Futebol: racismo, machismo, pobreza e hipocrisia

Nilma Bentes*

Um amigo contou pra mim que após uma palestra ou mesa redonda, na Espanha, o Prof. Paulo Freire foi convidado por algumas pessoas a continuar a conversa em outro lugar, e ficaram decepcionadas quando ele, educadamente, recusou o convite alegando que, dali a pouco, queria assistir ao jogo da seleção brasileira de futebol, na TV. 

Humm… muitos de nós sabemos o quanto vários intelectuais, inclusive da chamada esquerda (não só no Brasil), torcem o nariz para quem gosta de futebol e carnaval (este, mais especificamente, no Brasil), sobretudo por acharem só alienantes. O assunto mereceria muitos debates, mas, aqui só cabe sinalizar exemplos:  a) pelo que soube, o treino do Corinthians pouco antes de se tornar campeão brasileiro de 2017,  teve fortíssima  presença de torcedores que não poderiam pagar para ver o jogo decisivo e; b) no jogo Flamengo x Independiente (Sul-Americana), no Maracanã lotado, deu para notar a insignificante presença de negros e negras (o RJ tem mais de 8,2 milhões de pessoas negras e SP mais de 14,2 milhões; 52 e 35% das respectivas populações).

É revoltante, pois já faz algum tempo se observa o forte desaparecimento de negros nas torcidas durante jogos oficiais de futebol, não só do Flamengo e Corinthians – ditos de maiores torcidas no Brasil. O motivo? Elevadíssimo preço de ingressos – antigamente, além da arquibancada, existia ‘a geral’, um espaço de preço de ingresso mais baixo. A agressividade do modelo econômico vigente estimula a mercantilização de tudo, um consumismo predatório, um individualismo exacerbado e favorecendo a uma abismal desigualdade social-racial e de gênero – aliás, na questão do futebol,  só alguns jogadores  ganham salários astronômicos e já deveria haver limites para muitas coisas.

Por outro lado, registre-se que os estádios de futebol no Brasil ainda são grandes templos de reprodução do machismo (há excesso de testosterona no ar e desrespeito à mulheres, sobretudo, se ousam ir sozinhas) e, agora, também, espaço de ampliação do racismo e apartheid sócio-racial, virando pois espaço privativo das classes de média e alta renda. Além de  termos uma TV, que é feita de  ´brancos/as  para brancos/as´ (donos, apresentadores/as, atores/atrizes e outros), com muitos programas que estimulam pessoas de camada de baixa renda a achar que elas próprias são culpadas por terem sido jogadas na pobreza; que é justo a juventude negra continuar a ser exterminada, estimulando a ideia de que negros e negras (e também indígenas)  são inferiores, que nasceram para servir a brancos, que podem ser descartados, pois só atrapalham o ´desenvolvimento´.

Para tentar não perder o fio da meada, cabem indagações: Sem esquecer de saudar o Aranha (goleiro), por que temos que continuar vendo e ouvindo, caladas, os xingamentos a jogadores negros? Por que, praticamente, todas as crianças que entram em campo de mãos dadas com o jogadores, são brancas, num país de 54% de população negra? É verdade que um dia desses entraram várias crianças negras porque era em apoio a migrantes, se não me engano, mas isso é exceção. A mim não parece menos importante tratar disso no momento, pois as elites brancas apostam justamente na despolitização, desmobilização da maioria, para desviar a atenção das desgraças políticas-econômicas-ambientais que elas estão patrocinando.

Por que será que a mídia não destaca a, praticamente, ausência de negras/negras e indígenas na chamada Operação Lava-Jato? Encharcadas de racismo e machismo – doenças sociais que estruturam todas as desigualdades no país -, as elites brancas brasileiras continuam, impunemente, oprimindo as populações negra e indígena – sobretudo mulheres –  e exercitando sua hipocrisia hereditária. Não há ilusão: elites e seus prepostos não suportam, sequer, a ideia de fazer avançar uma democracia participativa. Mas, “um dia a casa cai e a coisa muda”!

Enfrentando contradições e desacordos, é preciso que deixemos de agir de forma parecida a gado indo – ‘conformado’ -,  para o matadouro; temos de unir forças para sair da subalternização coletiva e atuar na luta pela ‘queda da casa’- grande.

*Participante do grupo fundador do CEDENPA-Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará e da Rede Fulanas NAB-Negras da Amazônia Brasileira

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