Gabriel Nascimento* – Justificando
Nenhuma pessoa, absolutamente nenhuma, das que participam de alguma organização, coletivo ou entidade do movimento negro organizado ousaria homogeneizar o movimento negro, de maneira a esquecer os acalorados debates que duram décadas entre nós. O mesmo não se deu com o antropólogo Antonio Risério.
Em “Movimentos negros repetem lógica do racismo científico, diz antropólogo”, publicado na Ilustríssima da Folha de São Paulo, em 16 de dezembro, Antonio Risério o faz, sem medo de pesar a mão, como, aliás, e sem nenhuma novidade, vem fazendo em muitos de seus trabalhos.
Se pulássemos o artigo inteiro para alguns comentários de assinantes da Folha, poderíamos concluir, tão logo, e sem necessitar de um trabalho longo de análise do discurso, que o artigo é a tradução (do trabalho do antropólogo) que afaga o coração daqueles que precisavam há muito justificar o seu incômodo com mudanças sociais e históricas pelas quais estamos passando.
Como podemos ver no primeiro comentário, as leis só servem para perseguir brancos ou, como está bem claro no segundo artigo, todo o texto só serve para consolidar a ideia de que o Apartheid estava correto. O último comentário é o mais direto. O racismo reverso é a conclusão do artigo de Antonio Risério.
Provavelmente. Se o artigo for lido de forma contextualizada, como nós linguistas adoramos fazer, dá para perceber que é fácil essa conclusão. Seu incômodo principal é o enunciado publicizado pelos companheiros em marcha, em São Paulo, com os dizeres “miscigenação é genocídio”. Para comentar, Risério começa com seu grande alvo, o “mulato” Abdias do Nascimento.
Para começar, é preciso uma metodologia de trabalho. Não de Risério, mas nossa. A filósofa panamenha Linda Alcoff a chama de desnudamento da branquitude. Nos Estados Unidos, onde a esquerda tem infantilidades parecidas com a esquerda brasileira e é defensora do multiculturalismo liberal, essa branquitude faz movimentos inteiros dos brancos falarem pelos negros, inclusive com críticas ao movimento negro, com uma falta total de desnudamento da posição de onde se fala.
O lugar de onde se fala é a branquitude. É o mesmo lugar de Antonio Risério.
Aqui e ali ele faz escolha de um vocabulário que parte tão e somente da branquitude. Em nenhum lugar enuncia o lugar de onde parte. Por outro lado, sai batizando com seu estreito vocabulário quem acha no caminho do seu discurso, como o também “mulato” Luiz Gama ou a sua mãe “negra”, Luíza Mahin ou nós, os “neonegros”
Nesse texto, como em diversos outros, a crítica de Risério parece soar em volta de uma crítica que chafurda a esquerda brasileira. A despeito dos comentários dos bolsominions na matéria, é a esquerda brasileira a principal responsável por denunciar que o movimento negro brasileiro é papagaio do movimento negro norte-americano.
Decorre das décadas passadas, cuja autocrítica não foi feita pelos partidos de esquerda ocidentais, um divisionismo iniciado quando os partidos comunistas ou trabalhistas, para além de apoiar a luta do movimento negro contra o racismo, se afastaram num discurso de que classe era distinta de raça, e as lutas eram diferentes, sem possibilidades de coesão. Isso foi muito frequente nos Estados Unidos. Pois bem.
Esse discurso chegou ao Brasil e ainda hoje se dissemina, através dos partidos de esquerda e como verdade absoluta, apontando que apenas falamos verdades colonizadas. Usa-se a palavra “colonizada”, outra palavra infeliz usada por Antonio Risério, negligenciando seu sentido inicial (e mesmo suplementado), cujo valor maior simbólico é dado pela branquitude, essa que se comporta sempre pela régua teórica e acadêmica da Europa e Estados Unidos.
Ao se difundir a ideia de “colonizado”, se quer passar a ideia de que não passamos de reprodutores do movimento negro norte-americano. Teorias da conspiração do poder da Fundação Ford e investidas perigosas, como a crítica ao chamado movimento identitário, unem um incômodo muito grande, cujo outro nome não há, senão racismo . É racismo epistêmico, e é difícil admiti-lo para os brancos e a branquitude.
Ramon Grossfoguel e Walter Mignolo deram pistas interessantes desse racismo no contexto da América Latina e Caribe, de maneira que ele obedece uma lógica de branquitude a partir das elites intelectualizadas brancas.
No âmbito do Brasil, Sueli Carneiro usou bem a teoria de Foucault e de Boaventura de Sousa Santos para entender como se dá aqui o epistemicídio, que é a morte do pensamento do outro.
Ao se difundir a ideia de colonizado, estamos sendo tachados de burros.
Não por seguirmos as boas experiências do movimento negro norte-americano, mas porque querem nos homogeneizar. O maior expoente da crítica de Antonio Risério, Abdias do Nascimento, é abertamente um pan-africanista. É o responsável pela fortuna crítica e socialmente arrojada do que herdamos da luta contra o racismo em nosso país. Liderou aqui uma precisa crítica contra a miscigenação. Mas ele não está sozinho. Prova disso são os trabalhos de pesquisa de Lélia González e Neusa Sousa Santos, no campo da psicologia e antropologia.
A miscigenação merece toda a nossa atenção. Eu mesmo sou um preto de pele mais clara do que meus irmãos. As conversas em família dão a dimensão dos fatos tais como são. Todos aqui falam e ouvem as experiências de racismo e ninguém aqui enxerga no racismo um nosso privilégio. Meu irmão mesmo me disse que na casa de uma certa “irmã” da igreja eu talvez, com cabelo menor, fosse aceito como branco, ao passo que reconheço e afirmo, para o entendimento deles, que nas lojas e postos eu não passo de um “pivete” com “cara de bandido”.
Ninguém acha privilégio ser preto aqui. Talvez Antonio Risério o ache, à medida que faz denotar e conotar, com boa dose de exagero, que é anacrônico que a mestiçagem ainda represente uma violência para a mulher negra. Mesmo como intelectual em ascensão, sou obrigado a pensar que, me desnudando, não vejo num Antonio Risério um pingo de humildade na medida em que enuncia e tacha, sem pena, suas personagens em lugares os quais nunca experimentou e nem poderá experimentar. Além de humildade, falta honestidade intelectual.
A miscigenação também é genocídio porque, na mais conhecida e dada genealogia do negro brasileiro, ela foi imposta e não foi uma escolha.
Neusa Sousa Santos mostra que esse negro jamais foi passivo e estabeleceu, na relação com essa miscigenação, estratégias de sobrevivência. E o embranquecimento é, por óbvio, uma delas.
Parece óbvio demais dizer que, se a miscigenação foi imposta, ela não se deu na forma autoconsciente do Estado colonial, mas na pragmática intervenção de seus agentes, intervenção essa na forma de estupro e dominação das mulheres negras. A suplementação dessa genealogia hoje se dá com a sexualização do corpo feminino negro, de maneira que as mulheres negras não têm nem o direito de reclamar a permanência da violência sobre seus corpos que são chamadas de “anacrônicas” pela batuta da branquitude.
Se a miscigenação foi violenta, então ela existiu para apagar um passado “negro” e, portanto, a história de um povo. Portanto, ela é genocida e epistemicida. Decorre ainda desse artigo do antropólogo a visão de unidade morena da década de 30, essa que saiu dos livros de Sérgio Buarque e Gilberto Freyre, que produziu no racismo estrutural a visão de democracia racial. Tratou-se aí, mais uma vez, da homogeneização para dominação.
O racismo cordial, esse promovido e interpretado com ousadia por Antonio Risério, já é uma instituição secularizada no Brasil. O antropólogo Talal Assad, indo além de Edward Said, ao realizar seu trabalho de analisar a ossatura da construção da secularização dos discursos ocidentais, nos deixa uma grande deixa do discurso de Risério. Trata-se da imanência de uma verdade cuja secularização não é nova nas sociedades ocidentais, mas que sempre se apresenta com discursos diferentes.
Antonio Risério se apresenta como uma mistura quase irreconciliável de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque a serviço da guinada do fascismo entre nós,
Cuja banalidade do mal se apresenta no combustível que seus textos dão ao racismo cordial. Não se desnudando, mais uma vez, de que lugares teóricos parte, ele se apresenta como uma verdade revolucionária a ser seguida.
Mas as conclusões de Risério que arrefecem bem os setores de esquerda e direita, ainda que não se se admita estão representadas em: “Se a mestiçagem diminui a população negra, diminui também a população branca”. Aqui, ao atacar os movimentos negros que repetem verdades do racismo biológico, ele não se dá conta da armadilha em que cai.
Longe de sermos essencializados nos termos em que raça é apenas biologia (afinal genealogia, ontologia e epistemologia estão mais presentes nos termos em que pensamos criticamente etnia e raça), Antonio Risério mostra que ele é que se limita ao racismo biológico. Para ele, a crítica à mestiçagem se resume à sua figura biológica. Ele não se deu conta (ou se deu, porque seus textos mostram uma rasura forte de má fé) que o embranquecimento racial no Brasil é etnológico e político, e por isso demanda posições de dominação no capitalismo.
O grande erro desse Antonio Risério, que une esquerda e direita contra os movimentos identitários (quando a esquerda parece confundir movimentos identitários com multiculturalismo liberal, uma de suas vertentes) é que ele quer essencializar e homogeneizar tanta gente negra que pensa, e que não precisa dele para pensar. O meu próprio texto tem verdades que não são e não podem ser consenso.
O filósofo camaronês Achille Mbembe, ao criticar autodeterminação, por exemplo, não está se propondo ao consenso sobre a razão negra. Porém, ninguém de nós o faz sem se desnudar e, portanto, sem quebrar os grilhões de séculos de homogeneização que nossos povos sofrem, desde que os termos “raça” e “negro” passaram a designar a dominação senhorial branca nas nossas vidas na modernidade. O mesmo não faz nem Risério e nem seus interlocutores de esquerda e de direita. Ao não se pensarem em termos de branquitude, eles se julgam o universal tratando de um particular. Nas palavras de Enrique Dussel, uma universalidade moderna tratando de uma universalidade instrumental criada por essa universalidade.
A esses erros combatemos com conhecimento e não com silêncio.
*Mestre em Linguística Aplicada pela UnB e doutorando em Letras pela USP. É autor de “O Maníaco das onze e meia” e “Este fingimento e outros poemas”. Atualmente é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia.