Julgamento que ocorreu na quarta-feira será hoje por muito tempo

Por Roberto Tardelli, no Justificando

Quando vi gente (pouca gente, menos do que esperavam seus fascistas organizadores) comemorando a condenação de Lula, além do amargo de ver uma sociedade que comemora a condenação de um líder popular sobre o qual jamais pesou qualquer acusação infamante, a uma pena equivalente a do homicídio qualificado, senti o quanto ainda nos falta para que nos tornemos uma Nação. Estava entre aqueles que choravam, a alguns quilômetros dali, profundamente angustiados porque sabem que seu estado de pobreza vai se agravar e muito. Enquanto os bem nascidos comemoravam a condenação no Spot, bar badaladinho nas beiradas da Paulista, gente miserável se olhava perplexa, na Praça da República.

Quarta-feira foi daqueles dias que há de nos marcar a memória para sempre. Coloquei o verbo no presente porque quarta-feira é ainda hoje e continuará por muitos dias, porque quarta-feira ainda não terminou e sua noite de trevas haverá de nos obscurecer o suficiente para que, em breve tempo, aqueles que comemoravam, passem a lamentar e a lançar seus gritos de desespero, andando pelos cantos, arrependidos, profundamente arrependidos, pela alegria idiota que tiveram ao comemorar o retorno do Brasil à ditadura.

Parabéns, vocês conseguiram.

Conseguiram que um tribunal de segunda instância revelasse ao país a pequenez atômica dos burocratas, todos absolutamente desconhecidos, todos absolutamente consumidos na própria mediocridade, afirmarem que uma pessoa – no caso, Lula – pode ser condenada sem que haja provas daquilo que fez ou, pior, sem que se saiba o que ele teria feito para merecer a condenação.

O ingênuo brasileiro que tirou a camisa do 7X1 da gaveta parece não desconfiar que não foi apenas Lula quem o TRF-4, de triste memória, condenou no dia de quarta-feira. Esse um, que apoia a Lava-Jato, também foi condenado. Ele foi condenado a ver o direito de defesa ser destroçado. Ele foi condenado a ver toda a Teoria do Crime, construída em séculos, ser abolida. Ele foi condenado à mais grave das condenações: ele foi condenado a ficar ao sabor da convicção de um Ministério Público cada vez mais sanguinolento e ávido pelo poder e à convicção de um juiz, totalmente descomprometido com a lei, na sua expressão maior, a Legalidade.

Esse Alienado não sabe que ele e seus filhos, sua família estão, se prevalecer o entendimento de quarta-feira e ele tem prevalecido, nas mãos da polícia, nas mãos de um acusador de plantão (existem já em milhares) e nas mãos de um juiz moralista e inculto, religioso e raso, honesto e sem compaixão. Esse Alienado não percebeu que o tiro que acertou as costas de Lula, atingiu o seu peito.

Tucanos, bolsominions, coxinhas, petralhas, veganos, carnívoros, todos fomos atingidos na quarta e todos poderemos, a partir dessa decisão horrenda, ser condenados sem que haja necessidade de produção de provas. Será fácil voltar a mira do tal interesse público, seletivamente, a justificar, sem maiores esclarecimentos, que a complexidade da acusação impediu a produção de provas.

Cuidado com quem andas! Teu amigo de hoje será teu delator de amanhã. Estabeleceu-se que vale a troca: a cadeia pela acusação conveniente feita contra quem não houver provas. Do fundo da prisão, seu amigo terá como última alternativa de liberdade a tua prisão. Teu amigo dirá a verdade combinada, chamada delação premiada, que pode comprometer teus bens, destruir tua dignidade, destroçar tua reputação, devastar tua família. Nunca se pôde, pela singela razão de a lei proibir, a condução coercitiva, nos moldes daquela que levou Lula, feito um cão, para depor numa salinha acanhada. Pois desde quarta-feira, essa porteira está aberta e todos nós poderemos acordar, pontualmente, às 06:00 da manhã, com nossas casas invadidas por policiais, sermos arrastados perante família e vizinhos, para um depoimento, que poderia ser normalmente agendado.

Quarta-feira, queridos e queridas, autorizou-se o que sempre foi um tabu: aumentar a pena de alguém, para evitar a prescrição. A pena é fixada de acordo com um intervalo legal, entre o mínimo e o máximo de tempo que a lei determina ser possível prender-se alguém por este ou aquele crime. Entre o mínimo e o máximo da pena, tudo o que nela vier, virá de acordo com uma série de diretrizes, também trazidas na lei, que poderão, ora aumentar, ora diminuir, tudo de acordo com a personalidade, vida social etc do réu. Não se pode aumentar a pena de ninguém pela ineficiência do Estado em processar uma pessoa, cuja vida os agentes estatais (polícia, MP e Judiciário) podem virar de cabeça para baixo. Essa malandragem judicial parecia, tal como a poliomielite, erradicada das práticas forenses. Pois bem, voltou. Isso te coloca na alça de mira para levar uns anos mais de pena porque o juiz e o ministério público, com seus poucos dias de férias e de recesso, houvessem demorado para te processar.

A partir de quarta, queridos, o julgamento moral se sobreporá ao julgamento jurídico e qualquer juiz ou promotor, para condenar alguém, poderá dispensar a prova. Por exemplo, num acidente de trânsito, ele não precisará da prova da culpa, mas lhe bastará duas multas que tenhas tomado para que formem a convicção de que diriges perigosamente, o que o autoriza a afirmar que causaste o acidente, embora disso não haja provas reais. Gostou?

A decisão colocou todos os prefeitos do Brasil, bem como os chamados ordenadores de despesas, nas mãos do promotor de justiça, do juiz de direito, do Procurador Geral. Juízos morais se transformarão em rotinas acusatórias. A educação vai mal porque o promotor entendeu que na reforma da escola houve um gasto a mais [de] tintas que poderia ser revertido, sabe-se lá como, na melhoria da qualidade de ensino. Isso pode significar improbidade, apesar de prova alguma seja possível fazer nesse sentido. O prefeito lutará contra a convicção do Ministério Público. Vejo muitas prisões de prefeitos e seus secretários, através da bola de cristal que a pós-democracia colocou em minha mesa.

Está gostando? Espero que não esteja.

Se piorou para a turminha alienada e tola do Spot, que respirou aliviada, imagine para a turma que sempre correu da polícia: os pretos, os pobres, os periféricos, moradores de rua, pessoal da homoafetividade, vocês têm ideia? Se até agora se exigia um quase-nada para condená-los, a partir de quarta-feira não se exigirá mais nada e, em nome do combate ao dragão da Impunidade, as cadeias vão superlotar ainda mais e mais. A prova se resumirá à palavra dos policiais que efetivaram a prisão. Será um mantra. É impossível saber aonde vai dar esse sequestro social dos excluídos.

Juízes poderão vir sob encomenda, devidamente empacotados, com promotores e procuradores bufões. Bufando. Rosnando. Rugindo.

Na quarta-feira, o Vale-Tudo. Na quarta-feira, ficou estabelecido que podemos saber de antemão que alguém é culpado pelo crime que vai cometer e isso nos dispensa da necessidade de qualquer prova a respeito, afinal por que deveríamos provar algo que sempre soubemos?

A alegria desses alienados mentais, desses idiotas políticos vai durar pouco. Os Hélios, as Janaínas, os pastores com suas ovelhas carnívoras, que se fartaram em lauto banquete, terão muito do que se arrepender amanhã. Essa alegria vai durar pouco. Tal como o general romano, para que vissem Lula condenado, destruíram todo o ordenamento legal, tudo o que se construiu. Para prender o rei, queimaram todo o Reino. Hão de pagar, na História, o preço que lhes será cobrado. Que o ressentimento e que a vergonha por terem partilhado, urdido, tramado, incorporado demônios, para que fosse definitivamente rompido o pacto democrático, lhes seja eterno. Que suas almas jamais descansem.

E vocês, ó turma verde-amarela, acordai, enquanto é tempo. A partir de quarta-feira, estamos todos sob a chuva ácida que cai dos céus sombrios desse país de exceção, que aprendemos desde muito cedo a amar, chamado Brasil. Juntai-vos a nós. Venham.

O canhão do arbítrio está apontado para todos.

Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

4 × três =