Seria o fim dos agentes de saúde?

Especialistas questionam se o Profags não colocaria em risco a carreira de ACS e ACE

Julia Neves – EPSJV/Fiocruz

O dia 12 de janeiro ficou marcado na história dos agentes comunitários de saúde (ACS) e dos agentes de combate a endemias (ACE). É que o Ministério da Saúde publicou no Diário Oficial a portaria nº 83/2018, instituindo o Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde (Profags). Trata-se da oferta de curso de formação técnica em enfermagem para as duas categorias que têm uma longa trajetória de lutas. A portaria informa que o financiamento da formação técnica em enfermagem para os agentes de saúde se dará a partir de uma parcela do orçamento do Ministério que teria como propósito também o fortalecimento das Escolas Técnicas e Centro Formadores de Recursos Humanos em Saúde do SUS (ETSUS). O programa anuncia ainda uma ampliação do escopo de práticas na atenção básica, com vistas ao aumento da resolutividade dos serviços.

Mas qual é a avaliação que especialistas na formação desses profissionais e os próprios agentes fazem do novo programa? Mariana Nogueira, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), observa que a portaria aponta para o aprofundamento da flexibilização do trabalho dos ACS e ACE e para a ampliação da possibilidade de repasses de recursos públicos para instituições privadas de ensino.

Inversão de prioridades

A portaria determina que os recursos financeiros para a execução das atividades previstas para instituições públicas e privadas virão da ‘Funcional Programática da Formação de profissionais técnicos de saúde e fortalecimento das Escolas Técnicas e Centros Formadores do SUS’. No entanto, Mariana alerta que no texto, o governo não esclarece como se darão os critérios de seleção das instituições de ensino que se candidatarem a esse edital e nem assegura uma priorização da escolha de escolas públicas para esse orçamento. “É contraditório porque anuncia que existe um orçamento para fortalecimento de instituições públicas do SUS, mas inclui instituição privada sem elencar prioridade? É um anúncio de repasses do público para o privado”, acredita a professora. Na mesma linha pensa a presidente da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs), Ilda Angélica Correia: “Repassar recursos de instituições públicas para privadas é enfraquecer e fragilizar totalmente as escolas técnicas, que conhecem e trabalham, de fato, para o SUS”.

Segundo Mariana, na EPSJV, a formação técnica completa em ACS já está em sua 10ª turma, porém a realidade não é a mesma para todos os estados.  É que o tema nunca alcançou um consenso dentro da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), instância que reúne os gestores municipais, estaduais e o governo federal. Por lá, há resistência por parte dos secretários municipais de saúde, que historicamente lançam mão do argumento de que uma possível elevação de escolaridade e aumento da qualificação profissional viria acompanhado de uma maior pressão por aumento salarial e plano de carreira. Dessa forma, o Ministério da Saúde financia os dois primeiros módulos do curso técnico, que tem três no total. Em alguns estados – como Acre, Ceará e Pernambuco – e algumas cidades, como Rio de Janeiro, a terceira etapa foi financiada pelos governos estaduais ou pela prefeitura.

“O Ministério da Saúde não financia nacionalmente o curso técnico de ACS completo desde a publicação do referencial curricular nacional do curso, em 2004. Por que decide oferecer agora curso técnico em enfermagem para esses profissionais em meio a uma conjuntura de retrocessos de direitos, como a Emenda Constitucional 95, que acarreta impactos importantes no financiamento do SUS, e de revisão da Política Nacional de Atenção Básica [PNAB], que apresenta uma flexibilização do escopo da equipe e não diz o mínimo de ACS que irá compor essas equipes? Por que o Ministério não oferece financiamento para o curso técnico de ACS?” questiona. E acrescenta: “Isso significa um aumento das atribuições desses trabalhadores e a descaracterização do perfil profissional”.

Mariana afirma que os ACS e ACE possuem em comum, além de um trabalho realizado com base territorial voltado para a prevenção de doenças e promoção da saúde, o fato de serem profissões que existem somente no âmbito do SUS. “Estas categorias profissionais, dentre todos que compõem as equipes da Estratégia Saúde da Família, estão entre as poucas que não possuem formação profissional específica. Logo, é responsabilidade do Estado, através do financiamento provido pelos entes federados, ofertar formação profissional técnica. É um direito dos trabalhadores”, destaca.

No caso específico dos ACE, a professora-pesquisadora da EPSJV, Ieda Barbosa, afirma: “Ao propor formar trabalhadores que atuam na promoção em saúde e na prevenção de doenças para atuarem na assistência, o Ministério pode causar prejuízo às ações de controle de endemias. E isto em um momento que algumas delas vêm ocorrendo preocupando á população e às autoridades sanitárias. Portanto, entendemos como inadequada a formação técnica em enfermagem e como necessário, consolidar a formação técnica dos ACE, em vigilância em saúde”.

Reação dos agentes

O Sindicato dos Agentes Comunitários de Saúde do município do Rio de Janeiro (Sindacs) também se manifestou contra a portaria. É o que diz Wagner Souza, ACS e vice-presidente do Sindicato: “Nós somos totalmente contra. Entendemos que isso é uma política de Estado para acabar com o SUS e com nossa categoria. Cada um tem o seu lugar no organograma da Estratégia Saúde da Família. A formação em técnico de enfermagem não é o que o agente de saúde necessita. Os ACS e ACE necessitam de formação técnica em ACS e em Vigilância em Saúde”, afirma.

De acordo com Luiz Cláudio de Souza, presidente da Federação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias (Fenasce), é estranho que o Ministério queira formar agentes em técnicos de enfermagem. “Qual é a segurança que nós vamos ter com essa portaria, onde todos vão se submeter a esse curso?”, questiona. O presidente da Fenasce considera importante que todos os trabalhadores, ACS e ACE, façam uma análise profunda em relação a essa portaria. “Fizemos uma enquete com os trabalhadores e vamos nos reunir nos dias 25 e 26 de janeiro, em Maceió, para tomar uma decisão a respeito. Até porque a categoria está dividida, temos companheiros aprovando, achando que é importante fazer, e outros companheiros que, inclusive, já lançaram campanha para não aceitar essa portaria ministerial. Teremos que avaliar o contexto geral para ver se a gente consegue, se for vontade da maioria, tentar derrubar essa portaria”.

O debate nas redes sociais sobre a medida do governo está acirrado. Alguns agentes acreditam que a descaracterização da categoria rumo a uma formação na área de enfermagem atende aos interesses do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Isso porque em 2016, outras portarias – a 958 e a 959 – foram apoiadas pelo Cofen. As medidas, suspensas pelo Ministério da Saúde após intensas manifestações dos agentes em Brasília, abriam a possibilidade de os gestores municipais substituírem os agentes comunitários de saúde por técnicos ou auxiliares de enfermagem nas equipes de Saúde da Família. Procurado pelo Portal EPSJV, o Cofen – que se posicionou contra a PNAB – afirmou que agentes e técnicos de enfermagem cumprem funções diferentes. Em resposta enviada por e-mail, a conselheira federal de enfermagem Nádia Ramalho afirmou que ao longo de 2016 e 2017, o Cofen acompanhou com “muita preocupação” os projetos que incluíam novas atribuições para ACS e ACE, tais como verificação de sinais vitais, teste de glicemia, curativos, etc. “Formar um ACS ou ACE em técnico de enfermagem é possível, pois existem milhares na esfera do SUS atuando com esta formação. Entretanto, consideramos que agentes comunitários e técnicos de enfermagem têm papéis distintos no SUS. Transformar um ACS em técnico de enfermagem levará ao engessamento de uma profissão, que sempre esteve presente nas equipes de Saúde da Família, atuando como difusor da educação em saúde”, afirma.

Nádia acrescenta que, caso a formação técnica em enfermagem seja realmente oferecida, é imprescindível que os cursos sejam presenciais: “Consideramos que caso esses profissionais sejam formados na modalidade de ensino a distância, o SUS estará contribuindo para a formação inadequada de profissionais que levarão risco para a vida de pacientes e da saúde coletiva. A Enfermagem exige habilidades teórico-praticas que não podem ser desenvolvidas sem o contato com o ser humano”. A portaria que institui o Profags não esclarece em que modalidade os cursos serão oferecidos – mas dá um prazo para que o programa termine: 2019.

Portas fechadas

O Ministério da Saúde ressalta no texto da portaria que o assunto foi discutido por gestores durante uma reunião da CIT realizada em dezembro de 2017.  Mas Mariana Nogueira rebate que, diferentemente do Profags, o curso técnico em ACS e o curso técnico em Vigilância em Saúde para ACE – regulamentados desde 2004 e 2011 através de referenciais curriculares nacionais, respectivamente – foram produtos de articulações entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação (MEC). Além disso, contaram com a participação de instituições de ensino e pesquisa e assistência na área da saúde, da Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS) e de representações das categorias e sindicatos. “O processo de formulação dessa portaria nova não contou com nenhuma dessas representações que acumulam em sua trajetória histórica conhecimentos e práticas nesses processos de formulação da política de educação profissional em saúde”, alerta ela.

Em nota, a Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs) também criticou a forma como a proposta foi discutida. A Conacs afirma que foi desconsiderada “a existência da formação técnica em ACS com grade curricular específica” a essa categoria, que inclusive já “foi concluída em diversos municípios”. Assim como, segundo eles, ignoraram a “peculiaridade de atribuições de cada categoria, tendo em vista que “enquanto os ACS acompanham pessoas, os ACE cuidam dos imóveis de sua área de abrangência”. Por fim, a Confederação acrescenta que a exigência da portaria “descaracteriza as atividades que já realizaram um “impacto positivo para a saúde pública no Brasil”.

Vetos em lei se relacionam com Profags

No dia 5 de janeiro, o presidente Michel Temer sancionou a lei 13.595/2018, que reformula as atribuições dos ACS e ACE. Temer vetou uma série de pontos, não levando em conta discussões realizadas na Câmara e no Senado Federal, onde foram ouvidos representantes das duas categorias profissionais. A lei vem do projeto de lei nº 6.437/2016, cujo texto original tratava sobre atribuições, condições de trabalho, grau de formação profissional e cursos de formação técnica e continuada desses profissionais. Entre os vetos, estão a orientação de que estados e municípios ofereçam curso técnico em ACS e curso técnico em Vigilância em Saúde aos agentes das respectivas categorias profissionais, com carga horária mínima de 1,2 mil horas.

Foram vetadas ainda a indenização de transporte ao trabalhador para o exercício de suas atividades e a possibilidade de que o agente não more na comunidade em que atua, no caso de compra de casa própria. Permanece, portanto, a regra atual, que diz que o profissional deve residir na comunidade em que trabalha. Outro veto do governo se refere à obrigatoriedade da presença dos ACS na estrutura da atenção básica.

“A formação técnica em ACS e ACE estava prevista no projeto de lei. E a razão do veto, segundo Temer, é de que não poderia se incluir detalhamentos desse nível na lei. O presidente diz ainda que a questão deve ser tratada pelos respectivos entes federados, conforme disponibilidade de recursos e interesse público. Ou seja, retira a formação técnica de ACS e ACE do projeto de lei a partir do veto e oferta o curso técnico de enfermagem no lugar com essa portaria, apontando para uma sobreposição das funções e atribuições de ACS, ACE e técnicos de enfermagem. Neste sentido, uma preocupação importante diz respeito à manutenção dos postos de trabalho dessas categorias profissionais na atenção básica à saúde”, avalia Mariana.

De acordo com Ilda, a categoria já esperava alguns vetos de Temer, mas não que a lei fosse vetada quase em sua totalidade. Até porque, segundo ela, quando a lei foi aprovada na Câmara e foi remetida à aprovação no Senado, passou por várias alterações propostas pelo próprio Ministério da Saúde. “A gente não entende o veto exatamente por conta disso. Mas não satisfeito com os vetos na lei, porque sabem da nossa mobilização, sabem do nosso potencial e da nossa força dentro do Congresso Nacional, o ministro Ricardo Barros imediatamente publica a portaria 83. Um duro golpe para a categoria”, lamenta a presidente da Conacs. E completa: “Essa tem sido a vontade do Governo desde o início, extinguir a categoria de agente de saúde e de endemias e transformar em outro profissional, com vínculos precários e sem leis que os ampare”.

Será uma reedição das portarias 958 e 959?

A questão vem sendo colocada por especialistas e profissionais da categoria. Segundo a proposta da portaria, um dos objetivos é que a formação técnica em enfermagem trará um aumento a resolutividade da atenção básica. Para Mariana, esse é o mesmo argumento utilizado em 2016, pelas portarias 958 e 959, que previam a não obrigatoriedade da presença dos ACS nas equipes de saúde. “Nesse sentido, o Ministério reafirma o modelo biomédico, um modelo de procedimentos técnicos, voltados para o tratamento de doenças, enquanto o trabalho dos agentes de saúde encontra sua base na educação e promoção da saúde, na participação popular e na construção de redes de apoio social. Esses profissionais têm trabalhos extremamente importantes, mas diferentes entre si”, afirma a pesquisadora.

Na avaliação de Ilda Angélica, a categoria está sendo bombardeada pelo Ministério da Saúde, pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), desde as portarias 958 e 959. Segundo ela, a partir da revogação dessas portarias, os ataques se intensificaram e a solução encontrada foi lutar pelas atribuições dos ACS e ACE: “A lei das atribuições seria exatamente a blindagem da categoria em relação às fragilidades que a gente vive”.

Outro lado

Todos os questionamentos levantados por essa reportagem foram enviados ao Ministério da Saúde e ao Conasems, que não se manifestaram até o fechamento desta matéria.

Imagem: Reprodução do Portal EPSJV/Fiocruz.

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