Revolução de baixo para cima: o povo é o dono do seu próprio destino

As “pessoas comuns” não são marionetes e tampouco não passam de ralé para serem subestimadas, pelo contrário, nada impede que elas protagonizem a história humana.

Primeiro subia um burburinho, como borbulhas de peixinhos agitados se revolvendo no fundo da lagoa. Logo uma voz se exaltava, como uma rabada golpeando a superfície d’água. A essa altura espumas alvoroçavam como quebrando a tensão superficial. As vozes exaltadas ganhavam ritmo. Respingavam, estalavam pequenas ondas, veio o redemoinho… Tapas em superfícies metálicas, ferros batendo em ferros, vidros quebrando, conclamações, fogo. Uma fumaça negra, espessa e ardente subia, o Terminal da Praça da Bíblia, em Goiânia, estava em polvorosa, depredado, em chamas.

Talvez quem leia esteja imaginando a cena de uma “arruaça” planejada de um coletivo anarquista querendo dar um recado ao “sistema”. Mas eram avós, mães, tias… eram senhoras que poderiam ser da família. Extravasaram algo desencadeado pelos ônibus atrasados nos terminais, mas que foi na verdade uma formação de uma “tromba d’água”, afluindo de muitos e muitos dias espremidas no terminal, empurradas, brutalizadas para entrar no ônibus, sacolejadas, stress e agonia do cotidiano urbano, com as ondas de humilhações nos trabalhos precários, estourando após uma torrente de aumentos de passagem na cabeceira. Eram senhoras, quebrando tudo.

Duas grandes visões básicas catalisaram e entusiasmaram intensas paixões recentemente nos debates e considerações quanto aos engajamentos sociais. Com apelos contrastantes, ambas reivindicando serem visões críticas ao que alegam ser o problema do estado de coisas do momento atual, conclamando à sua contestação. Em tempos mais recentes, esse embate se reforça diante de fenômenos marcantes nas formas contemporâneas de mobilização, gerando perplexidade e ainda não totalmente assimiladas nas reflexões.

Esbocemos algumas problemáticas que são tópicos no cenário:

  • O papel das redes de comunicação virtual em propagar e mobilizar;
  • Ativismos dispersos, com denúncias, manifestos, abaixo-assinados, reivindicações e congêneres, por meio de assinaturas e correspondências eletrônicas, bem como campanhas e atos “espontâneos”;
  • Movimentos de ciberativistas, “youtubers”, fóruns virtuais, correntes de whatsapp, robôs digitais;
  • Manifestações públicas, sejam de grupos, sejam de de grandes contingentes de população, em torno de um “acontecimento” que usam de mote para um levante de seu público;
  • Movimentos de afirmações de identidades, de tradições, de valores, de programas para configurar novas culturas ou reagir diante do que vê como ameaça à suas estabilizações convencionais para o caos do mundo.

Vamos viajar aqui, considerando as problematizações que se tem feito sobre pretensos “reais significados”, potenciais, limites, insuficiências e para alguns, fracassos quanto a esses fenômenos realmente poderem abalar o status quo. Ouçamos o sibilo no ar; sementes lançadas e ainda se lançando, tempestades se anunciando e já chegando, prelúdios de tempos de convulsões.

As representações destas duas expressões contrastantes, que aludimos acima, serão aqui discutidas com auxílio de categorias-chave no pensamento sociológico de dois grandes filósofos contemporâneos, Antonio Negri (aqui abordando os livros “Império” e “Multidão”, escritos junto com Michael Hardt) e Peter Sloterdijk (aqui abordando principalmente o livro “Regras para o Parque Humano” e secundariamente “Crítica da Razão Cínica”). É fácil identificar o impacto de ambos, constatando a frequente presença de termos pitorescos presentes nas discussões, mesmo sem nomear estes autores. Muitas vezes presentes mesmo sob a forma de apelo conotativo de grande vigor. Não raro eles não empregam uma linguagem fácil, ou usam termos complicados que sintetizam longas discussões, mas vamos tentar aqui explicar quando disserem algo mais truncado.

A chave para o que estamos sugerindo aqui é o que iremos propor como a batalha vital do momento: a disputa pelas “pessoas comuns”. Não só pela “adesão das pessoas comuns”, pelo convencimento delas, mas também pelo entendimento do que consiste ser a “pessoa comum”. Acima de tudo, como essas pessoas se sentem nessa transição caótica em que vivemos, de cujas consequência são imprevisíveis? É como se, no fundo, elas sentissem que são descartáveis e isto alimenta seu desejo de atirar algo às chamas.

Quem é você, “povo”?

Prezada Sra. Rand:

Eu não sou um crítico profissional e não me sinto capaz de julgar os méritos desse livro.  Portanto, eu não quero retê-la aqui com a informação que gostei muito de ler A Revolta de Atlas e que fiquei extremamente admirado com a magistral maneira como a senhora construiu o enredo.

Porém, A Revolta de Atlas não é simplesmente uma novela. É também (e principalmente) uma análise persuasiva dos males que assolam nossa sociedade, uma rejeição embasada da ideologia dos nossos pretensos “intelectuais” e um impiedoso desmascaramento da insinceridade das políticas adotadas pelos governantes e políticos.

É uma exposição devastadora dos “canibais da moral”, dos “gigolôs da ciência” e da “tagarelice acadêmica” desses criadores da “revolução anti-industrial”.  A senhora teve a coragem de dizer para as massas aquilo que nenhum político jamais teve: vocês não seriam nada sem os capitalistas, e todas as melhorias nas suas condições de vida, tudo aquilo que vocês simplesmente assumem como coisa corriqueira, como fato consumado, vocês devem unicamente aos esforços de homens que são melhores do que vocês.

(Ludovico de Mises, em carta à Ayn Rand de 1958)

O filósofo Antonio Negri produziu o conceito e a proposição de “Multidão”. Em suas obras busca desassociá-lo de termos que podem confundir-se com o sentido que propõe, termos tal como “massa”. Ele busca definir que “a multidão não pode jamais ser reduzida a uma unidade”, mas como“um conjunto de singularidades”. Ou seja, não é um mero ajuntamento uniforme de elementos com um pensamento e identidade invariáveis. Entretanto ainda assim, afirma que “Multidão” é o nome de uma imanência, (…) o conceito de uma potência. Somente analisando a cooperação podemos, com efeito, descobrir que o todo de singularidades produz além da medida. Esta potência não deseja apenas se expandir, mas, acima de tudo, quer se corporificar: a carne da multidão quer se consubstanciar no corpo do ‘General Intellect’. E parte daí para preconizar que a ação política voltada para a transformação e libertação só pode ser conduzida hoje com base na multidão (“Império”, p. 139 ).

A “multidão” se forma de acordo com um misto de ideias, sentimentos e uma conjuntura propícia para eclodir o fenômeno. É a forma e movimento que foi assumida por um potencial que se avoluma. Ela “encarna” esse misto e dá-lhe forma, direcionamento de ação, produzindo impacto. Ela exerce uma força para conclamar a se prestar satisfação ante ao que está clamando e fazendo.

Negri e o co-autor Michael Hardt colocam que o programa social da figura da “multidão” vai de encontro a objetivos para se construir uma comunidade global democrática, partilhando da vida comum, pelo bem comum; não regulada por vanguardas, mas, em analogia com o cérebro, funcionando como um centro nervoso ainda que não dotado de um centro, mas de diversos módulos. Ela é policêntrica e não centralizada. Ela “puxa” e “empurra”. Ela se capilariza nos espaços das estruturas sociais. Ela congrega, ela diferencia. Ela não é uma democratização radical, mas seria, em tese, uma radicalização de democracia, com muitas facetas para se expressar. Por isso pode agregar componentes sociais diferentes, dado o clima que veio se formando até manifestar-se naquela forma.

A multidão não é nem o encontro da identidade, nem pura exaltação da diferença, mas é o reconhecimento de que, por trás de identidades e diferenças, pode existir “algo comum” (…) entendido como proliferação de atividades criativas, relações ou formas associativas diferentes. (“Multidão”, p. 148)

Cruzando o rio….
O vulto presente em outro polo, Peter Sloterdijk, propugna algo bem diferente deste pensamento, ainda que percorrendo o mesmo sentido quanto a um programa subversivo ao que entende como configurações socioculturais atuais. Igualmente põe as pessoas no centro do pensamento, mas de uma maneira reversa.

Sua polêmica tem atraído muita atenção em boa parte por causa de um programa que apresenta na Alemanha, que discute questões filosóficas com um público mais amplo, mas também em grande parte devido às polêmicas que promoveu mundo afora. Provocou uma “treta” com o aclamado Jurgen Habermas, e, por conseguinte, incitou partidarismos (não que Michael Hardt e Negri não tivessem envolvidos em polêmicas também, pelo contrário) junto com a repercussão bombástica e acirramento de ânimos; mas também reverberou pela maior radicalidade ao entrar como uma “cuia”, cavando profundo em assentamentos culturais que cimentam ideários modernos.

Ele parte do filósofo Martin Heidegger para discutir as estratégias aculturadoras e civilizatórias que se aglutinam no projeto da modernidade, arquitetando uma crítica ao Humanismo, o qual, no seu ponto de vista, “domesticaria” e “adoeceria” o ser humano, por meio de articulações de signos linguísticos que promovem massificação. Em “Crítica da Razão Cínica” ele põe que há forças em nós e na história social que podem ser administráveis, mas não “domadas”.  Quando algo tenta fazer isto, mais cedo ou mais tarde se vê imerso no que não pode controlar, eclodem as forças do caos. Considera a crítica de Heidegger insuficiente, ao propor este, como contrapartida, uma postura pessoal autocentrada para “fugir” da banalização e tagarelagem dispersa do meio social, e assim uma escuta respeitosa para auto-compreensão do homem em vistas de uma vida autêntica de realização das potencialidades.

Sloterdijk vai mais longe e recorre a Nietzsche para dizer que, mais do que tal senso atento e reflexivo, o que se precisa é de um engajamento bravio diante da arena de conflitos cruciais para as decisões vitais de nossos rumos e daí se superam nossas fraquezas. Ele elogia as iniciativas de se buscar a superação de nossas limitações, inclusive psicológicas e corpóreas, recorrendo aí também a Platão – para conjugar as suplantações biológicas com as da mente e espírito. Sloterdijk escreve: “No que concerne ao zoo platônico, importa-lhe sobretudo aprender se a diferença entre a população e a direção é somente de grau ou é mais de espécie.” Assim ele conclama a identificar, com “senso” e de forma responsável os âmbitos para o qual rompamos a postura “domesticada” para, com arrebatamento, buscarmos novas criações (em contraposição à “educações”) para a criatura humana.

Mas o problemático é que ele vai discutir se entre os grupos e indivíduos que se destacam dentre os demais de nossa raça humana em superações de cada área, são de fato mais qualitativamente superiores aos demais. Então, com isto, segundo ele, um problema está na mesa. Como se pode impedir que esta diferença de superação vá mais longe, para expandir nossas possibilidades, e como conseguir amplificar os limites das capacidades do ser humano?

O alemão dá destaque sobretudo ao “Assim Falou Zaratustra”, de Friedrich Nietzsche, com alguns trechos sendo pontos cruciais, como em “Da Virtude Amesquinhadora”: “Para eles, o que modera e domestica é a virtude; assim fizeram do lobo um cão e do próprio homem o melhor animal doméstico do homem. Nós colocamos a nossa caldeira mesmo no meio, — assim me confessa o seu sorriso — a igual distância dos gladiadores moribundos e dos imundos suínos. Isto, porém, é mediocridade, embora lhe chamem moderação”.

É a expressão lírica da crítica analítica que Peter Sloterdijk aplica às instituições educadoras do projeto da modernidade, no qual o filósofo enxerga a massificação sociabilizadora animalesca, inibidora e repressora do devir, do vir-a-ser, da superação humana. Ele usa o termo “domesticação” para se referir à “desbarbarização”; seria como se os romanos inventassem truques retóricos para convencer os “bárbaros” a ficarem mansos, terem vergonha de pelejar com Roma – depois de Roma já ter pelejado contra eles antes – e assim preservarem seu status quo. A navalha afiada contra a produção do “bom ser humano moderno” ( “Regras para o Parque Humano”, p. 40). Não precisamos de “pacatos cidadãos”, nem de “militantes igualitários”, mas de pessoas que enxergam mais longe além dos limites atuais impostos aos nossos potenciais, pois assim, segundo ele, evoluímos.

Quanto ao que pensa sobre as “virtudes humanitárias” e instituições a seu serviço: O que ainda domestica o homem, se o humanismo naufragou como escola da domesticação humana? (…) O que domestica o homem, se em todas as experiências prévias com a educação do gênero humano permaneceu obscuro quem — ou o quê — educa os educadores, e para quê? Ou será que a questão sobre o cuidado e formação do ser humano não se deixa mais formular de modo pertinente no campo das meras teorias da domesticação e educação? (“Regras para o Parque Humano”, pg. 32) ]; o pensamento de Peter Sloterdijik ecoa também este trecho de “Além do Bem e do Mal”, Terceira Parte, “o fenômeno religioso”: Confortavam-se os sofredores, infundia-se coragem aos oprimidos e aos desesperados, emprestavam seu braço para aqueles que não podiam caminhar por si mesmos, atiravam-se, longe do mundo, nos conventos, casas de correção da alma, todos os insatisfeitos, os náufragos da sociedade humana; o que deviam fazer ainda para poder contribuir com boa consciência e premeditadamente para a conservação máxima de tudo aquilo que estivesse doente e sofrendo, ou para falar mais claramente, para a deterioração da raça europeia?

Onde está “o povo” em meio à “polarização”?
Retomando o começo do nosso papo, tais considerações são colocadas diante de perguntas: qual o valor delas para o papel desempenhado pelas “pessoas comuns”, que não estão na “ponta” dos grandes acontecimentos, organizações, debates públicos, âmbitos de “politização”, “centros de pesquisa”, “castelos de colóquios filosóficos”, mas que, vivendo sua luta do dia a dia estão no turbilhão do período caótico pelo qual passamos? Que ainda assim são vistas encorpando as mobilizações do “Occupy Wall Street”, “Primavera Árabe”, “maio/junho de 2013 no Brasil”, as manifestações dos Indignados na Espanha, os conflitos de rua na Grécia, Honduras, Guatemala, ações dos sem-teto mundo afora, incluindo o Brasil em linha direta contra a especulação imobiliária, desterrados por projetos econômicos, as queimas de ônibus em Goiânia, o rearranjo incipientemente orquestrado na Islândia, dentre tantos outros. Ou por outro lado, bárbaros espetáculos de linchamentos, intolerância religiosa, xenofobia…

O que se tem a dizer para as pessoas vulneráveis em seu ambiente de vida? O que pode suscitar e abrir para a contribuição positiva delas para transformações sociais? Ou a palavra final é que grande parte estas pessoas se relegam à margem da história, a “ralé”, por não estarem entre os grupos que se consideram protagonistas no giro dos motores dela? Levando em consideração terem sua condição e perspectiva afetada pela lógica descartadora do sistema; vulneráveis, para a qualquer momento, perderem empregos, casas, e projeções para o futuro? Que em meio a estatísticas de “pleno emprego”, não conseguem pagar para morar? As “pessoas comuns” estão sendo levadas ao limite em todo mundo, inclusive nos países desenvolvidos, sendo ameaçadas pelo aumento dos sem-teto na maior potência econômica da União Européia ou por problemas que haviam ficado no passado, como a superexploração que existia no séc. XIX voltar a ser uma possibilidade real na Europa.

O discurso de Sloterdijk, com sua leitura de Nietzsche sem dúvida são sedutores e nos provoca a sair da nossa zona de conforto. Costumo brincar que alguns pensadores, como Nietzsche, devem ter suas obras vindo com tarja preta. Por detrás dessa sedução está um elo psicológico com nossa necessidade de um revide para as afrontas, humilhações, sentimentos de injustiça e incompreensão que sentimos ter sofrido; e despejamos tudo isto acumulado, que abraça e salta com os ânimos reprimidos de todas as vezes que sentimos que tínhamos algo a contribuir e promover e o mundo não fez jus, não “fomos aproveitados”. Contra tudo o que encaramos como uma festa social fútil na qual não nos sentimos participantes, não “entramos no clima” e ficamos como observadores apartados, pensando em como os “demais” ali são pequenos…

Como no final do romance quando Ana Karenina vai observando os comportamentos prosaicos da sociedade que a julgara e na qual não encontrou espaço para realizar suas aspirações mais apaixonadas. Chama-se a atenção para um ponto fatal, contudo: quando Karenina se deu conta, e pôde enxergar que os sentimentos que alimentava ali não cumpriam o que prometiam, não realizavam sua vindicação – já estava com a cabeça embaixo das rodas do trem.

Entre estas duas antíteses, a “Multidão” do Negri e a “Antropotécnica” – como o filósofo alemão chama sua proposta de estudo e desenvolvimento técnico para aperfeiçoar a humanidade e possibilitar humanos aperfeiçoados – eugenista (eugenia positiva, quer dizer, que não prega a “eliminação de grupos indesejáveis”) de Sloterdijk, há uma alternativa inusitada na qual talvez se possa visualizar um desencadeamento de algo melhor. A concepção da “pessoa comum”, por parte de J.R.Tolkien, por detrás da figura dos Hobbits ( falo aqui das criaturas que permeiam diversos livros, não apenas o livro “O Hobbit”).

A Terceira Margem do Rio
Os Hobbits possuem tudo para se encontrar entre algumas imagens desprezadas por Nietzsche: cotidianos e prestativos; prosaicos mas que se divertem, engenhosos mas não gananciosos; infantis embora muito respeitadores; simples que gostam de aconchego, que conduzem seu modo de vida no Condado sem maiores rompantes, discretos e diligentes. Apreciavam a natureza, cultivos e jardins; eram provincianos embora não chauvinistas. Não se encaixam nem no individualismo nem no coletivismo.

Em “O Dom da Amizade” (2006, p. 124), Colin Duriez apresenta uma reunião dos Inklings (círculo informal de discussão literária e filosófica associado a acadêmicos de Oxford, animado principalmente por C.S.Lewis, na maior parte das vezes que reuniam-se em pubs) em que conversavam sobre os Hobbits, e Tolkien declarou:

Os hobbits têm o que se poderia chamar de moral universal; eles são o homem comum.

Sobre ele, podemos ver o alemão gritando na voz de Zaratustra (sessão I):

E um dia divisou uma fileira de casas novas; admirado, disse:

“Que significam aquelas casas? Em verdade, nenhuma alma grande as edificou como símbolo de si mesma.

Tirar-las-ia da sua caixa de brinquedos algum rapazinho idiota?

Pois torne-as a meter na caixa outro rapazinho!

E aqueles aposentos e desvãos! Poderão ali entrar e sair homens? Parecem-me feitos para bichos de sedas ou para gatos gulosos, que talvez se deixam também comer”.

E Zaratustra ficou-se a refletir. Por fim disse com tristeza: “Tudo se tornou pequeno!”

Por toda a parte vejo portas mais baixas; aquele que é da minha espécie ainda poderá talvez passar por elas, mas tem que se agachar!

Ó! quando tornarei para a minha pátria onde já não terei que me curvar… ante os pequenos?

Contudo, como na obra “A peste” de Albert Camus, acontecimentos terríveis que os circundam e terminam por lhes engolfar como ondas propiciam ocasião para se compreender a característica de suas personagens de terem multiplicidades de dimensões, quando os “ordinários” enfrentam o “extraordinário”. E se mostram com todas as potencialidades do “Übermensch” de Nietzche, o “além-do-homem”, de forma também multifacetada, por uma via completamente alheia e até confrontadora da metaética nietzcheniana.

A lida do cotidiano é o teste para a retórica. E neste sentido pode-se perguntar se o discurso de Nietzsche não contém, subjacente, ou em suas próprias artérias, o emprego de algo que ele mais atacava, o “ranço”, o “despeito”, a projeção de um auto-envergonhamento desprendido como desforra. Se amaldiçoa ou zomba do mero arrastar de vida, em que conseguiu ver seu Zaratustra andando por cima de suas cabeças, “pessoas pequenas” e “galinhas”… dizia ser “mediocridade”.

A jornada das “pessoas comuns”
No livro “O Hobbit”, Bilbo, um típico cidadão hobbit pacato, se vê envolvido no drama social dos anões e parte com um grupo em uma aventura, desafiando as convenções de seu Condado, em busca de um tesouro e do resgate da honra dos anões. Enfrenta o desprezo e mesmo a dúvida de si mesmo, buscando aproveitar as oportunidades em circunstâncias desoladoras, estando aberto, sem concessões para o orgulho, a gratuidades favoráveis que na jornada podem acontecer. Abre mão de sua parte do tesouro, que seria a “recompensa”, após colocar em peso o que enxergara: que de brinde viria a ganância prometeica.

Essa saga se vê entrelaçada com o drama civilizacional de todo seu mundo, quando Bilbo topa com elementos cruciais de toda a narrativa dos povos dele: no epicentro, o Um Anel, o Anel do Poder. Bilbo se depara com uma criatura enlouquecida por este anel, participa de um jogo de charadas e acaba conseguindo escapar da ira ensandecida da criatura, manejando o próprio anel do qual até então não tinha noção das potências.

Por sua vez, essa criatura, Gollum, era também um hobbit, numa condição desfigurada por passar anos a fio absorto, inebriado, possuído pelo Anel do Poder. Ele era antes Sméagol, um sujeito alegre e galhardo que vivia com sua família muito respeitada junto ao seu povo, um povo que tinha por cultura viver junto às águas, amando também escarpas e árvores.

Em uma pescaria com seu primo e melhor amigo, o ingênuo Déagol, este encontrou o Um Anel, e Sméagol por pura avidez luta contra ele e, para ficar com o Anel do Poder, lhe mata. Até então Sméagol representa uma figura paralela à Raskólnikov, de Crime e Castigo do Dostoiévski, embora mais “nietzcheniana”, “além do bem e do mal”; pois seu alvo ulterior não era a “sociedade”, a “humanidade”, mas o além-de-si pela sua potência a se alcançar, sem se apoiar em justificativas externas. Vive depois o delírio tornado em pesadelo, longevamente em estado vil, afastado de todo e qualquer código moral, absorvido pelo seu Precioso, em aguda e extremada esquizofrenia.

A partir de uma grande reviravolta no mundo, com um grande tsunami das forças do caos e dominação, o sobrinho de Bilbo, Frodo, se junta com companheiros completamente diferentes de seu povo, como homens, elfos, anões, mago, e com outros amigos, parte em busca de destruir a fonte do poder do mal que crescia como uma espiral ciclônica. O Um Anel. Mas, portando o Um Anel, que também o suga e busca possuir, seu fardo, seu conflito dilacerante. Muitos tentam tomar o anel. Frodo se vale dele para escapar muitas vezes, mas a cada vez é mais tomado, além de atrair o mal.

Estes seres triviais, “fracos”, os Hobbits… Frodo fraqueja no final e só consegue cumprir a tarefa de destruir o Um Anel e não ser absorto nele devido a Sméagol se atracar com o hobbit e arrancando com os dentes o dedo portador do anel, tombar no lago de lava que era o único modo de destruir a fonte. Frodo iria cair também e perecer, não tivesse sido salvo pelo seu amigo, Sam. Ao final da saga “Senhor dos Anéis”, Frodo se vê deslocado de seu povo, e junto com seu tio, já caducando pela idade, partem para não mais voltar a terras do além, terras paradisíacas dos elfos.

Neste micro resumo da narrativa dos hobbits, envolvendo pessoas (hobbits) comuns, parecidas e diferentes, encontramos claras considerações sobre o Humano: poder, fraqueza, medo, glória, vergonha, honra, superação, rebaixamento, degeneração, ambiguidade, conflito interior, vulnerabilidade, superação, tenacidade, desconfiança, absurdo e sentido, pasmo e esperança. Tudo emergindo do “rebanho”, diante de situações-limite. Joana D’Arc foi um tipo de hobbit. Todos com uma metaética que não concebiam meramente como construções próprias para uma engenharia de seu destino.

O que estava em jogo e os moveu…. Como na música de Raul Seixas “Cachorro Urubu”: “essa nossa batalha por um cigarro de palha”. Sua lavoura, cachimbos, lanches frugais, campos, amizades…

Bandeiras de quem, para quê?
Retomemos aqui um ponto de tensão entre “A Multidão” e o discurso dos “Além dos Homens”. Pensando justamente na questão: “afinal, para quê” tudo isso? “O quê que se quer”? “Por quê”? “Para quem”? E testar com isto os “por meio de quê” e “como”. Estes cidadãos comuns se integrarão às “multidões” e poderão clamar por “antropotécnicas”. Poderão se constituir em bravos desafios para um e outro. Poderão bagunçá-los. Ou ambos. E ainda, se constituírem como uma força ou forças próprias dando uma outra tônica a uma odisseia complexa do porvir que já não é um longo prazo apenas, em projetos alternativos e mesmo desafiadores tanto ao que Negri quanto ao que Sloterdijk propõem e contra ao espectro que projetam como seus inimigos.

Para Sloterdijk, a “multidão” é uma oclocracia, um nivelamento por baixo. Para Negri, a “antropotécnica” é aristocracia, é o “império”, subordinação. Mas não seriam ambas as representações fragmentos artificiais de algo mais sutil e mais multifacetado? Que estaria caminhando sob a tempestade de poeira? Com os Hobbits de Tolkien, podem se encontrar as melhores e as piores expectativas. Contudo mais concretas, mais “humanas”.

“Pessoas comuns”. O que “fazer” com elas? Estão no “olho do furacão”. Não se está sabendo indagar-lhes e dialogar com as mesmas, concomitantemente reivindica-se falar por elas. Temerária coisa é querer, de ranço, lhes bater com o martelo de construções retóricas. Talvez seja a hora de compreender que a “ralé” (em sentido amplo) deve fazer parte das proposições de mudança social, aceitando a imperfeição da sociedade, mas sabendo que imperfeições podem ser recombinadas para uma situação melhor. Estão no epicentro do conflito para a nova formação social que vai suceder o atual sistema que está colapsando. Mais igualitária e democrática, ou mais hierárquica e desigualitária. Para melhor, ou para pior.

Referências

• DURIEZ, C. O Dom da Amizade: Tolkien e C. S. Lewis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
• HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.
• HARDT, M. ; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.
• NIETZSCHE, F. Alem do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
• NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
• SLOTERDIJK, P. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
• SLOTERDIJK, P. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
• TOLKIEN, J. R. R. O Hobbit. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
• TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Correntina. Foto capturada de vídeo

Comments (1)

  1. Que bom o site RacismoAmbiental começar a fechar 2017 com um artigo de reflexão filosofica como esse do prof. Rodrigo Souza. Na passagem sobre domesticaçao recordei do relato de Harari [in Sapiens] em que fala da transformaçao civilizatoria imposta aas as galinhas, aos bovinos de corte e as cabritas rebeldes. Hitler tambem fez muito miserê. A sociedade brasileira – com todo o seu encanto e apesar da perda da “cidade maravilhosa”, nos anos 2000 – é mais complexa que outras. A precariedade das nossas instituiçoes de ensino dificulta a formação de cabeças com pensamento mais elaborado, muito mais que o revolucionarismo adolescente. Em 2015 rodei todas as barracas de livros novos e usados, em Havana, e não encontrei uma so oferta de livros de Nietzshe, Freud, Trotsky etc. A nossa diminuta elite alfabetizada estuda ou ler pouco, a esquerda segue um catecismo com soluçoes mágicas e uma deplorável pratica quando hegou ao poder. O artigo é denso e ao mesmo tempo condensado – como visto pela bibliografia -, repleto de interessantes passagens. Claro que o Martelo de Nietzshe tinha que se fazer presente com seus repiques sobre manada humana, sobre o bom comportamento etc.
    Nesse ano que se finda, fiz o que imaginei ser uma boa ação, distribui uma espécie de manifesto-homenagem [100 unidades, distribuidas seletivamente ] a um dos mais fecundos pensadores do Brasil, baiano da gema – pouco conhecido ate pelos estudantes de filosofia da UCSAL e da UFBA, onde lecionou ate anos recentes (Refiro-me a Auto de Castro). Enfim, navegar é preciso, afinal, é important de tudo fazer um arrazoado – aprendi com Riobaldo. Avante, prof. Rodrigo Souza, Feliz 2018 para todos!

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