenagear as vítimas da escravatura e celebrar a abolição da escravatura e do tráfico de pessoas escravizadas”, de acordo com a proposta oficial. O anúncio das propostas vencedoras foi feito no dia 27 de novembro de 2017.

De acordo com a Associação de Afrodescendentes (Djass), órgão autor do projeto, o memorial será o primeiro do tipo na capital de Portugal, país que teve papel central no tráfico de escravos no mundo até o século 19. De acordo com o Slave Voyages, projeto coordenado pela Universidade Emory, nos Estados Unidos, que reúne informações sobre viagens do tráfico negreiro, Portugal e Brasil lideram o ranking de escravos transportados no mundo. O Slave Voyages estima que tenham embarcado em barcos com essas bandeiras 5,8 milhões dos 9 milhões de escravos transportados entre 1514 e 1866, período coberto pelo projeto.

Segundo a presidente da Djass, Beatriz Dias, o país costuma homenagear os chamados “descobridores”, mas não as vítimas do tráfico. O monumento pretende também motivar uma discussão sobre a relação do passado escravagista do país e o racismo atual em Portugal.

“Portugal precisa deste memorial para que se instale de uma vez por todas a ideia de que a escravatura não é uma coisa arrumada no passado. Há uma continuidade clara entre a escravatura, os trabalhos forçados que persistiram depois de ela ter sido abolida e o racismo que hoje atravessa a sociedade e que Portugal continua a recusar discutir aprofundadamente”, disse em entrevista ao jornal português Público.

A primeira iniciativa para acabar com a escravidão em Portugal foi feita pelo Marquês de Pombal, que, em 1761, decretou que quem chegasse ao território de Portugal e Algarve não seria mais escravo. A medida não valia para as colônias. A abolição total foi declarada em 1869 – no Brasil, a escravidão foi abolida em 1888.

O debate sobre o racismo em Portugal

Uma pesquisa feita pelo programa Atitudes Sociais dos Portugueses, usando dados do European Social Survey, mostrou que Portugal é o país mais racista da Europa. A pesquisa ouviu mais de 30 mil pessoas em 20 países para medir o racismo biológico e cultural. Quanto ao primeiro, foram feitas perguntas para averiguar se os entrevistados acreditam que havia raças ou grupos étnicos que nasceram mais inteligentes ou mais trabalhadores que outros. Para medir racismo cultural, questionou-se se a pessoa acreditava que, no mundo atual, havia culturas melhores que outras, ou se as culturas eram iguais. Entre os entrevistados portugueses, 52,9% acreditavam no racismo biológico e 54,1%, no cultural. A média europeia é de 29,2% e 44%, respectivamente.

Um dos autores da pesquisa, o psicólogo social Jorge Vala disse em entrevista ao Público que o racismo em Portugal está relacionado ao passado escravagista e ao mito do “luso-tropicalismo” , desenvolvido pelo brasileiro Gilberto Freyre. O autor argumentava que o conquistador português teve facilidade de se adaptar aos trópicos devido a sua origem étnica híbrida, de estar entre África e Europa, e de ter tido contato histórico com mouros e judeus na Península Ibérica. Para Vala, essa linha de raciocínio reforçou a narrativa de que Portugal seria um país menos racista. “Portugal não é nenhuma ilha, como se tentou defender. Temos um mito protetor que é o luso-tropicalismo. Até determinado momento, protegia-nos; hoje, é um mito legitimador da visão sobre o nosso passado”, afirmou.

Outra pesquisa, feita pela Universidade de Sheffield, no Reino Unido, também mostrou altos índices de racismo em Portugal. Usando dados de um projeto da Universidade Harvard, que mede o quanto as pessoas associam rostos negros e brancos a conceitos bons ou ruins, Portugal esteve entre os países europeus em que os negros mais foram associados a ideias negativas (índice de 0,405).

Também há registros de discriminação no sistema Judiciário e em aluguel de imóveis no país, entre outros. Uma pesquisa publicada em 2009 pela Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia mostrou que 44% dos 64 mil brasileiros que residiam legalmente em Portugal à época afirmaram terem sofrido discriminação nos 12 meses anteriores à pesquisa. O estudo indicou também que 74% dos brasileiros consideravam o nível de discriminação e racismo em Portugal alto.

Não há informações oficiais sobre a composição étnica da população portuguesa, porque, diferentemente do Brasil, está pergunta não é feita no Censo do país. Entende-se que a Constituição não permite que o levantamento seja feito. A ONU, porém, já recomendou que a informação fosse apurada, como forma de criar políticas específicas para combater à discriminação racial.

Como será o memorial

O projeto para construção do memorial foi o 8º mais votado no Orçamento Participativo de Lisboa, com 1.176 votos. O orçamento participativo é um instrumento que permite que os cidadãos sugiram e escolham projetos que serão incluídos no Orçamento da cidade. Outros 14 projetos foram aprovados.

O memorial ficará localizado no centro histórico de Lisboa, próximo à Praça do Comércio, onde os escravos que chegavam a Portugal eram comercializados. O site do Orçamento Participativo de Lisboa informa que o projeto está em estudo, tem orçamento estimado em 100 mil euros (cerca de R$ 390 mil) e previsão de conclusão em um ano.

De acordo com a Djass, ainda não existe um projeto físico do memorial, que será desenhado em parceria com instituições africanas ou de afrodescendentes. A presidente da Djass diz esperar que o projeto seja um primeiro passo para a construção de um museu da escravidão em Portugal.

Em 2016, foi inaugurado um pequeno museu dedicado à história da escravidão em Lagos, no sul do país. Outros países, como Guiné-Bissau e Inglaterra, têm museus e memoriais sobre o tema. No Brasil, há alguns centros de memória, como o Memorial dos Pretos Novos, no Rio de Janeiro. A cidade, que no século 19 era a que mais recebia escravos no continente, estuda também criar um novo museu sobre o tema, o Museu da Escravidão e da Liberdade.

Imagem: Reprodução do Sic Noticias.

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